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"Não desejo a ninguém o que passámos"

A minha companhia esteve nas zonas mais arriscadas mas só sofreu duas baixas. dois camaradas morreram sem nada podermos fazer.

24 de março de 2013 às 15:00

Parti para Angola a 20 de julho de 1963 no navio ‘Vera Cruz’, com chegada a Luanda no dia 29 do mesmo mês. A nossa companhia partiu para Ambrizete a 3 de agosto pelos seus próprios meios, onde chegámos no dia 5, recebendo no dia 8 ordem de partida para Quibala, onde sofremos a primeira flagelação sem grandes consequências. Permanecemos em Quibala até 22 de setembro, onde desenvolvemos uma intensa atividade na operação ‘Gato Furioso’ com três grupos de combate durante nove dias: um na Pista de São Pedro, perto de Bessa Monteiro, e dois que entraram a coberto de fogo de artilharia para uma operação em matas de acesso à famosa mata da Sanga. Naquela zona, tinham morrido 15 açorianos poucos dias antes.

Findo este período, recebemos ordens para regressar a Ambrizete e fomos encarregados de manter a nova rede de segurança à volta da localidade em arame farpado. A 12 de outubro, deslocámo-nos para Palo Novo, para iniciar a construção de um aquartelamento e passámos a defender operacionalmente a zona. Deixámos várias construções à companhia que nos rendeu. Partimos a 1 de novembro para Luanda em viaturas civis, depois por via férrea para Malange, de onde voltámos a partir para Luanda. Chegámos a Camissombo no dia 9 de novembro de 1963, e dois grupos de combate foram imediatamente destacados, um para Lóvua, outros para Luia, uma vez que o trabalho operacional só era feito em zonas suspeitas. Aliás, a nossa companhia esteve nas zonas piores e foi a única que fez o setor A. No Lóvua, colaborámos em ações de apoio às populações locais, como ajuda médica, construção da escola, de uma igreja e também de um monumento de apoio aos mortos do Batalhão. A 21 de setembro de 1964, voltámos a Luanda, onde recebemos ordens para assumir a responsabilidade do subsetor D no Norte de Angola.

Mortos em combate

A nossa companhia recebeu a fazenda Maria Fernanda, considerada a zona de maior risco para o Batalhão. Foi destacada uma secção para a fazenda Margarida, onde se encontrava a pista que servia a Maria Fernanda. Foi aqui que a companhia sofreu as primeiras duas baixas. A 28 de janeiro de 1965, morreu em combate o soldado José Correia Ventura. Estávamos a fazer uma emboscada, e segundo a lei militar era para dar cabo de tudo o que aparecia à frente, para ninguém contar a história. As coisas estavam a correr bem, tanto que já estávamos a comer uma lata de atum para celebrar os dois anos de comissão, quando ele dispara sem querer um tiro que lhe faz sair um pulmão. A 15 de abril de 1965, morreu em combate, num ataque sofrido – entre a fazenda Margarida e a Maria Fernanda – o 1º cabo Ilídio Alexandre Pires. A guerra é dura, e ver os camaradas morrerem à nossa frente é uma coisa difícil de suportar, não desejo a ninguém o que passámos.

O ‘Vera Cruz’ nos levou, o ‘Vera Cruz’ nos trouxe de volta. Chegámos a 9 de setembro. Em Angola, além da guerra, também deixámos obra feita. Soldado não é só aquele que foi preparado para a guerra, nem só enclavinhando uma espingarda ou empunhando uma metralhadora se prestam serviços relevantes. O nosso Batalhão vai reunir-se para um convívio no dia 1 de junho. Nesse dia, no nosso pensamento vão estar aqueles cujo sangue tingiu de vermelho as picadas em Zala, Zemba e Maria Fernanda. O problema é que decorridos 39 anos de democracia, esta nação valente e imortal ainda tem por saldar a dívida de fazer regressar a solo pátrio, ao seio dos seus familiares, aqueles que deram a vida em defesa da bandeira portuguesa.

Comissão

Angola (1963-65)

Força

Batalhão de Caçadores 451, Companhia de Caçadores 450

Atualidade

Reformado, 70 anos, casado e dois filhos

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