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“Estávamos debaixo de fogo e ficou ali mais um amigo”

Fazíamos quilómetros a pé à procura de algo, quase sempre armamento.

23 de fevereiro de 2020 às 12:00

Embarquei em Lisboa com destino a Angola a 16 de julho de 1963, no navio ‘Uíge’, e desembarquei em Luanda a 27 de julho, na véspera de fazer 20 anos. Na mesma altura o meu irmão partia para a Guiné. Depois de tirar o curso de paraquedista, estive mais três meses num curso de técnicas de guerrilha e escolhi uma especialidade: cães de guerra. Como os animais usados eram da raça pastor-alemão, tive de ir buscar um à Alemanha. Chamava-se Dix.

Era como se fosse um filho ou um irmão. Era fora do normal, obediente, sempre ao meu lado. Não fugia, era um militar. Para onde eu ia, ele ia, era a minha companhia. E nas situações mais perigosas eu falava com ele e nunca me abandonou. O Dix era um cão de ataque e o nosso guia.

A minha comissão foi mais pequena – não chegou a um ano – porque os cães não podiam estar mais tempo. Fiquei sempre com o mesmo animal, até sair para a disponibilidade. Depois tive de o entregar a outro colega.

O meu quartel foi sempre em Luanda, junto ao hospital militar, mas saíamos com muita frequência e lá andávamos pelo mato. Não fazíamos mais nada. Metidos naqueles matos, naquelas desgraças, naquelas picadas. Sujeitos a emboscadas. Todos os dias fazíamos quilómetros a pé, batíamos o mato por zonas, íamos à procura de qualquer coisa, quase sempre armamento. Também protegíamos as roças, que eram muitas.

Corpo devolvido 50 anos depois

Ali éramos todos amigos, mas, às vezes, há pessoas que nos são mais próximas e ele era esse amigo. Infelizmente acabou por lá ficar. E o corpo só foi devolvido à família passados 50 anos. Lamentável. Foi esse rapaz, e depois outro, e mais outros. Eu fui um dos privilegiados que regressaram, depois daquilo que passámos.

Batíamos várias zonas – Toto, Vale do Loge (Uíge), Úcua – e às vezes estávamos 15 dias ou um mês em cada uma, consoante as operações. Havia combates com frequência, mas na maioria das operações não resultavam problemas graves, só tiros, alguns feridos, coisas ligeiras. Noutras alturas era terrível.

Uma das piores emboscadas à qual sobrevivi ocorreu no caminho para Úcua. Fomos atacados e ficámos debaixo de fogo de metralhadora. Ficou ali mais um amigo. Outros pisavam minas, que não se viam. Andávamos sempre por lá, no meio do mato, e eles colocavam as minas, escondidas, no caminho.

Numa altura, em novembro de 1963 – estávamos na roça Maria Teresa – quando recebemos a notícia da morte do Kennedy. Ficámos mais em alerta, não sabíamos o que podia acontecer. Angola era uma oportunidade para muitos países – ouro, petróleo, diamantes – e havia tropas de outras nacionalidades por lá. Tínhamos de reforçar a prevenção. Felizmente não aconteceu nada.

O tempo lá foi passando. Ficámos num aeroporto velho, a ver os helicópteros para trás e para a frente. Sempre a levantarem, aterrarem e reabastecerem. Andavam a fazer um quartel novo para os paraquedistas e para os fuzileiros, mas não o cheguei a estrear. Chegou o dia do regresso.

Viajei no paquete ‘Vera Cruz’, com o general António de Spínola. Durante sete ou oito dias, tivemos a companhia um do outro. Conversávamos muito, sobre tudo e deu-me muitos conselhos. Também gostou do Dix, que estava sempre comigo. Desembarquei a 22 de fevereiro de 1964.

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