Orlando Raimundo explica como ‘O Inventor do Salazarismo’, António Ferro, definiu o Portugal que ainda hoje conhecemos.
António Ferro deu milhares de conselhos a Salazar enquanto responsável pela propaganda do Estado Novo, mas foi incapaz de aceitar um em troca. Apesar do mau pressentimento do ditador, submeteu-se à cirurgia a uma hérnia epigástrica, no Hospital de São José, em Lisboa, morrendo na madrugada de 11 de novembro de 1956, vítima de infeção pós-operatória. Quase 60 anos depois, chega às livrarias ‘O Inventor do Salazarismo’ (D. Quixote), descrito pelo autor, Orlando Raimundo, como a primeira biografia do homem que entrevistou Hitler e Mussolini antes de chegarem ao poder.
"Desmontar a gargalhada póstuma de Ferro, que deixou isto tudo armadilhado", é uma das razões que o jornalista de 65 anos aponta para ter escrito a biografia de "um personagem muitíssimo importante na História recente de Portugal". Para o autor de ‘A Última Dama do Estado Novo’, que teve o condão de desagradar aos filhos de Marcelo Caetano, "era preciso um olhar desapaixonado sobre uma figura muito complexa, fascinante por um lado e detestável pelo outro".
Responsável pelas grandes manifestações das primeiras décadas do regime de Salazar, como a Exposição do Mundo Português de 1940, António Ferro é visto como "genuinamente fascista" por Orlando Raimundo, ainda que a devoção pelo enérgico Mussolini ceda lugar à admiração pelo professor universitário. "A ousadia dele foi ao ponto de achar que Salazar era superior aos outros ditadores", refere o autor de ‘O Inventor do Salazarismo’, crente de que o seu biografado "foi o primeiro especialista em marketing político de Portugal".
O diretor do recém-criado Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), que só não chega a ministro por Salazar não dar esse título a quem não era licenciado, congregou cineastas como António Lopes Ribeiro e Leitão de Barros, pintores como Almada Negreiros, arquitetos como Cottinnelli Telmo e escritores como Júlio Dantas, mas a sua capacidade de moldar um "Portugal pobrete e alegrete" foi ainda mais longe.
"O Manoel de Oliveira é irmão gémeo do galo de Barcelos. Nasceram na mesma altura e são filhos de António Ferro", afirma Orlando Raimundo, recordando que é no primeiro Congresso Internacional da Crítica, organizado pelo ainda jornalista em 1931, que o portuense exibe o seu documentário ‘Douro, Faina Fluvial, e o galo de Barcelos surge como símbolo nacional oferecido aos congressistas estrangeiros.
Não será a única tradição portuguesa que Ferro inventa nos anos 30 e 40, fazendo aparecer as Marchas Populares de Lisboa com a mesma desenvoltura com que ao longo do território brota um folclore que o biógrafo vê como o quarto ‘f’, ao lado de Fátima, futebol e fado. E mesmo este último, segundo Orlando Raimundo, "é mais património do Estado Novo do que da Humanidade".
MENTIRA DE 'ORPHEU'
Nascido a 17 de agosto de 1895, no mesmo hospital lisboeta em que morreria, aos 61 anos, António Ferro exibe como credencial que lhe abre portas ter sido o editor da revista ‘Orpheu’, que há 100 anos agitou as águas paradas da cultura em Portugal. Algo que Orlando Raimundo desmistifica no livro, afirmando que "Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro fizeram dele uma espécie de idiota útil". Como a maioridade só chegava aos 21 anos, Ferro foi escolhido – "puseram lá o nome sem sequer o avisarem" – pois seria inimputável em caso de processo judicial, nada improvável quando até o psiquiatra Júlio de Matos escreveu que os textos eram "leitura de manicómio", e se acumulassem dívidas acima da cornucópia de generosidade que o pai de Sá Carneiro foi até ao suicídio do filho.
No que toca à obra literária de Ferro, Orlando Raimundo é implacável. "Não fez um livro com princípio, meio e fim. A poesia era muito fraca, no início mesmo pueril. Fez tanta coisa que acabou por não fazer nada como deve ser", garante à ‘Domingo’. Antes de construir o mito de Salazar, o futuro homem da propaganda edificou o seu próprio mito, dizendo-se participante na Semana da Arte Moderna de São Paulo de 1922, para a qual só enviou uma comunicação.
Também questionada é a sua carreira jornalística, ainda que o autor de ‘O Inventor do Salazarismo’ veja nele "porventura o mais importante jornalista português de todos os tempos", à frente do "igualmente importante e polémico" Reinaldo Ferreira, conhecido por ‘Repórter X’. "Na época não havia gravadores nas entrevistas e nem sequer se tomava notas. Ele escrevia o que gostaria que o outro tivesse dito", explica Orlando Raimundo, embora realce as figuras com que o então redator do ‘Diário de Notícias’ falou, muitas delas ligadas aos regimes autoritários que o fascinavam: Mussolini e Hitler, mas também o escritor fascista italiano Gabriele D’Annunzio ou a estrela de Hollywood Douglas Fairbanks Jr. E, claro está, António de Oliveira Salazar.
ASCENSÃO E QUEDA
Nas sucessivas entrevistas laudatórias a Salazar, Ferro convence-o da importância da propaganda e da imagem. Daí até à sua passagem para o SPN, com a missão de dinamizar a ‘política do espírito’ e de gerir a imagem de Portugal no estrangeiro, foi um salto. Houve de tudo, desde filmes de propaganda que louvavam a polícia política (‘A Revolução de Maio’) e o colonialismo (‘O Feitiço do Império’), à atribuição de prémios generosos que mantinham os artistas próximos e à atração de figuras da cultura europeia predispostas a simpatizar com o Estado Novo. O britânico T. S. Elliot, o belga Maurice Maeterlinck e a chilena Gabriela Mistral não hesitaram em ver para contar.
Mas tudo chega ao fim em 1949, já com o SPN convertido em Secretariado Nacional de Informação. Salazar deixa cair um dos seus mais próximos, percebendo que "tinha de mudar alguma coisa para tudo ficar na mesma". Fernanda de Castro, a mulher de Ferro, "cúmplice de sempre", dramaturga, poetisa e apoiante do Estado Novo, ainda pede ao ditador que o faça embaixador em Paris. O prémio de consolação é Berna, onde recebe regularmente o banqueiro Ricardo Espírito Santo. Seguir-se-á Roma, onde estava quando decide ser operado em Lisboa.
"Um homem inteligente é sempre um espetáculo, mas a inteligência pode ser utilizada para o bem ou para o mal", diz Orlando Raimundo, resumindo o que pensa de alguém cuja marca sobreviveu ao fim do regime que ajudou a edificar e continua presente, quatro décadas mais tarde.
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