A crise bateu à porta das famílias. Muitas, antes da corda prender na garganta, optam por vender os carros a leiloeiras. Outras, vêem os veículos serem confiscados por bancos e financeiras. Os leilões são os que se safam melhor na fotografia – continuam a vender. Já os comerciantes continuam a comprar mas com restrições. A Domingo foi espreitar e ver o que se passa.
Os modelos esperam em filas a perder de vista o sinal de partida. Aguardam que os conduzam à passadeira vermelha onde olhares gulosos lhes vão cobiçar as virtudes e ponderar os defeitos. A crise também se sentou ao volante do sector automóvel, mas pela plateia do leilão passarão até ao final deste dia quase duzentos comerciantes ansiosos por um modelo a bom preço. O namoro vai ser discreto. Não convém que o vizinho do lado perceba o interesse. A concorrência é feroz. E, embora a estratégia não se aprenda no código da estrada, eles sabem-na toda. Um piscar de olhos, um lábio mais levantado, um gesto com a mão que podia passar bem por um enxotar de uma mosca mais atrevida. A discrição dá frutos – os valores soem sem que se perceba, já passou os 500 e já está em 600 e, de repente, pasme-se, o carro foi comprado por 10 000 euros.
Mas como? Por quem?, perguntará quem desconhece as artimanhas do negócio. Observando a bancada dir-se-ia que ninguém se interessou; não há manifestações aparentes de júbilo. Talvez um joelho mais trémulo, uns óculos a cair para a ponta do nariz, o olhar de esguelha para a assistência em redor. Mas sem alarido. Há até quem abane ao de leve uma folha de papel em sinal de interesse e quem incline o pescoço como que a precaver um torcicolo. Num leilão, a única voz que levanta o tom é a de quem apresenta as viaturas. Hoje, é Pedro Belo quem dá início ao desfile de vaidades. Endireita a gravata, aclara a voz, exalta a qualidade do que por ali vai passar. O administrador da Leilostock faz-se ouvir através de um microfone com auricular que faz lembrar os dos cantores em concerto.
Uma hora antes do leilão de automóveis usados começar, o ambiente era bem mais ruidoso. Às vozes juntava-se o cheiro característico do churrasco. Não um churrasquinho qualquer de canto de jardim. Um churrasco com tudo a que tem direito. A música brasileira em altos decibéis embala os corpos. Nos copos de plástico entornam-se caipirinhas sugadas por palhinhas vermelhas. A picanha dá voltas no assador e os comerciantes juntam-se para apreciar o espectáculo que os vai almoçar.
'É para aquecer', explica Pedro Belo. Os ânimos e as carteiras que, dentro em pouco, ficarão vazias. E não é por pagar o almoço. 'É uma oferta, um investimento nos meus clientes, quero que se sintam bem recebidos', acrescenta Pedro, sem adiantar o valor despendido com o ‘mimo’.
Paulo Duarte chegou atrasado e com pressa. A falta de tempo não o deixou provar a elogiada picanha mas o comerciante aproveitou os minutos que antecederam o leilão para inspeccionar os veículos no estacionamento. Senta--se ao volante, põe o motor a trabalhar, passa a mão nos estofos, sai do carro e abre o capô. Não pode escapar nada.
'Depois de perceber os modelos que me interessam vejo logo a quilometragem'. É sagrado. Paulo está no sector há 19 anos, 10 dos quais no comércio de viaturas usadas. Alturas houve em que vinha aos leilões procurar automóveis de gama alta, mas o mercado mudou. 'Os clientes do meu stand [na Amadora] começam a procurar o mais barato', avança, lembrando, com saudade, a época ‘áurea’ de 2000/2002, em que vender era bem mais fácil.
'Agora a maior dificuldade tem a ver com a falta de liquidez do cliente que está sobrecarregado de créditos. Quando as financeiras começam a analisar os papéis, decidem muitas vezes não atribuir o crédito', continua, garantindo que 'mesmo as pessoas que têm mais poder económico já não trocam tão frequentemente de carro como antes'. O tempo é de vacas magras.
Tão magras que há cada vez mais pessoas a recorrer aos leilões para vender os automóveis. 'Muitos dos particulares que nos procuram para entregar os seus veículos fazem-no porque existe um maior aperto e têm de se libertar de algumas responsabilidades', conta Pedro Belo. Mas a crise senta-se em várias frentes. Também o número dos automóveis entregues às leiloeiras pelos bancos e pelas financeiras aumentou – envolvidos em processos de contencioso. 'Cerca de 300' aguardam no parque de estacionamento que os contratos e as penhoras sejam resolvidos para poderem ir a leilão. 'As financeiras não têm espaço para a quantidade de carros que estão penhorados, então nós guardamo-los'. Um Volvo e um Mercedes que observamos num canto do parque são dois espelhos vistosos desta situação – carro em contencioso não significa carro modesto. Em qualquer dos casos, o automóvel pode ser recuperado pelo proprietário: se o processo entretanto se resolve entre o banco e o particular, o carro segue de novo viagem para a mão do legítimo dono.
Uma situação recente, alerta Pedro, é o facto de a Banca, ao ver-se a braços com o aumento de devedores, começar a precaver-se nas concessões de crédito. 'Penso que a entrada destes carros de contencioso para leilão irá abrandar em breve dada a maior prudência dos bancos'. Quando não há acordo, o veículo é leiloado em praça. No leilão de hoje, por exemplo, há 50 nesta situação – meia centena de automóveis que os bancos confiscaram a pessoas que não os conseguiram pagar e que são agora observados pelos comerciantes ávidos de bons modelos a bons preços. 'Um bom negócio é conseguir vender um automóvel com uma boa margem', esclarece Paulo Duarte. Pena, lamenta, é que 'os bons negócios já tenham passado há muito tempo'.
'Então meus senhores, ninguém me diz nada? Este Fiat [Ducato] tem de valer mais de 3000 euros, é de 2001, meus senhores. É um bom negócio, meus senhores. Os documentos foram extraviados mas está livre de lesões. E este Citroën [Jumper], meus senhores, está em praça por zero euros, tem duplicado de chaves. Tenho 1000, quem dá mais? 1500 já tenho, 1500, ai já tenho 3000, este vale mais, meus senhores. Aproveitem que tem duplicado de chaves. Vem aí outro de zero euros meus senhores e olhem que este [Volkswagen Passat] tem ar condicionado e jantes em liga leve que eu estou a ver, quem dá mais meus senhores?' Pedro gesticula, o olhar à procura de quem dá mais, de quem ajuda o negócio. À procura dos tais piscares de olhos e inclinações de pescoço, que para os comuns mortais são trejeitos e para ele são propostas. Sinónimo de dinheiro a entrar.
Desta vez, José e Fátima Silva vieram ao leilão para reclamar de uma compra anterior mas não resistiram a dar uma espreitadela. Uniram o amor e o trabalho e gerem, em conjunto, um stand de automóveis em Corroios. Fátima diz que de 'há três anos que o negócio está péssimo e desde há três meses péssimo-péssimo'. Paulo Renato não podia estar mais de acordo. 'A crise não deixa as pessoas comprar. Antes ganhava--se algum, agora só dá para o dia-a-dia', lamenta, desabafo comum a Nuno Miguel. 'Vendo através de anúncios na rua, nos jornais e na internet. A gama mais baixa é o que se está a vender melhor, mas mesmo assim está mau...'
Tão mau que muitos comerciantes saíram do leilão de mãos vazias. Preferiram não arriscar. Nesta altura do campeonato tudo o que eles não precisam é de stocks ‘empanados’. Em 300 veículos, foram vendidos 148. É altura de arrancar. O dinheiro não chegou para a viagem. |
LEILÕES NÃO SOFREM MAS VÊEM SOFRER
Há um sem-número de leiloeiras em Portugal a par da Leilostock. A BCA é uma delas – foi uma das primeiras no País. Empresa multinacional com perto de 40 centros em toda a Europa (3 são em Portugal) garante uma taxa de venda por leilão de 50% e de venda final de 90%. Tem, à semelhança da Leilostock, 'uma percentagem de veículos provenientes de instituições bancárias e financeiras', o que, explica Mário Claro, 'é normal que aumente em época de crise'. Mas o director de Marketing da BCA também acredita que o facto de as financeiras estarem mais prudentes na concessão dos créditos vai fazer com que o número de carros nesta situação tenda a diminuir nos leilões. Atestando que no último ano a empresa 'até conseguiu crescer', Mário Claro justifica: 'não sentimos muito, os nossos clientes [comerciantes] sentem mais a crise do que nós'. Já a Leiloeira LDA, que trabalha com os tribunais, as repartições de finanças e os credores e organiza leilões com todo o tipo de equipamentos, afirma não ter sentido a crise. No entanto, avança, o produto que tem sido o mais difícil de escoar: 'o mobiliário de escritório'. Já os imóveis industriais e habitacionais são o mais fácil.
NEGÓCIOS FECHADOS
A Leilostock cobra ao fornecedor 25 euros por taxa de ‘passagem’ e 180 de comissão de venda. Já ao comprador é cobrada uma taxa de aquisição de 200 euros. Esta última parece compensar. Por exemplo, neste leilão um veículo comercial Citroën C3 Entreprise 1.4 HDi X, de 2004, foi arrematado por 3900 euros (sem IVA), sendo o seu valor comercial de 5920 euros. Um Volkswagen Golf Plus 1.9 TDi Confortline, de 2006, foi vendido por 16 900 euros (com IVA), sendo o seu valor comercial de 20 220 e um Opel Astra 1.3 CDTi Enjoy, de 2007, foi vendido por 12 600 (sem IVA), sendo o valor comercial de 17 080. Neste, a venda foi provisória por não atingir o valor pretendido.
Nota: as cotações dos usados são da _revista ‘Auto Motor’, do grupo Cofina, _e incluem IVA.
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