Na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, 65 por cento das parturientes ainda grita de dor, à moda antiga. E nos Açores a epidural está reservada para ricos ou casos de risco – as mães que têm dinheiro para pagar a analgesia vão para clínicas privadas ou para o continente. Mas mesmo aí, não há garantias de um parto indolor. Onde param os anestesistas?
Maria Eduarda caminha com passos maiores do que as pernas. Mesmo assim parece deslizar em câmara lenta porque a barriga de nove meses lhe atrofia os movimentos. Tem a ansiedade estampada no rosto. Mal atravessa a porta principal do Hospital do Divino Espirito Santo, em Ponta Delgada, acena um sorriso à recepcionista e dirige-se de imediato para a sala de consulta das grávidas. Está atrasada. Por mais que tente disfarçar a ansiedade é maior do que o sorriso. “Estou com medo”, reconhece com as palavras vestidas de veludo.
No entanto esta antiga empregada num salão de cabeleireira não é novata nestas andanças. “Tenho dois filhos, um de catorze e outro de oito”, afirma com orgulho na ponta da língua. Só que desta vez é diferente. “Este aqui não estava previsto”, afirma enquanto acaricia a barriga proeminente. Para mais trata-se de uma gravidez de alto risco. “ Disseram-me que era por causa da idade”, acrescenta do alto dos seus 38 anos.
Era a última consulta de Maria Eduarda antes do dia tão esperado. E temido. “Podem dizer que ter um filho é o momento mais desejado por uma mulher mas a verdade é que é horrível”. Durante a consulta o obstetra não lhe acalmou as dúvidas, não lhe amparou o medo. Limitou-se a carimbar o guia de marcha para a maternidade. “ O nascimento está previsto para sexta-feira. Mas se a criança não nascer na data prevista terei de ser internada na próxima terça. E na quarta fazem-me uma cesariana”, avisa. As palavras são soletradas com angústia.
DE CAVALO PARA BURRO
Maria Eduarda preferia ser actriz principal de um outro filme. “Se o hospital tivesse epidural eu não hesitava um segundo”, declara alto e em bom som. Mas a verdade é que não tem.” Não há recursos de enfermagem” esclarece Rui San Bento, o director clínico do único hospital público da ilha de São Miguel. Dito isto acrescenta: “Temos um projecto que passa por manter o nível no bloco operatório e permitir o desenvolvimento na secção de ginecologia e obstetrícia”. Mas o projecto, como muitos outros, continua a ganhar pó nas gavetas de uma qualquer repartição.
Apesar de esgrimir estes argumentos com convicção a verdade é que a questão da epidural nos Açores suscita opiniões desencontradas.
“O problema no bloco de partos é que aquilo agora é sempre a despachar. Perde-se a qualidade em nome da quantidade”, diz um médico que prefere manter o anonimato. E conclui: “Aquilo é de cavalo para burro”. Outro médico contactado pelo Domingo Magazine dá uma outra razão para o fim do parto sem dor no Hospital do Divino Espírito Santo. “Logo no princípio fazíamos epidural. Depois tivemos de parar porque não havia anestesistas. Agora só se fazem em casos excepcionais, quando o médico considerar que existe perigo para a saúde da mãe ou do bebe”.
Mas qualquer que seja a razão a verdade é que nenhuma acalma a ansiedade de Maria Eduarda. “Até parece que é a primeira vez. Estou cheia de medo”, repete vezes em conta. A única hipótese de fazer uma epidural está fora de causa. “ Eu fazia se fosse pela Caixa. Mas pagar nem pensar.” Está sem trabalho e o marido é empregado de balcão.
Nos Açores, epidural é sinónimo de cifrão. As mulheres só têm dois caminhos se optarem por um parto sem dor. Ou embarcam para o continente a expensas próprias – um luxo reservado apenas aos mais endinheirados. Ou então, dão à luz na clínica do Bom Jesus - dos 16 partos registados no ano passado nesta clínica privada dez fizeram-se com recurso à epidural.
Neste caso não é o corpo, mas o bolso quem paga - um parto por epidural pode custar a dois mil euros. Traduzido por miúdos: são quase mil e quinhentos euros para os honorários do obstetra, o anastesista mete 200 nos bolsos, e cerca de 300 vão para os cofres da clínica. O curioso nesta história é que médicos anestesistas são os mesmos do hospital público. A maioria dos enfermeiros também. A diferença é que aqui é o dinheiro quem manda. Não a dor.
Por isso quando a hora chegar Maria Eduarda vai ter de fazer das tripas coração. E para anestesiar a dor vai ter de rezar a todos os santos que povoam a sua imensa fé. “ Espero que a hora seja pequenina”.
“DAVA-ME UM JEITO”
Epi o quê? Maria de Fátima é uma mulher demasiado simples para saber destas “modernices”. Mas quando é informada que epidural é o mesmo que parto sem dor uma brisa de esperança ilumina o seu olhar. É que para ela dar à luz é uma espécie de viagem ao mundo das trevas. Uma viagem que, chegou a pensar, seria sem regresso.
Quando a sua Maria João nasceu, já lá vão dezoito meses, esta doméstica do lugar da Ribeirinha receou que tivesse chegado ao fim do caminho. Foram três dias sem comer, sem dormir, sem esperança em sobreviver.
“Entrei em serviço de parto numa sexta-feira e ela só nasceu no domingo”, informa. “Fiz dois dedos de dilatação quando o normal são dez”, acrescenta. Foram três dias em que chorou como uma madalena, esperneou como um peru em vésperas de Natal. Sentiu os músculos derreterem, a cabeça explodir, a sua testa era uma cascata em alvoroço. “A dor começava no estômago, vinha por aqui abaixo e acabava na barriga”, relembra com o semblante angustiado.
Quando já não podia mais dar de beber à dor sentiu o seu corpo perder substância, desfalecer. Foi quando caiu da cama. “Se não se cala mando-a embora daqui mesmo que as águas arrebentem”, o médico ameaçou. Ela engoliu a dor mas não esqueceu a ofensa. “Eu não o processei porque não tenho dinheiro. Mas ele só me fez aquilo porque sou pobre”, conclui. Felizmente que a criança nasceu saudável. Foi uma cesariana.
Epi o quê? Maria de Fátima está de novo grávida de cinco meses e a simples evocação de parto sem dor é uma espécie de bálsamo milagroso. “Sabe o problema aqui nos Açores é que nos dão pouca informação”, protesta momentos antes de mais uma ecografia.
O seu ar decidido deixa adivinhar que está determinada em pedir mais informações sobre a “epi o quê”. Por isso fica desiludida quando fica a saber que a expressão “parto sem dor” já não faz parte do dicionário clínico do Hospital do Divino Espírito Santo.
“Mas porque é que acabaram com isso?” Não parece muito convencida com as explicações. E por mais voltas que dê chega sempre à mesma conclusão - “Só quem tem dinheiro é que se safa”. Dito isto ajoelha o olhar e deixa escapar um pensamento: “Sabe, isso dava-me aqui um jeito”.
O QUE É A EPIDURAL?
A analgesia epidural permite a minimização da sensação de dor numa determinada região do corpo. No caso particular do trabalho de parto, pretende-se tirar a dor sem prejudicar a capacidade motora da mulher. A epidural tanto pode ser utilizada num parto por via vaginal como num parto por cesariana.
COMO É ADMINISTRADA?
Um anestesista especializado introduz uma agulha entre duas vértebras lombares e coloca um cateter (tubo de plástico fino) no espaço epidural, e por ele vai injectando doses sucessivas de analgésicos durante o parto. Esta operação não é dolorosa porque a grávida está anestesiada localmente. A epidural pode ser administrada em qualquer momento do trabalho de parto. No entanto, o ideal é efectuá-la quando a dilatação alcança pelo menos 3 ou 4 centímetros.
Na última década, as grávidas americanas começaram a descobrir as vantagens da epidural. Aconselhadas pelos obstetras, a maioria tem optado por este método anestésico em detrimento da cesariana. Uma mudança de mentalidades promovida pelo ministério da saúde norte-americano, que durante a década de 90 aprovou medidas concretas que visavam reduzir o número de intervenções cirúrgicas.
Os números actuais mostram que os resultados foram positivos: actualmente, mais de 2,4 milhões de parturientes optam pela epidural para controlar as dores durante o parto.
Aqui ao lado, em Espanha, o aumento da taxa de natalidade veio acompanhado pela promoção da epidural nos grandes hospitais e centros urbanos. Actualmente, este método já chega a todas as grávidas. Um passo de gigante tendo em conta que em finais de 1999 esta possibilidade só alcançava 85 por cento da população feminina. Depois de pesados os prós e os contras, cerca de 40 por cento das futuras mães espanholas tem recorrido à epidural.
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