O que por lá ficou de Portugal 140 anos depois da chegada das primeiras famílias de emigrantes.
Há 140 anos, em pleno verão de 1878, o navio ‘Priscilla’ zarpava do Funchal com destino às ilhas Sandwich. Quatro meses depois, a 30 de setembro, aquela embarcação alemã - de madeira, com três mastros – aportava em Honolulu e inaugurava um movimento migratório que nos primeiros dez anos transportou mais de 11 mil emigrantes portugueses – a maioria da Madeira e dos Açores – para aquelas ilhas do Pacífico. Vivia-se a primeira vaga de emigração portuguesa para tão longe.
A viragem do século levaria para o Havai alentejanos e durienses que, inadaptados à vida de ilhéu, migraram para a Califórnia, na costa oeste dos EUA. Os que ficaram encontraram meio milhar de nacionais já instalados no arquipélago. João (John) Elliott de Castro, o primeiro colono luso e distinto médico do rei Kamehameha, havia inaugurado, décadas antes, a travessia que na segunda metade do século XIX transportava a força do trabalho luso para as plantações de cana-de-açúcar. Hoje os seus bisnetos são empresários de sucesso e dão cartas na política. Desligaram-se da língua, mas são lusodescendentes com orgulho.
A 23 de setembro de 1886, o navio inglês ‘Amana’ aportava no Havai com o pai de Audrey Rocha Reed (77 anos) a bordo. A mãe chegou no ‘Suveric’, em 1906, acompanhada da família madeirense enlutada pela viagem – Carolina, a mais nova de três irmãos, morreu de sarampo pouco antes de o navio atracar em Honolulu.
Mais de um século depois, Audrey guia os descendentes mais jovens desse tempo pela descoberta da sua herança no único centro cultural português no Havai. "Era o sonho da minha irmã, do meu marido, da minha mãe e de tantos outros portugueses que não viveram para ver o seu sonho realizado", desabafa. Reformou-se para o concretizar.
Hoje, a influência lusa no 50º estado americano é notória ao paladar. A maior companhia de salsichas do Havai, a Redondo’s, denuncia no nome a ascendência portuguesa do seu fundador, Frank Redondo, natural de Serpa, no Alentejo. No arquipélago, o menu de pequeno-almoço da cadeia de restaurantes McDonald’s oferece ovos mexidos, arroz e ‘salsicha portuguesa’ – uma linguiça.
Um dos pratos mais procurados é o frango no churrasco ‘Huli Huli’, criação de Ernest de Sousa Morgado, cuja família é natural de Rabo de Peixe, na ilha de São Miguel, nos Açores. A padaria Leonard, cujos devotos das malassadas fazem fila à porta e atraem a atenção mediática, foi fundada em 1952 pelo português Leonard Rego. Em Honokaa, na Big Island, o mesmo doce é vendido ao balcão da Tex Drive-In, que abrevia afinal o sobrenome Teixeira.
Estima-se que mais de 10 por cento da população do Havai – 1,428 milhões de habitantes no total – seja lusodescendente. Estão por todo o lado: são médicos, professores, ocupam lugares de destaque na cúpula política e religiosa; até humoristas. Larry Silva é o bispo católico do Havai. Os três ‘mayors’ da ilha de Maui são de origem portuguesa. Frank de Lima destaca-se a fazer rir.
"Quem me fez perceber a minha herança foi o meu filho Jacob", revela Audrey. "Com onze anos, chegou da escola com o trabalho de escrever um artigo sobre o contributo do seu grupo étnico para o Havai. Perguntou: ‘Somos portugueses, não somos?’ Eu assenti com a cabeça, mas naquele momento percebi que não sabia nada sobre o que era ser português", conta. Pouco depois, Jacob e os irmãos dançavam já ao ritmo do folclore português num rancho da cidade. A mãe inscreveu-se na Universidade do Havai para aprender português. Nunca conseguiu dominar a língua. "No entanto, consegui ler Camões", orgulha-se.
No arquipélago, o português sobrevive na boca dos brasileiros que chegam para surfar – os emigrantes portugueses, analfabetos, não fizeram questão de manter a língua falada e o ensino exclusivo em inglês (que seria garantia de um bom emprego) fez o resto. Audrey conta que "todos queriam parecer patriotas". Hoje são uma mistura de origens diferentes – embora com o sobrenome do avô paterno, Tavares, os netos de Audrey têm costela filipina, havaiana e portuguesa.
Uma subvenção do estado havaiano garante hoje a promoção da cultura portuguesa. Preserva-se a dança folclórica da chamarrita e do pezinho, o jogo da ‘bisca’, o hábito de assar linguiças, de distribuir malassadas na terça-feira de Carnaval e de cozer pão em forno de pedra ao ar livre. Canta- -se o ‘Alecrim aos molhos’, a ‘Minha Rosinha’, a ‘Rosa Arredonda a Saia’ e a ‘Tia Anica’. Todos os domingos à noite, entre as 20 e as 21h, Audrey produz ‘Os Sons de Portugal e do Mundo de Língua Portuguesa’, o único programa de rádio português em todo o estado.
O apoio estatal sobra para uma aula de língua portuguesa, mas "há três anos que não há um falante nativo em Maui disposto a ensinar". Conta que a maioria dos habitantes da ilha reconhece a origem portuguesa do ukulele, instrumento decalcado do cavaquinho. "Um dos meus sonhos é que um dia possamos trazer o Júlio Pereira ao Havai", revela Audrey. Noutro campo, guarda o sonho de que Cristiano Ronaldo viaje para as ilhas para apoiar a construção de um campo de treino juvenil.
A lusodescendente sente-se "abençoada" por já ter visitado Portugal. "Tinha a expectativa de me aposentar e de ir morar na Madeira. Deus tinha outros planos para mim. Ainda assim, espero visitar o País pelo menos mais uma vez, nos próximos meses. A minha filha, de 59 anos, tem um cancro ósseo terminal e quer ir a Fátima antes de morrer", diz Audrey.
‘Haole’
A investigadora madeirense Ana Isabel Spranger lembra que a contratação dos portugueses foi sugerida pelo alemão William Hillebrand, um botânico que realizou pesquisas no Havai, na Madeira e nos Açores. Em 1876, numa carta enviada aos produtores havaianos de açúcar deixou explícito: "As nossas ilhas não poderão ter uma melhor qualidade de imigrantes do que a população das ilhas da Madeira e Açores. Sóbrios, honestos, pacíficos e trabalhadores, eles combinam as qualidades de bons povoadores."
Hillebrand preparou o embarque. Paralelamente negociava-se um tratado com o Havai (então um reino independente) com Portugal, concretizado em 1882 com a visita do rei Kalakaua a Lisboa. O contrato anterior estipulava dez horas de trabalho diário, um salário de 10 dólares americanos por mês, o direito a uma ração diária, alojamento, horta, assistência médica e fármacos gratuitos. O salário das mulheres e as crianças caía para 6,50 dólares, nota a investigadora madeirense. A companhia alemã fixou o bilhete do embarque no ‘Priscilla’ em 75 dólares por adulto, pago pelas autoridades havaianas.
Na década de 1890, os portugueses eram considerados ‘negros’ no Havai. Mas em 1920 passavam já por ‘haole’, termo havaiano que identifica os americanos recém-chegados às ilhas. Audrey recorda o discurso de Hannibal Tavares, antigo mayor de ascendência portuguesa da ilha de Maui: "Os portugueses podem passar por ‘haole’ se quiserem. Eu não quero". Para Audrey, "somos descendentes de emigrantes portugueses e orgulhosos da nossa herança. A gente sai de Portugal, mas Portugal não sai da gente", conclui.
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