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Murros na miséria

Numa pequena escola de boxe da Outorela formam-se campeões a partir dos miúdos da rua. Para muitos deles, uns socos bem dados são a alternativa a caminhos perigosos.

02 de janeiro de 2005 às 00:00

Vim aprender boxe porque é bom. Mais vale fazer isto do que estar a roubar”, diz José Luís Quaresma, um miúdo de etnia cigana de treze anos, curtos para a idade. Muito sério, debita os argumentos dos adultos. Justifica-se. “Assim já tenho com que me divertir”.

A estranheza ao princípio da conversa desvanece-se logo. Anda no sexto ano numa escola, da Outorela, que tem nome de poetisa, o de Sophia de Mello Breyner. Falo-lhe dos poemas e contrapõe, com firmeza: “Ela é que escreveu ‘A Menina do Mar’.”

Na Outurela, concelho de Oeiras, os prédios modernos e sofisticados alternam com outros de construção social. No antigo bairro de barracas, se a degradação imobiliária é coisa do passado, a exclusão social da maioria dos habitantes (muitos de minorias étnicas), é uma realidade. “Moro nos prédios amarelos”, revela Zé Luís, “são os prédios dos ciganos. Até nisso houve racismo”.

Rui Rocha tem 12 anos e anda na mesma escola que o Zé Luís. Um sorriso largo ilumina-lhe a cara. Conta que começou a aprender boxe há um ano, quando António Ramalho instalou o ANRAM Boxing Club - Escola de Boxe da Outurela, ali no bairro. Teve de parar, por ter excesso de gordura no coração, mas agora está de volta ao ringue.

O Rui e o Zé Luís estrearam-se em apresentações que antecedem os combates competitivos, mas não escondem a vontade de participar nos campeonatos.

O PAI NATAL DO BOXE

“Para combater é preciso treinar muito e ter uma grande paixão pelo boxe. Muita dedicação, como em qualquer emprego.” Ex-pugilista e actual treinador da Escola de Boxe da Outurela, António Ramalho sustenta que a prática do boxe já não tem classe social. “Só praticavam boxe rapazes de bairros não muito famosos, o pessoal da noite. Já não é assim.” E dá o exemplo do Padre Edvaldo Ivo, pugilista profissional.

Entretanto, Ramalho cumpre o papel de que se investiu. O projecto de integrar miúdos socialmente através do pugilismo começou há sete anos, na Sociedade Musical Aliança Operária Futebol Clube da Outurela.

“Começámos a treinar os miúdos gratuitamente. A única ajuda que tive foi do José Machado, que de vez em quando nos patrocina viagens ao estrangeiro e compra de camisolas e luvas. Nós os dois somos o Pai Natal do boxe.”

A escola abriu com 30 ou 40 miúdos, o que foi uma complicação para quem só tinha treinado seniores. “Não olhámos apenas para a vertente desportiva - o contrário seria difícil porque os miúdos eram muito endiabrados - mas também para o lado social. Ensinámo-los a serem disciplinados, a terem boas maneiras não só dentro da sala como fora da sala. E começámos a ter sucesso. É claro que entre dez, há dois que vão por outros caminhos.”

OS MARGINAIS

Já perdeu miúdos para a marginalidade. “Tive uns que eram uns diabretes e faziam o que não deviam fazer.” Há, porém, um caso particular de que lhe ficou muita pena. Aos dezassete anos Marco Boaventura, várias vezes campeão nacional de boxe amador, acaba de ser condenado a quatro anos de prisão. Órfão, vivia com os irmãos e dizia que era o boxe que o tirava do mau caminho. Mas “viu-se com amigos maus, sem nada para fazer, sem ninguém que o orientasse…”

O que sucedeu foi que há um ano o clube da Outurela fechou as portas à escola. “Os sócios, que só lá iam beber copos, ao fim de cinco anos acharam que o boxe lhes dava prejuízo. O presidente até gostava que lá estivéssemos mas que podia fazer contra aquela turma toda? Durante o ano em que não estive aqui, o Marco, que tinha crescido como homem - muita gente já lhe tinha respeito - perdeu-se. Começou a portar-se mal e teve um dissabor.”

RECOMEÇAR

A Escola de Boxe ocupa agora um novo espaço, o Ginásio de S. Marçal, cedido gratuitamente e equipado para o efeito pela Câmara Municipal de Oeiras. “Estava na zona rica da Outurela e vim para a zona má da Outurela mas as pessoas aqui aprendem a conhecer-nos e são espectaculares.”

O sonho de criar uma equipa cumpriu-se entretanto. “Há miúdos que começaram comigo com 12 anos e agora já têm 17, 18 anos, quarenta ou cinquenta combates e foram várias vezes campeões nacionais e internacionais. Tenho dois miúdos com 17 anos com um campeonato da Europa ganho. Um é o José Rodrigues e está agora em Inglaterra a treinar porque tem lá família.”

E a escola oferece agora às mulheres interessadas a hipótese de praticar boxe, de manutenção ou competição. Maria Fernanda Moreira, de 32 anos, foi a percursora das aulas. “Quando vim cá, só havia rapazes”. Pediram-lhe para juntar um grupo de raparigas e foi o que fez. Não está interessada em combater, apenas quer manter uma actividade física regular mas mudou de ideia sobre a violência do pugilismo, a que só tinha assistido na televisão, quando viu a Isabel Almeida a combater ao vivo e gostou.

Ramalho orgulha-se de treinar a “melhor pugilista profissional portuguesa”, a Dina Pedro, que além de campeã nacional de boxe é campeã do mundo de kickboxing. Além dela, treina Isabel Almeida, também campeã nacional amadora. Actualmente, a Isabel não tem em Portugal quem a queira enfrentar. “É difícil lutar com ela porque é muito brava. Não me importava de ter cá meia dúzia de rapazes como ela e era o melhor treinador do mundo.”

OS CAMPEADORES

“Com os miúdos é como se tivéssemos um comando na mão. Tu assobias deste lado e eles já sabem que é para ir para o outro lado”. A entrega deles é que conquistou Ramalho.

Quando há um ano veio para a escola, o Ricardo Ferreira era um miúdo franzino. Agora, com treze anos, seis combates e seis vitórias depois, diz que quando sobe ao ringue se sente nervoso mas não tem medo. Ouve as palmas do público mas elas não o perturbam.

O gosto pelo pugilismo ganhou-o a ver combates na Eurosport e quando quis aprender os pais não o contrariaram. Ricardo assume-se como um miúdo “certinho”. Na escola, falhou um ano - anda no sexto - porque partiu um pé e esteve três meses internado no hospital.

Quer ser pugilista mas no dia em que assistimos ao treino estava a aprender o sabor da derrota. O “campeão” daquele momento era um miúdo da idade de Ricardo, o Olívio Almeida, chegado há três meses de Cabo Verde, onde vivia na ilha de S. Filipe. “Ele tem a mão dura”, explica o Zé Luís, enquanto Olívio sorri, timidamente, e se escapa à conversa, quase impossível com a algazarra que vai na sala.

“Estamos num bairro em que os miúdos têm outro modo de vida. Uns não querem trabalhar, outros estão bem ao sol, uns dizem aos pais que vão para a escola e ficam na rua. É um sítio para onde muita gente não gostaria de vir. Mas é uma ideia errada. Tenho aqui miúdos de nove a 11 anos que têm um carinho enorme por mim. A Sport TV fez uma reportagem sobre o Marco (Boaventura) que me pôs a chorar a mim e a todos que a vêem. Ele diz: ‘Se o Sr. Ramalho estiver no fim do mundo e precisar de mim, vou lá ter com ele’. Não há dinheiro que me pague isso.”

ADRENALINA E NERVOS

Um dos campeões da escola é o Bruno Oliveira, que começou aos 13 anos, quando pesava apenas 39 quilos. No dia em que fez 17 sagrou-se campeão nacional na respectiva categoria e foi uma alegria.

Bruno enveredou pelo pugilismo porque o pai lhe contou que tinha feito alguns combates de boxe. Assume que em mais novo fez algumas malandrices pelo bairro; mas a prática do desporto ajudou-o a disciplinar-se. “Prefiro estar aqui do que andar lá fora”, diz. Com 21 anos, regressou aos treinos, depois do interregno provocado pela saída da escola do Clube da Outurela, e tenta apurar-se para disputar a Taça de Portugal. Motivado em voltar ao ringue, anima-se à pergunta do que sente quando o pisa? Responde, convicto: “Adrenalina”.

Paulino de Castro Andrade é um desportista de longa data. “Sempre gostei de praticar desporto”, assume. Foi ao serviço da selecção cabo-verdiana de voleibol que decidiu fixar-se em Portugal, no decurso de uma competição na Madeira. Com 21 anos e entregue a si - o tio, que o acolheu na Outurela, trabalha actualmente nos Açores enquanto que a mãe permanece em Cabo Verde - faz canalizações na via pública em Oeiras e Amadora.

Acha que é calmo a combater mas foram os nervos que lhe custaram duas derrotas em cinco combates. “Se vou combater, vou para tentar ganhar. Quando perdi era iniciado e os meus adversários tinham mais de dez anos de boxe. Foi aquele nervosismo e perdi. Fiquei bloqueado”.

António Ramalho explica: enquanto a escola esteve fechada o Paulino treinou em Talaíde. “O treinador geriu mal o percurso dele e apareceu logo a combater nos consagrados. Não meto atletas em cima do ringue sem terem qualidades”. Que o Paulino tem. O facto é que vai jogar na final da Taça de Portugal. O treinador diz, porém, que “ainda não está mentalizado para o sacrifício. Também passa todo o dia num trabalho duro, a abrir buracos”.

LUTAR POR GOSTO

“O que faz mal ao boxe são aqueles filmes como o ‘Rocky’ em que aparecem as pessoas ensanguentadas, cheias de nódoas negras. São coisas bárbaras”. Terá sido a ideia de violência, associada ao boxe, que encerrou o primeiro ciclo da escola de boxe da Outurela? O facto é que tal interrompeu um período de vitórias e prestígio. “Ganhámos campeonatos sucessivos, tivemos vários campeões nacionais e acabei por ter futuros campeões do mundo a treinar aqui comigo”. António Bento e Eugénio Monteiro foram alguns deles.

Não há receitas para fazer campeões mas há regras que fazem a bondade de um pugilista. António Ramalho conhece-as bem: “Para se ser um bom pugilista é preciso dedicação, aprender a respeitar as pessoas. Há que criar primeiro uma base como homem e só depois daí é que podemos pensar em campeões. É preciso ter cabeça, coração e, acima de tudo, o que os homens têm entre as pernas que é uma enorme coragem”.

POR TRÁS DA PORTA NEGRA

“Se não fosse o boxe tinha entrado por uma porta negra da vida. Morava num bairro em Algés mas havia muita droga por fora, ali na Pedreira dos Húngaros. O boxe é que me disse ‘tens de continuar a treinar’. Fui ao campeonato do mundo de juniores, fui medalha de bronze e apurei-me para os Jogos Olímpicos”. Não chegou a ir. “Naquela altura não havia dinheiro, o boxe era muito pobre. Continua a ser, mas há outros apoios, camarários, federativos.”

António Ramalho iniciou-se no pugilismo no Atlético de Algés e daí transitou para o Belenenses, onde permaneceu 12 anos. Se era bom? “Razoável. Estava entre os melhores.” Não é dizer pouco. “Tinha dezanove anos quando apanhei as grandes vedetas do boxe nacional já com vinte e tal, trinta anos. Apanhei o João Miguel Paquito, que foi o único pugilista português a ir aos jogos olímpicos. Combati duas ou três vezes com ele. Aprendi muito.” Era o tempo em que para chegar a uma final, demorava-se um mês, mês e meio. “Tínhamos sete ou oito rapazes em cada categoria. Por isso digo que antes havia maior dedicação. Hoje somos todos finos. Gostamos de ir ao cabeleireiro, de não ter nódoas negras.”

Actualmente com 44 anos, é dono de uma pequena empresa de reparações mas o negócio vai mal. Treinar boxe consome-lhe quase setenta a oitenta por cento do tempo. “Quando comecei aqui só estava habituado a treinar seniores. Agora adoro treinar meninos.”

“Subir ao ringue é para poucos. Mas para saber isso é preciso subir”. Isabel Almeida fala com a mesma desenvoltura que lhe atribuem na luta.

A professora de ginástica iniciou-se no pugilismo porque a desafiaram a frequentar umas aulas no clube onde ensinava. E não é que experimentou e gostou? Já não foi por brincadeira, porém, que aceitou estrear-se nos combates mas tem garra e o problema é que hoje não tem adversária na categoria de amadores.

Em Portugal há apenas oito a dez mulheres pugilistas e Isabel diz que se ainda há umas “que batem à mulher também já há mulheres que batem à pugilista”. Muito nervosa antes de subir ao ringue – “até as luzes mexem comigo” – transfigura-se perante a adversária. “Olho em frente e só vejo a rapariga contra a qual estou a combater”.

Gosta muito de trabalhar com mulheres na Escola de Boxe da Outurela, onde preza muito a humildade e a simplicidade de todos. Isso não a impede de apreciar o que aprendeu com os colegas. “Treino sempre com homens. Eles são muito bons. Progredi muito num curto espaço de tempo porque tive a ajuda deles”.

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