Rendimentos das famílias estão mais magros. Algumas adaptam-se, muitas passam fome.
Bateu-nos à porta no início de março, afastou-nos da família e dos amigos. Fechou o comércio, travou a economia, deu cabo do emprego. Levou-nos a liberdade. Há dois meses que Portugal tenta reerguer-se desta pandemia que mata os mais frágeis. Fechadas em casa, as famílias fazem contas à vida para se reencontrarem. Algumas, poucas, limitam-se a alterar rotinas e a gerir orçamentos. Mas há outras que atravessam grandes dificuldades financeiras, fruto do desemprego, das empresas paradas ou da redução de horários. Há quem já não tenha comida para pôr na mesa.
"Não são queixas nem denúncias, são verdadeiros pedidos de ajuda aquilo que estamos a receber de famílias que estão confrontadas com a diminuição ou mesmo a ausência de rendimentos". Natália Nunes é responsável pelo Gabinete de Apoio ao Sobre-endividado da Deco – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor e tenta dar seguimento a estes pedidos de socorro.
"Recebemos mais de uma centena de situações por semana. Vêm pedir orientação para o que podem fazer e para onde é que podem recorrer. Temos situações do mais doloroso que se imagine. Pessoas que ficam sem nenhum rendimento, sem direito a subsídios de desemprego e sem apoio. Com crianças a cargo e com créditos. Pessoas a recibo verde que deixaram de ter atividade, pessoas que tiveram de fechar pequenas empresas e que estão em casa sem qualquer rendimento".
A maior parte dos que contactam a Deco não tem nenhum pé de meia ou fundo de emergência. Natália Nunes diz que "há situações verdadeiramente angustiantes, de pessoas que, muitas vezes, não têm dinheiro para a alimentação ou para pagar as faturas da água e da luz".
"Há um caso dramático de uma senhora que vive com dois filhos menores. Despediu-se no mês de fevereiro e, em março, começou num novo trabalho. Estava no período experimental e a meio do mês foi para casa, sem contrato assinado. Não tinha poupança, vive numa casa arrendada e tem dois créditos pessoais de valores não muito elevados, mas que, para quem não tem dinheiro, acaba por ser um valor astronómico. Neste caso, houve necessidade de trabalharmos em colaboração com a ação social para esta família ter apoio e acesso à alimentação e uma ajuda para pagar as faturas da água e da luz. São situações que nos aparecem todos os dias
e várias vezes ao dia".
Ajustar as despesas
A Deco aconselha ainda as famílias a olharem para o seu orçamento e analisarem muito bem o dinheiro que entra e o que sai. Natália Nunes explica: "Têm de tentar ajustar ao máximo as despesas, olhar para elas, colocá-las numa folha - seja de excel seja de papel - e ver quais as que são essenciais, tentar eliminar aquelas que não são e reduzir todas as outras." Caso existam créditos, adianta, "devem ver qual a melhor solução. Se têm capacidade para os continuar a pagar, se devem suspender o pagamento durante seis meses e se essa solução visa o pagamento na totalidade – capital e juros – ou só o capital. Claro que o consumidor deverá ter sempre presente que vão decorrer os seis meses e vai ter de retomar o pagamento das prestações. Se optar por ter uma moratória total – capital e juros – depois vai ter de começar a pagar os juros que não pagou durante estes seis meses e a sua prestação vai subir ligeiramente. Claro que há aqui ainda uma incógnita de saber se, chegando a setembro, outubro, vamos ter ou não capacidade de honrar todos os compromissos".
Para já, as previsões não são famosas. Um inquérito da Deco mostra que desde o início da crise do novo coronavírus em Portugal, 9% dos trabalhadores perderam o emprego, 30% estão parados e 19% viram o seu horário de trabalho diminuir. O inquérito, realizado em meados de março, revela que nessa altura o prejuízo das famílias já rondava 1,4 mil milhões de euros, com a diminuição de rendimento a afetar 60% da população ativa.
Uma realidade sentida também no Banco Alimentar Contra a Fome, que registou um crescimento brutal no número de pedidos de ajuda. Segundo a sua presidente, Isabel Jonet, num único mês, cerca de 50 mil pessoas que ficaram sem rendimentos pediram ajuda. E são pessoas oriundas das mais diversas áreas, desde dentistas a cabeleireiros, pessoas ligadas ao turismo, fisioterapeutas ou motoristas.
Lá em casa nem tudo vai bem
Isabel Sá é cardiologista no Hospital de Santo António, no Porto. Tem quatro filhos: Mariana, de 10 anos; Joana, de sete; Sofia, de cinco; e o pequeno Lucas, de 20 meses. O marido, também cardiologista e especialista em cardiopatias congénitas de adulto, é alemão e ia começar a trabalhar em março. Não foi. A partir daí, as coisas complicaram-se muito para esta família que vive em Lavra, Matosinhos. "Financeiramente não é fácil", diz a médica que também viu o seu salário mais magro desde que a unidade onde trabalha decidiu colocar os seus profissionais uma semana em casa e uma semana no trabalho. Tudo o que aconteceu nos últimos dois meses só serviu para deixar Isabel Sá amargurada e revoltada. Por exemplo, o facto de ter o bebé em casa e estar a pagar 50% da creche. E o facto da Covid-19 ter tido o efeito perverso de esconder todas as outras doenças: "A Covid é importante, é uma pandemia, mas há muitos outros doentes que estão a morrer de outras patologias. Desde março, por exemplo, que não temos enfartes no Santo António. A Covid tratou dos nossos enfartes todos. Antes, não havia vagas. O S. João está igual e o País está todo igual".
Quanto ao dia a dia, como a família é grande, os miúdos fazem companhia uns aos outros, não têm saudades da escola, mas sim dos amigos. As horas de levantar, de comer e de deitar são sempre as mesmas. E como não moram num grande centro urbano ainda conseguem apanhar ar puro, correr um pouco e até andar de bicicleta. O Christoph trata da comida... e bem.
Rotinas marcam os dias
A nível financeiro, o salário de Ana também ficou mais curto - recebe 66% - mas os ganhos do marido aguentam o barco. Mais difícil tem sido a gestão das rotinas. A alvorada é às 08h00 - antes era às 05h30 - e o dia começa a correr a partir daí. "Tem sido um bocado complicado, não é fácil com três crianças em idade escolar, ter de fazer de auxiliar, manter as tarefas diárias deles, fazer aulas de ginástica, de dança, de teatro, tudo para não caírem em aborrecimento e mantê-los ativos. É o dia todo a tratar deles e da escola deles". Enquanto uns estão a assistir à telescola, os outros têm de fazer os trabalhos de casa ou têm videoconferências com os professores e com a turma. Na casa de Ana, as aulas decorrem na sala e foi tudo montado a preceito. Até têm os nomes na secretária, onde estão os equipamentos: um tablet, um computador Magalhães da família e outro Magalhães emprestado pela escola.
Na casa de Sara Pessoa, 37 anos, empresária, há toda uma logística já montada e os mais velhos ajudam a cuidar dos mais novos. Sofia tem 12 anos, Alice nove, Petra quatro e Simão tem três. As rotinas estão bem oleadas e o moral está elevado porque esta família, que vive em Cotovia, Sesimbra, tem oportunidade de respirar o ar puro do pinhal. "Saímos uma vez por dia, depois da sesta do Simão." Sara tem dois ginásios femininos que estão fechados e Pedro é professor. Estão os dois em casa. De resto, a hora da sesta parece ser a mais proveitosa. Enquanto o mais pequeno dorme, as mais velhas estudam e a mãe trabalha, elaborando planos de exercícios para colocar no Facebook dos ginásios. "Estar em casa o dia todo, à espera que o tempo passe, não dá. Temos aproveitado para retocar a casa, já pintámos um quarto, já remodelámos o nosso e estamos a fazer mudanças no quarto das miúdas".
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