Paula Neves criou enredos de filme. Drogou, enganou e seduziu dezenas de pessoas tendo a simpatia como arma. Arrecadou dinheiro, mobília, carros.
O veículo que auxiliou a fuga no dia do casamento não se apoiava em quatro patas como dita a cartilha das evasões no grande ecrã. Paula Cristina Nunes da Silva Neves, então com 32 anos, não só optou pelo táxi do futuro marido para abalar, como levou a eito dois vestidos de noiva – carregou tudo o que coube no carro de praça, inclusive peças de mobiliário dos sogros. Para trás, deixou um rasto de palavras começadas pela letra D. Dívidas, desilusão e dor.
Filha legítima do Casal Ventoso, em Lisboa, nunca foi uma romântica. Não se prende à televisão para consumir comédias que puxam a lágrima fácil ao domingo à tarde. Isso vale zero para uma mulher capaz de realizar o seu próprio filme – uma película que viria a ter várias sequelas. Na hora da partida, quando um noivo apaixonado e 150 convidados a aguardavam na igreja do Mosteiro da Batalha, a burlona já não tinha que fingir. Só tinha que fugir. Para trás deixou sem pena a distinta ‘Paula Garcia’, natural de Mangualde, personagem que durante oito meses encarnou. Nessa altura, um novo episódio estaria a começar para uma mulher 'que sofreu muito na vida, mas que reagiu e se soube adaptar' – como revelou em Fevereiro ao CM. Um drible ao destino cheio de jogadas e truques. E de novos equipamentos. A adaptação exigiu outro nome, guarda-roupa e pintou-lhe o cabelo de cor diferente, mas manteve idêntica arte. Paula Neves é um camaleão. À semelhança do lagarto, também é pela língua que apanha as presas – gosta muito de falar. 'E de reinar. Quando está de bom humor é uma conversadeira, ao pé dela não havia tristeza', diz-nos quem conviveu com a burlona durante os anos em que esteve casada com o pai de quatro dos seus cinco filhos. 'Podia ter muitos defeitos, mas se um dos meninos estava doente corria os hospitais todos. Claro que também os deixava com o pai e desaparecia meses a fio'. Sabe-se que deixou a mais nova à porta de familiares quando o bebé não tinha sequer um mês de vida. Cumpriu o mito urbano – substitua-se o tabaco pelo pão. Terá dito que ia à padaria mas não mais regressou.
O ex-companheiro – estiveram juntos seis anos – 'foi um santinho que nunca lhe levantou um dedo que fosse, adorava--a'. Não seria o único. 'Era daquelas mulheres que fazia os homens voltar a cabeça na rua, deixava-os loucos'. Olhos verdes são traição, chorava a cantiga e lamentam todos os que se cruzaram com 'a mulheraça' de peso que tinha a seu favor 'um olhar doce'. Doçura que estendia à voz, aos gestos e à preocupação para com os outros. Uma prostituta que deitou a vida na Artilharia 1 e na zona do Técnico, em Lisboa, e se transformou numa 'doutora' de pasta e portátil no braço.
'Não dava para desconfiar', garante Inês, que conheceu Paula em 2005, já a burlona tinha trocado o loiro pelo cabelo escuro com madeixas. Apresentou-se como ‘Vera Lúcia’, fiscal de obras públicas da Câmara Municipal de Lisboa que queria alugar um apartamento. 'Contactou-nos por causa de um anúncio que pusemos no ‘Ocasião’. Disse que era da Figueira da Foz. Logo à entrada deu-me dois meses adiantados, ainda nem tinha visto a casa. Mas nunca deu os documentos'. Em menos de um fósforo, a amável ‘Vera’ tornou-se parte da família.
'Como é que não ia acreditar nela? Tinha amigos importantes, milhões de contos no banco e um cargo de prestígio'. A simpatia foi a arma do delito e disparou para todo o lado. 'Acabou por conhecer toda a gente com quem nos relacionávamos e tornou-se amiga dos nossos amigos. Em dois meses ficou a saber tudo sobre nós: o que fazíamos, o que gostávamos, o que receávamos. Conseguiu entrar na nossa vida e virá-la do avesso'. Inês nunca mais se lembrou dos documentos para o contrato de aluguer. 'Passou-me, a ‘Vera’ era uma pessoa espectacular, boa de mais para ser verdade, até ao meu casamento foi'. As qualidades somavam-se e os presentes também. 'Levava-nos de táxi para todo o lado, oferecia telemóveis e até uma máquina de filmar. Prometeu que nos arranjava um emprego na Câmara, ficou com os nossos currículos'. Explicava o saldo generoso com o facto de 'receber por fora para não fiscalizar certas obras'. Convidava frequentemente Inês para ir ao Banco de Portugal e incentivou-a a dar dinheiro para uma instituição de solidariedade com a qual dizia colaborar. Todos se deixaram seduzir pela burlona.
'Se nos doía o estômago, fazia uma canjinha e levava a nossa casa, até deu um carro telecomandado ao meu filho e nos anos dele disse-lhe escolher o bolo que quisesse. Só começámos a desconfiar porque um amigo nosso, que lhe foi arranjar o computador, viu que os ficheiros tinham o nome Paula Neves. Em vésperas de Natal, Inês encostou-a contra a parede. 'Disse que achava tudo muito estranho. Nunca mais a vimos. Quando arrombei o apartamento deparei-me com cuecas e sutiãs no chão e restos de comida com bichos. Deve ter saído à pressa'. Com trezentos euros dos ‘amigos’.
Jorge chora ainda um prejuízo de 15 mil euros, provocado pela 'doutora juíza que ela dizia que era'. É taxista, um dos alvos privilegiados da burlona. Com o cabelo mais comprido, fingiu ser ‘Lina Felizardo’ que, a par da carreira nos tribunais, seria ainda dona de 'muitas lojas de telemóveis nos centros comerciais'. No táxi falava muito, o caminho todo. 'Era uma senhora muito educada, não dava para desconfiar que não era doutora, até falava dos casos que julgava'. Na primeira saída, Paula cativou Jorge com uma gorjeta generosa que lhe encheu o bolso. 'E convidou-me para jantar. Pedimos uma espetada de lulas e ela espichou as gambas para o meu prato. O que é que eu achei? Que ela não gostava, então comi. Agora sei que foi aí que me começou a experimentar, a ver se eu comia o que ela me dava'. Estavam lançados os dados para a burla que o deixou na miséria. 'Depois disso voltou a ligar-me, a pedir para a ir buscar às 8h30 ao Hotel da Cartuxa, em Évora, mas ao longo do caminho foi sempre mudando de itinerário. Até fingiu estar ao telemóvel com o gerente do banco para ele arranjar notas de 5 euros para as lojas'. Ao pequeno-almoço lançou a cartada final. 'Eu queria ir fumar um cigarro mas ela disse que eu precisava de comer e já trazia o sumo que trazia a droga [‘drink spiking’]. A seguir ainda me foi levar ao hospital'.
Jorge sobreviveu. Fernando Conceição, de Lisboa, também, mas o taxista do Montijo, Filipe Barroso, não teve a mesma sorte. Coincidência ou não, sucumbiu a um AVC, um mês depois de Paula ter usado com ele a artimanha. Os homens que burlou engrossaram as noites de urgências no hospital. Nas redes sociais da internet, onde esteve inscrita para angariar vítimas, mudava de máscara depois de cada regresso, depois de cada burla. Trocava o nome. Os gostos. Os vícios. A vida. E esquecia o que ficara para trás. Não se sabe onde está neste momento. 'É um anjo em um terço do corpo'. Um corpo com muitos quilos.
'ATÉ ACEITOU O SENHOR, NA IGREJA EVENGÉLICA'
Em Junho de 2008 as vítimas foram o casal Pacheco, de Lagos, a quem Paula prometeu comprar uma casa que tinham à venda. 'Disse que era neta de uns alemães que tinham vendido uma fábrica e que ia receber um milhão e meio de herança. Ficou quatro dias na nossa casa, cozinhou para nós e para os nossos amigos, fez bolos e pudins'. Drogou os idosos e levou-lhes 15 mil euros. 'Como não íamos acreditar nela? Era doutora, psicóloga no Curry Cabral, marcou-nos um TAC no hospital e até aceitou e recebeu o Nosso Senhor na Igreja Evangélica.'
'SÃO PERSPICAZES A ENTENDEREM AS FRAGILIDADES': Catarina Mexia, psicóloga e terapeuta familiar
O que distingue estas pessoas?
Têm uma facilidade muito grande em estabelecer relações, são muito empáticas e são extremamente perspicazes a perceberem as zonas de fragilidade das outras pessoas, não precisam de muito para entender o que precisam.
Como escolhem os alvos?
Como conseguem entender as necessidades das pessoas com quem interagem, isso leva-as a escolher pessoas carenciadas a nível afectivo, independentemente da idade.
Como conseguem manter a farsa?
Estas pessoas contam mentiras nas quais elas próprias passam a acreditar. E quando assim é, é relativamente fácil de manter. Quando existe esta personalidade psicopata há uma colagem tão grande à realidade que criam que quem está de fora não encontra incongruências entre aquilo que a pessoa diz e a forma como ela age.
Paula cresceu no Casal Ventoso, entre a avó e um lar. Isso ajuda a explicar alguma coisa?
Faz todo o sentido. Estas personalidades estruturam-se em situações de muita violência psicológica e quase que para sobreviverem têm de criar realidades alternativas àquela em que existem. Dissociam-se da realidade em que estão de forma constante.
Está relacionado com um QI elevado?
Às vezes não é uma questão de inteligência, é uma questão de esperteza. Essas pessoas, porque estiveram permanentemente em perigo, aprenderam a ler muito bem os sinais do mundo que as rodeia e, principalmente, os sub-sinais, o que lhes permite antecipar os comportamentos dos outros.
CM DEU NOTÍCIA EM 2002
'Raptaram-me a noiva', exclamou o noivo ao CM em Maio de 2002, depois de Paula ter faltado ao casamento. A peça conta que a festa custou milhares de contos e que a família enganada degustou, na mesma, o copo-de-água. Um dia antes, Paula posou para uma sessão de fotos, vestida de noiva, o que muito estranhou os proprietários do estúdio. 'Não é muito usual fazer-se isso'.
'DISCURSO COERENTE SEM MEMÓRIA'
Pela ala de psiquiatria do Hospital de São Teotónio, em Viseu, já passaram três vítimas da burlona. Um deles ainda permanece, desde o dia 21 de Janeiro, à espera de que alguém o vá buscar. Foi, então, encontrado na via pública sem qualquer documentação e, três meses volvidos, ainda não sabe quem é. 'Tem um discurso bastante coerente e fluido mas demonstra grande preocupação com a falta de identidade. Várias vezes pergunta quem é, em outras ocasiões fala das vivências diárias da instituição mas não fala do passado. Anda livremente pelo hospital e tem melhorado imenso, a cada dia se nota', revelou fonte do Hospital.
ATACOU DE NORTE A SUL DO PAÍS
No Hotel da Cartuxa, em Évora, conquistou os funcionários com notas de cinco euros, no início do ano. Método semelhante usou numa pensão em Portimão dois anos antes, em Junho de 2007. Em Santarém, morou na casa de uma divorciada que lhe contou tudo... até o código multibanco. Em Fevereiro apareceu para ajudar as autoridades a identificar o idoso amnésico de Viseu. Como se apresentou de livre vontade – conforme a terá aconselhado um amigo da PJ – saiu em liberdade. Mas teve de cear com os sem-abrigo.
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