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NAS ASAS DO AMOR

Era linda, famosa e destroçava corações. Chama-se Maria da Conceição e imortalizou-se como a Tatão de ‘O Pai Tirano’. No auge da carreira disse adeus ao cinema, sem avisar. Apaixonou-se por um americano com quem descobriu um mundo diferente do Portugal a preto-e-branco. Hoje vive recatada no Estoril, onde a fomos encontrar.

11 de abril de 2004 às 00:00

Lisboa, 19 de Setembro de 1941. A sala do antigo cinema Éden, na Praça dos Restauradores, quase veio abaixo quando uma jovem alta, loira, vestida de preto e com os ombros descobertos, subiu ao palco para agradecer os aplausos do público, rendido à personagem Tatão do filme ‘O Pai Tirano’. Era a estreia de Leonor Maia, ou melhor Maria da Conceição, o seu nome verdadeiro, no cinema e tudo indicava que ia ter uma longa e próspera carreira. Logo no dia seguinte, o ‘Diário Notícias’ dava-lhe os parabéns: “Finalmente surgiu uma rapariga de quem nos podemos orgulhar. Sabe andar, falar é bonita e tem uma voz diferente”.

Numa década participou em 14 filmes, dos quais se destacam ‘Ave de Arribação’, ‘Camões’, ‘Uma vida para Dois’ e ‘Sol e Toiros’. Numa Lisboa cinzenta e triste, a beleza de Tatão não passava despercebida. A dada altura, tornou-se impossível sair à rua – as pessoas vinham ter com ela, pediam-lhe autógrafos e fotografias. Houve até quem se lembrasse de comercializar um ‘puzzle’ com a sua imagem.

O seu estilo, sofisticado para a época, fez sucesso entre as jovens raparigas. Tal como no filme ‘O Pai Tirano’, Tatão também usava as saias ligeiramente abaixo do joelho e não dispensava os saltos altos. Ela era a imagem da mulher moderna dos anos 40.

No cinema, trabalhou sob a direcção de António Lopes Ribeiro e Leitão de Barros e ao lado de alguns dos nossos maiores artistas, como Vasco Santana, Laura Alves, Ribeirinho, João Villaret, Carmen Dolores ou Vergílio Teixeira. Fez amizade com Amália Rodrigues e foi ao lado da fadista que voltou a subir ao palco do Éden para receber um Óscar, um dos prémios mais ambicionados pelos actores portugueses, pelo seu papel em ‘Serra Brava’, em 1948.

O responsável pelo então Secretariado Nacional de Informação, António Ferro, fez a introdução: “As estatuetas vão para a Amália, pelos fados lindos que cantou nas ‘Capas Negras’, e para a Tatão, por todos os bons bocadinhos dos filmes maus em que entrou”.

O discurso não ofendeu a actriz, que estava a tornar-se cada vez mais popular. Num futuro próximo ambicionava vestir a pele de Maria Eduarda, uma das personagens de ‘Os Maias’, de Eça de Queirós. Mas isso nunca aconteceu.

Misteriosamente, a artista Leonor Maia viria a abandonar a carreira artística no seu apogeu. A razão? Perdeu-se de amores por James Pritchard, um coronel da Força Aérea americana, com quem casou em 1953, numa pequena igreja Luterana, na Estrela.

Um mês depois partiu para Washington. Depressa se torna numa cidadã do mundo: descobre os encantos de Londres e de Paris. Só regressaria a Portugal na década de 70, três anos antes do 25 de Abril. E nessa altura já veio acompanhada pelos seus dois filhos, Michael James, um controlador aéreo hoje com 42 anos, e Paul Frances, advogado, de 39 anos.

PRISIONEIRA NO CONVENTO

Seis décadas depois da estreia de ‘O Pai Tirano’ no cinema Éden, a Domingo Magazine foi encontrar Maria da Conceição Vasconcelos no Estoril, onde vive com o (muito reservado) ex-diplomata James Pritchard, numa majestosa moradia. Confessou-nos que nunca se arrependeu de ter trocado as luzes dos estúdios de gravação pela oportunidade de acompanhar o marido nas suas deslocações pelo estrangeiro. Mas na sala de estar onde nos recebe, permanecem intactas as recordações de uma época de ouro do cinema português.

“Tenho uma série de fotografias desse tempo e até guardei alguns recortes de jornais”, assegura a ex-actriz. Aproveita a ocasião para olhar mais uma vez para aqueles retratos a preto e branco e sai-lhe: “Gostava de ter sido manequim. Sempre fui muito fotogénica. Já em Lourenço Marques, onde nasci, era considerada uma das mulheres mais bonitas”. Não é mentira.

Basta olhar para o quadro que está pendurado numa das paredes da sala. Os longos cabelos louros e olhar penetrante eram a sua imagem de marca. “O mais engraçado é que não me identifico nada com essa pintura. Não sou seu. O quadro é triste e eu nunca tive razões para ser infeliz”, reconhece.

Da infância passada em Lourenço Marques (Moçambique), pelo contrário, só guarda boas recordações. Foi ali que nasceu, a 8 de Dezembro, Dia da Nossa Senhora da Conceição – santa de quem herdou o nome. “Como as minhas irmãs tinham alguma dificuldade em pronunciá-lo, começaram-me a chamar Tatão”. A terceira das seis filhas de Ernesto de Vasconcelos, director do Banco de Portugal, e de Maria Augusta, dona de casa, passava os dias de fato de banho, descalça e a brincar na praia. A família vivia numa casa com vista para o mar e as refeições eram tomadas ao ar livre, na varanda.” Era um verdadeiro paraíso. Cresci livre como um passarinho”, recorda. Pelo menos até aos seis anos. Quando chegou a altura de ir para a escola, os pais optaram por colocar as três irmãs mais velhas, Maria Francisca, France Maria e Tatão, num convento de freiras, em Joanesburgo (África do Sul).

Privada da liberdade de Lourenço Marques e das passeatas à beira-mar, foi-lhe difícil habituar-se a uma vida de clausura – e o mais curioso é que até ia com vontade de se tornar freira. “Mas depois vi tanta maldade que acabei por mudar de ideias. Chamavam-me rebelde porque eu não cedia facilmente. Sabia que os meus pais estavam a pagar uma pequena fortuna e por isso exigia melhores condições”, conta Tatão, que durante os dez anos que lá viveu, travou uma dura batalha com o…feijão-frade. Sempre que a dita leguminosa vinha para a mesa, ela nem lhe tocava. As irmãs católicas não gostavam da sua irreverência e como castigo, não a deixavam comer sobremesa. E para aprender a lição, em vez de pão ao pequeno-almoço, as freiras voltavam a dar-lhe feijão-frade. A cena sucedia-se dias a fio. Até que Tatão acabava por ceder, tal era a fome.

Tal como uma prisioneira a cumprir pena, também ela se entretinha a contar os dias que faltavam para sair da ‘prisão’. E à medida que se tornava adolescente, ia-se sentido cada vez mais revoltada. O momento mais humilhante deu-se quando a obrigaram a ajoelhar-se e a beijar os pés da Madre Superiora no dia da Primeira Comunhão – como forma de pedir perdão pelos pecados cometidos. Tatão teve vontade de lhe trincar o dedo gordo do pé, mas aguentou-se.

O pior foi depois. “As mãos tremeram-me na altura de pegar na vela acesa. Como íamos todas em fila, acabei por pegar fogo ao véu da colega que estava à minha frente. As freiras ficaram convencidas que eu era um diabo”

E SE UM DESCONHECIDO, DE REPENTE…

O regresso a Lourenço Marques deu-se pouco tempo depois. Para estupefacção da família, ela e as irmãs só tinham aprendido a história da Inglaterra, a fazer uns bolinhos, a servir chá e a rezar a missa em Latim. A formação académica no convento destinava-se, sobretudo, a ‘meninas’ de boas famílias talhadas para casar com homens ricos. Não precisavam de aprender a cozinhar, a bordar ou a tratar de uma casa – para isso é que serviam os empregados.

Mas a família Vasconcelos não pensava assim. Antes de se mudarem para Lisboa, as seis irmãs tiveram aulas particulares com uma explicadora que lhes ensinou, finalmente, Matemática e a História de Portugal. “Essa é uma das minhas últimas recordações de Lourenço Marques. Depois saímos de lá porque a minha irmã mais velha tinha um problema de saúde e precisava de cuidados médicos. Deixámos o paraíso. Foi terrível”, recorda Tatão.

Por Lisboa, sentiu ódio à primeira vista. “Sofri muito com o frio. Estava habituada a andar descalça e a usar pouca roupa. Na capital, cheguei a ir às matinés com uma botija de água quente debaixo do casaco”. Mas o pior estava para vir.

A perda da inocência chegou com a repentina morte do pai, Ernesto, que se encontrava em Moçambique a tratar de negócios. Tatão, as irmãs e a mãe já estavam a viver no Estoril (onde descobriram um ambiente parecido ao de Lourenço Marques) quando foram surpreendidas pela terrível notícia.

É nessas alturas que se vai buscar forças onde se pensava que não existiam. “A minha mãe teve de nos pedir para irmos trabalhar. Não havia outra solução. Só a minha irmã mais velha, Francisca, e a mais nova, Tixa, é que estavam dispensadas”. Para as restantes quatro raparigas, o tempo de diversão acabara. Tinham entrado na idade adulta.

Como sabia falar línguas, a jovem Tatão conseguiu arranjar um lugar na Rádio Free Europe, onde transmitia as notícias. Quase nem teve tempo de aquecer o lugar. Num passeio pela Baixa, onde costumava fazer as suas compras, apercebeu-se que estava a ser seguida por um desconhecido, que observava meticulosamente todos os seus passos. Tatão não suspeitava que se tratava do cineasta António Lopes Ribeiro, tendo por isso ficado perplexa quando o homem misterioso se aproximou de si com uma proposta ‘indecente’: “Estava quase a pregar-lhe uma bofetada quando ele me disse: ‘Não lhe quero fazer mal. Tenho estado a admirar a sua forma de andar. E a sua cara perfeita’. E sem demoras, perguntou-me se eu queria participar num filme”.

Tatão ficou de pensar sobre o assunto. Nem sequer tinha 21 anos e para se estrear no cinema ainda precisava da autorização da mãe, que tal como ela suspeitava, não viu com bons olhos o caminho que a filha estava a tomar. Mas as Produções António Lopes Ribeiro estavam dispostos a pagar-lhe 15 contos e a família precisava do dinheiro. Um único senão: o realizador queria que os actores usassem os seus nomes verdadeiros. A mãe da Tatão torceu logo o nariz à ideia – Maria da Conceição nem pensar!

Sem hipóteses de a convencer do contrário, o produtor e realizador do filme ‘O Pai Tirano’ baptizou de ‘Tatão’ a empregada de balcão da Perfumaria Moda por quem o caixeiro do Grandella, Chico Mega (Ribeirinho) se perde de amores. E apesar da actriz ter arranjado um nome artístico, Leonor Maia – que o ‘Diário de Noticias’ acusou de “Cheirar a modista de chapéus com pretensões a fidalguia” – foi o diminutivo Tatão que se tornou na imagem de uma artista que marcou a década de 40/50.

A MENINA DAS BOFETADAS

“Atenção, malta! Esta menina é como se fosse minha filha. Ninguém lhe faz nada desagradável”, avisou logo António Lopes Ribeiro assim que começaram as filmagens do ‘Pai Tirano’. Uma advertência desnecessária, depois de se conhecer Vasco Santana, Ribeirinho ou João Villaret, incapazes de maltratar alguém. Actuar ao lado deles era sempre uma festa. “Eu começava a rir de manhã e só parava ao final do dia”, conta. “Quando íamos almoçar juntos chegava a levantar-me da mesa com dores de estômago. Eram divertidíssimos. E além disso, muito cultos”.

António Lopes Ribeiro tinha prometido à família que ia tratar bem da jovem Tatão, afastando-a da má vida. E foi isso que ele fez até ao final das filmagens: “Era preciso ter cuidado. Soube de muitas raparigas que foram levadas na cantiga. Aquilo era uma selva”, sublinha a ex-actriz, recordando o caso da sua colega Laura Alves, que também se estreou no cinema com ‘O Pai Tirano’.

As duas começaram por ser amigas, mas depois seguiram caminhos diferentes. “Quando a conheci, apercebi-me que tinha problemas financeiros. Chegou mal vestida, mal pintada e com buracos nos sapatos. A mãe era mulher-a-dias e o dinheiro não chegava para tudo”. Tatão, que sempre gostou de andar maquilhada, perfumada e bem arranjada, prontificou-se a ajudá-la e ofereceu-lhe um batom e algumas peças de roupa. Três meses mais tarde, o destino voltou a juntá-las – mas desta vez, Laura já não precisava da ajuda de ninguém. Tinha arranjado um ‘amigo rico’, como se dizia naquela época.

Tatão nunca mais se esqueceu daquele reencontro: “Chegou numa limusina que nunca mais acabava. O motorista foi-lhe abrir a porta e eu fiquei perplexa a olhar para ela. Trazia vestido um casaco de pele de raposa e sapatos de salto alto encarnados”.

Depois da estreia no cinema, também Tatão passou a ser mais cobiçada pelos homens. Nunca se apaixonou por nenhum actor, apesar de ter trabalhado quatro vezes ao lado de Vergílio Teixeira, um verdadeiro galã, ou com António Vilar no ‘Camões’ de José Leitão de Barros. Ela até já tinha um truque para afastar os mais atrevidos: “Bastava-lhe olhar para eles de uma certa maneira. Percebiam logo”. Os que insistiam ou não percebiam a indirecta, arriscavam-se a levar uma estalada. Por alguma razão a ex-actriz ganhou o título de ‘menina das bofetadas’.

O FEITIÇO DO AMOR

Foi durante um cocktail na residência oficial do embaixador americano que Tatão conheceu o homem por quem abdicou do cinema. James Pritchard, coronel da Força Aérea americana e um herói da Segunda Guerra Mundial, enfeitiçou-a. Depois de terem estado à conversa a noite toda, James não perdeu tempo e pediu-a em casamento. Queria levá-la a conhecer o mundo, o que a obrigaria a deixar o país e a carreira. Tatão não ficou muito entusiasmada com a ideia, mas de uma coisa tinha a certeza: “Não o queria perder. Ele era um bom partido”. Casaram-se em 1953, depois de dois anos de namoro. Um mês depois ele tinha de se apresentar ao serviço em Washington – mas, antes, ainda houve tempo para a lua-de-mel: “O embaixador americano emprestou-nos um avião. Durante esse mês aproveitámos para viajar. Voámos para a Suiça, Áustria, França, Espanha. Foi maravilhoso”.

Cerca de 20 anos depois de ter saído de Lourenço Marques, Tatão estava a começar uma vida nova na capital dos Estados Unidos. A actriz nunca tinha aprendido a cuidar de uma casa, e nem sequer sabia fritar um ovo – mas ia preparada para aprender. Na mala levava o livro de culinária Pantagruel. Para mostrar ao marido que se tinha transformado numa exímia cozinheira, inscreveu-se num concurso de culinária patrocinado por um jornal local. “Mandei várias receitas originais até que ganhei o primeiro prémio com sopa de tomate com ovos escalfados, arroz de amêijoas e pastéis de bacalhau”.

Depois de ter conhecido meio mundo, regressou a Portugal e voltou a escolher o Estoril para viver. “Isto é um bocadinho do paraíso”, reconhece. Há muito afastada do circuito artístico, vive para os sete netos. Continua a frequentar algumas festas, sempre acompanhada pelo marido, mas a melhor parte do dia é quando chega a casa. Descalça-se, um hábito que nunca perdeu, e põe a tocar um disco da sua amiga Amália. Pode então descansar, ao som do seu fado preferido. ‘Estranha Forma de Vida’.

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