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José Altafini, uma história muito comum

Um homem é campeão do Mundo ao lado de Pelé e companhia. Entretanto, muda de nome, de país, de nacionalidade. E de selecção... O brasileiro Mazzola, aliás, o italiano Altafini. E foi assim que ele entrou para a história dos Mundiais.

18 de junho de 2006 às 00:00

Com o ex-árbitro Pierluigi Collina, ele é um dos comentadores vedetas da Sky, o canal de TV por satélite que transmite o Mundial 2006 para Itália: Altafini. É conhecido como José, não como Giuseppe, como seria natural. Na semana passada, quando a Sky mostrava a taça que será entregue aos campeões, Altafini disse alto e em bom som: “Já a ganhei.”

Esquisito para muitas pessoas, mesmo as que tinham a vaga ideia de que ele jogara nos ‘azzurri’, a selecção italiana.

Punham-se a fazer contas e aquele sexagenário não batia certo. Era demasiado novo para ter estado nos dois primeiros Campeonatos do Mundo que a Itália ganhara, os de 1934 e 38; e era demasiado velho para ter ganho o outro, o terceiro de Itália, em 1982. No entanto, a verdade é que José Altafini não mentia.

Altafini nasceu em 24 Julho de 1938, um mês e uma semana depois de a Itália ter vencido o seu segundo Mundial. Mas não é provável que lá em casa se tenha festejado muito essa vitória. A família Altafini era há muito brasileira, e a prova é que chamaram ao filho José João.

Viviam em Piracicaba (que já se chamara Vila Nova da Constituição, em homenagem à Constituição liberal portuguesa, de 1821), no estado de São Paulo. O miúdo era bom da bola. Por ser louro e porque, em São Paulo, era forte a comunidade italiana, alcunharam-no de ‘Mazzola’, o nome do malogrado Valentino Mazzola, da selecção italiana, que morrera com toda a equipa do Torino, ao regressarem de avião, depois de jogarem com o Benfica, em 1948. ‘Mazzola’, pois, já era o brasileiro quando foi contratado para o Palmeiras e foi chamado para a selecção ‘canarinha’ que iria disputar o Mundial, na Suécia, em 1958.

'MAZZOLA'

‘Mazzola’ mete o primeiro golo do Brasil e faz todos os jogos, com excepção da meia-final e final, contra França e Suécia (ambos 5-2), que lançaram a lenda do futebol brasileiro. A linha avançada ficou na memória como um belo poema: Garrincha, Didi, Vavá, Pelé e Zagalo. Sem ‘Mazzola’.

Este vai esquecer a afronta com o chorudo contrato que fez, aos 20 anos de idade, com o Milan. Para a troca tem de mudar de nome, Mazzola era demasiado histórico e havia o filho do próprio, Sandro, na calha para herdar o nome. ‘Mazzola’ transforma-se em italiano, pois, voltando ao seu verdadeiro nome: será como Altafini que a sua carreira se fará.

Brilhantíssima em clubes, só irá acabar aos 42 anos, e é o dono do terceiro recorde de golos marcados na I Divisão italiana (e, infelizmente, ele é aquele Altafini que derrotou o Benfica na sua terceira final europeia, em 1963).

Mas na selecção de Itália será mais modesto, só irá ao Mundial do Chile, em 1962. Nesse Mundial, houve repercussões negativas à sua, e de outros, condição de ‘oriundi’, como os italianos chamavam aos jogadores que se naturalizavam a pretexto de terem um antepassado italiano (nesses anos 60, houve um português célebre no lote, Jorge Humberto, jogador da Académica, que para jogar no Inter se naturalizou, mas que nunca chegou à selecção italiana e é hoje médico em Macau).

Pela Itália, além do brasileiro Altafini, jogavam os argentinos Maschio e Sivori, e essas expropriações ofendiam todos os sul-americanos. Para mais, um jornal italiano tinha dito que o Chile era um país subdesenvolvido. Isso mexeu com os brios dos da casa.

Quando o Chile ganhou à URSS, os jornais de Santiago titularam: “Subdesenvolvidos, 2, Europa, 1”. E, sobretudo, a equipa italiana passou a inimiga da casa. Não aguentou a pressão e voltou para casa na fase de grupos.

TALENTOS INTERNACIONAIS

E, no entanto, a Itália tinha experiência em ir pescar noutros países os talentos que ao longo da história lhe faltaram em casa. Os seus primeiros campeonatos mundiais dos anos 30 foram conquistados com vários ‘oriundi’ argentinos (Monti, Guaita, Orsi...).

A selecção nacional alemã, poucos meses depois de ter anexado a Áustria, meteu vários jogadores austríacos na sua selecção que foi ao Mundial de França, em 1938. As duas camisolas de Mazzola-Altafini tinham alguns antepassados.

A ambiguidade com nacionalidades sempre esteve ligada ao futebol.

Em 1958, a França convocou o argelino Rachid Mekloufi, que jogava no Saint-Étienne, mas ele preferiu desertar e ir alinhar com o movimento do seu país, a FLN, que lutava pela independência. Já o marroquino Fontaine, aceitou a convocatória e tornou-se, até hoje, o maior marcador de golos num só Mundial, com 13 golos. Uma produção só possível por ter uma máquina de passar bolas que se chamava Kopa. Aliás, Kopaszweiski, nascido no Norte de França mas filho de um mineiro polaco.

MUNDIAL: CAMPEONATO DE PAÍSES

A nacionalidade sendo adquirida pelo local do nascimento, a França, terra de imigrantes, pôde municiar-se em casa, com filhos dos seus imigrantes. Ao filho de polacos, Kopa, melhor jogador francês, sucedeu o filho de italianos, Platini, a quem sucedeu o filho de berberes, Zidane.

Este, o primeiro dessa linhagem de grandes a tornar-se campeão do Mundo numa equipa ‘blacks-blancs-beurs’, de negros, brancos e filhos de argelinos, de 1998.

Uma situação que está longe de ser desconhecida para Portugal. Para as eliminatórias que deveriam levar-nos ao Mundial de 1962, Portugal chegou a alinhar num jogo em que, tirando um açoriano e um continental (e este, só por um bocadinho: era Cavém, natural de Vila Real de Santo António, sobre a fronteira com Espanha), todos os jogadores eram das colónias (desde os moçambicanos Eusébio, Costa Pereira e Coluna aos angolanos Águas e Santana, passando pelo macaense Rocha) ou eram nossos ‘oriundi’ (Lúcio, brasileiro, e Pérides, sul-africano, mas filho de portugueses).

O seleccionador era o angolano Peyroteo (um dos ‘Cinco Violinos’ da equipa do Sporting) e o treinador era Otto Glória, brasileiro (que iria ser também o treinador dos ‘Magriços’, na saga do Mundial de 1966).

Os Mundiais são um campeonato de países mas sem a noção estreita que isso pode ter. Quem viu, esta quarta-feira, a selecção da Arábia Saudita, um país de árabes e beduínos, jogar quase exclusivamente com negros sabe que assim é.

Quem viu, esta semana, a chanceler Angela Merkel a gritar de alegria por causa do passe de morte que o mulato David Odonkoa, um filho de ganês, fez e deu o golo alemão sobre os 90 minutos, derrotando a Polónia, sabe que suspiro de alívio isso foi. E pode calcular quantos alemães deram graças a Deus por a nacionalidade alemã já não ser dada só pelo sangue (isto é, pela nacionalidade dos pais) mas também pelo local de nascimento...

E quem vir a alegria que Deco nos vai dar sabe que é verdade tudo que vos contei.

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