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O ‘Mata Sete’ regressou pelo Natal

Dois meses antes do 25º aniversário da tragédia do Osso da Baleia, visitou familiares e amigos e ficou em casa da filha.

11 de março de 2012 às 22:00

Há um murmúrio em cada onda que lava o areal. Às vezes parece arrastar-se também das dunas. A praia guarda segredos. A estrada de alcatrão, o parque de merendas, os passadiços e o bar em madeira não mudaram a história - apenas moldaram a memória. Há um quarto de século, a noite ia alta e estava iluminada pelo luar e pelas luzes de um carro com três casais. Um diário tinto de sangue recebeu então a última frase: "Lamentavelmente consumado e engrossado o início da minha loucura. Médicos agora acreditam? Osso da Baleia."

Ainda hoje, derramadas outras brutais tragédias no quotidiano, o nome de Vítor Jorge causa arrepios. Os cinco corpos que deixou desfeitos a tiro, à paulada e à facada, nas dunas e no areal da praia do Osso da Baleia, em Pombal, a 1 de Março de 1987, seriam suficientes para o horror não ser esquecido mas o facto de ainda ter morto à facada a própria mulher e uma das filhas, num pinhal em Amieira, na Marinha Grande, deram-lhe para sempre um lugar nos anais do crime.

MEDICADO

O ‘Mata Sete' ou o ‘Assassino da Marinha Grande' tem 64 anos e continua a ser um homem doente, sempre medicado e sob vigilância psiquiátrica. A ilha da Córsega tem sido o seu refúgio nos últimos 10 anos - desde que em Outubro de 2001 foi libertado da cadeia de Coimbra. Ajudado em França pela prima Isabel Jorge - em pequenos partilharam as brincadeiras de crianças e as famílias desestruturadas -, Vítor Jorge sobreviveu a uma dúzia de tentativas de suicídio, praticadas com medicamentos e com gás. Uma compulsão que o persegue há décadas.

"Porquê suicidar-me depois de ter cometido este ou estes crimes? Porque receio que depois de toda esta carnificina apenas seja internado num hospital de doentes mentais ou, no caso de ser preso e viver até aos 57 anos, seja posto em liberdade, pois a pena máxima deste país é de 20 anos. A lei que temos, a todos protege, e ainda corria o risco de poder surgir qualquer amnistia, que me viesse a colocar em liberdade ainda mais cedo", escreveu no diário que, no dia seguinte à chacina, enviou dos CTT de Santana, em Leiria, para o Correio da Manhã. No envelope eram visíveis marcas de sangue.

SOA ALARME

Quando o antigo empregado bancário visita os amigos e familiares continua a soar uma espécie de alarme. As pessoas que lhe são próximas, nos concelhos da Marinha Grande e de Porto de Mós, redobram os cuidados. Até agora regressou a Portugal pelo menos cinco vezes, a última no Natal. "Ele esteve cá em finais de Dezembro, com a mulher. Cumprimentou-me, mas eu queria-o era despachar. Cumprimentei-o e não adiantei conversa. Queria era que se fosse embora", contou à Domingo uma prima, adiantando que soube previamente da sua chegada. "Avisaram-me. Avisam-me sempre que ele cá vem." É também o medo latente da lista de gente que o ‘Mata Sete' queria abater.

Em 1986 escreveu: "Antes de pôr termo à vida, pensei em liquidar rigorosamente pela seguinte ordem as seguintes pessoas (seguem-se 14 iniciais). Claramente premeditada esta carnificina. A sua execução deverá demorar no máximo 14 horas, para que o objectivo seja parcialmente conseguido. Primeira data para execução, 9 e 10 de Novembro de 1986, segunda data para a execução, 16 e 17 de Novembro de 1986."

Nesta última estada em Portugal, em que andou "um pouco adoentado", Vítor Jorge passou os dias com os amigos e dormiu em casa da filha (como já acontecera, por exemplo, em 2008). Não viu a mãe, Piedade Jorge, nem demonstrou vontade de a ver, porque ainda hoje a considera uma das responsáveis pela tragédia da praia do Osso da Baleia. No diário explica, um ano antes da chacina: "No fundo, vivi odiosamente marcado e rodeado por mulheres com larga experiência aventurosa, como minha mãe, minha mulher, e agora tudo leva a crer, minha filha. Vou aguardar ‘tranquilamente' que uma provável neta, prossiga no mesmo caminho? A maioria das mulheres vive unicamente para o prazer da carne, do luxo e ostentação, encobrindo desse modo toda a miséria espiritual que reside dentro dela."

AS CULPADAS

Meses mais tarde reafirmava: "Mas devo afirmar obcecado ou não, três mulheres ajudaram a cavar a minha cova: minha mãe, minha mulher e minha filha. Quando uma mãe deseja ver o seu filho morto a vê-lo casado, quando a esposa diz para o marido mata-te, e quando a filha grita eufórica até que enfim, o pai pensa no divórcio; que mais resta afinal? Que objectivos mais se vislumbram no horizonte de um homem marcado?".

Assim que regressou à liberdade, o ‘Assassino da Marinha Grande' foi acolhido em França pela prima Isabel Jorge, que vive em Paris. A estilista e professora de costura, de 59 anos, foi a única pessoa que o ajudou sem impor condições. "Ele veio para cá directo da prisão. Fui eu que assinei o termo de responsabilidade com o director da cadeia", contou esta semana à Domingo, recordando que o primo foi um preso exemplar. Ajudava à missa, fazia artesanato e fotografava as cerimónias. A fotografia é uma paixão que ainda perdura, embora já não faça casamentos, baptizados e festas de aniversário - como a que antecedeu a tragédia: uma das mulheres assassinadas fazia anos.

Ainda na última vez que esteve em Portugal fotografou "tudo e mais alguma coisa". Aliás, foi através da fotografia que "descobriu" o carácter de algumas mulheres: "Das largas dezenas de noivas que fotografei, sete houve que me ofereceram o seu corpo, dias antes de se casarem, duas poucas horas antes da cerimónia do seu casamento, onze noivas depois de casadas também o quiseram fazer de uma forma descarada; das moças por mim fotografadas, passo a enumerar o nome incompleto das que quiseram manter um relacionamento amoroso (...)".

A vida de Vítor Jorge em França não tem sido fácil. Já esteve internado por diversas vezes num hospital psiquiátrico na Córsega, está em tratamento permanente e tem trabalhado pouco: fez limpezas no aeroporto da ilha, deu serventia a pedreiros e aceitou uns biscates. Às vezes recupera objectos que encontra abandonados e vende-os no mercado (nos últimos tempos deu-lhe para recolher e guardar em casa todo o tipo de lixo). Tem há anos uma companheira, Christine, de 40 anos, natural da ilha de Reunião; um dos seus pilares de sustentação, embora a relação pareça estar a deteriorar-se.

SUICÍDIO

"Falo com ele muitas vezes pelo telefone e pela internet. Em 2008 viveu um momento muito difícil. Consegui salvá-lo com dois telefones, a ligar para a mulher dele e para o psiquiatra", conta Isabel Jorge.

Em Setembro de 2007, o ‘Mata Sete' mandou aos amigos uma mensagem que os deixou assustados: "Perdoem-me mas recuso voltar a matar para sobreviver psicologicamente! Seis anos a lutar contra os meus demónios e só... É muito tempo! Christine tem um coração nobre, ajudem-na!".

Então sucediam-se as tentativas de suicídio, que os internamentos no hospital psiquiátrico parecem ter controlado.

Vítor Jorge nunca contou a Christine, nem ao médico que o acompanha, o seu passado, embora eles o conheçam, mas já falou com a prima. "Fez uma tragédia. Está arrependido. Tem remorsos e arrependimento. Estragou a vida dele. Tem sofrido muito cá fora, na prisão está ele agora. Saiu com uma certa idade, teve de arranjar um emprego qualquer, de trabalhar no duro", explica Isabel Jorge, que esteve pessoalmente com o primo - que também costuma tratar por irmão - pela última vez em 2008.

"Quando saiu sentiu-se desamparado. Ninguém lhe deu a mão. Não foi preparado para sair. Se não fosse eu não sei se já não estaria morto", conta a estilista, há 32 anos em França, adiantando: "Não sabia fazer nada. Não conhecia nada, não tinha formação. Tive medo de que fizesse novos disparates, vi-o tão desesperado."

O assassino da praia do Osso da Baleia recebe 800 euros de reforma e frequentou uma escola à noite para aprender a falar e a escrever melhor francês - na cadeia fez o 5º ano. Como desde novo, tem muitos problemas de saúde e foi operado a um joelho. "Ele é muito pieguinhas. Não gosta de muitas comidas e está sempre a refilar. Mas às vezes é capaz de comer um frango inteiro sozinho e mais que venha", diz a prima. Agora usa óculos e cortou o bigode que o caracterizou décadas. A sua mulher, que não pode ter filhos, é empregada, precisamente, do psiquiatra que o acompanha.

PREOCUPAÇÃO

Já por algumas vezes foi a Inglaterra visitar o filho, o único elemento da família que não pensou matar, como reconheceu no diário: "Vou então tentar assassinar de uma forma brutal mais duas ou três raparigas, em seguida as minhas filhas. Tentar não matar, mas ferir fortemente a minha mulher (para que ela sinta bem na alma o peso da recordação) e poupar o meu filho para que a semente do mal possa perdurar. Em seguida dirijo-me ao local de trabalho e tento liquidar mais dois ou três colegas, um dos quais terá de ser necessariamente o gerente (do banco BESCL)."

Depois de um período em que Isabel Jorge afirmava que "hoje não há razão para ter medo" do primo, explicando que "está a ser tratado por um bom médico todas as semanas e medicado", a situação parece ter-se alterado.

Na terça-feira, dia 6, soube que arrendou um apartamento e está separado da mulher, embora queira ir comer e dormir a casa dela. "As coisas não estão nada bem. Ele tem sido violento, grita, ameaça, só falta bater-lhe", descreve Isabel Jorge, que "não estava à espera disto". Já aconselhou Christine a trocar as fechaduras e a queixar-se à polícia à mínima violência.

"Ele voltou a fechar-se nele. Está para fazer alguma coisa. Isto está a preocupar-me", acentua a estilista, um aviso que não quer premonitório como o Vítor Jorge no diário: "Fui fazendo sucessivos avisos da minha insanidade mental, os médicos não acreditaram, só irão acreditar depois dos factos consumados? Se eu conseguir o material bélico, que vou começar a comprar, só a minha morte evitará uma tragédia."

1 DE MARÇO DE 1987: LOUCO OU CULPADO?

Em 1987, Vítor Jorge assassinou sete pessoas [na foto, o resgate de um dos corpos na praia do Osso da Baleia]. O julgamento ficou marcado pelo confronto de teses sobre a personalidade do arguido, com o psiquiatra Eduardo Cortesão, já falecido, a defender que Vítor Jorge era "um doente mental grave" e, logo, inimputável. Já os médicos do Centro de Saúde Mental de Leiria garantiam a sua imputabilidade.

DIÁRIO ANTECIPA E TENTA JUSTIFICAR A CHACINA

A 3 de Maio de 1985, Vítor Jorge começou a escrever um diário, com 104 páginas, relatando a sua vida e preparando a chacina. Justificou-a com os comportamentos impróprios das mulheres, com problemas no trabalho e com a incompreensão de que se dizia vítima por parte dos que o rodeavam. Matou Leonor Tomás, 20 anos, José Pacheco, 21, Luís Teixeira, 17, Maria Araújo, 20, e Maria Isabel Moreira, 19, na praia do Osso da Baleia.

Num pinhal perto de casa, na Marinha Grande, abateu, à vez, a mulher, Carminda, e a filha Anabela, 17. A outra filha, Sandra, 14 anos, escapou. O filho, Vítor, de 11, não deu pela tragédia. Vítor Jorge andou três dias fugido. No julgamento pediu a morte para o alter ego a quem atribuiu os crimes. Cumpriu 14 anos de prisão, de uma pena de 20.

NOTAS

LIVROS

‘Pássaros Feridos', ‘Tim' e ‘Uma Obsessão Indecente', todos de Colleen McCullough, são livros de que gosta.

FILMES

As preferências de Vítor Jorge vão para ‘Kramer contra Kramer', ‘Henry e June' e ‘África Minha'.

DESPORTO

Joaquim Agostinho, Maria Sharapova, Lance Armstrong e o Benfica merecem o seu destaque.

MÚSICA

‘Mata Sete' gosta de ouvir o português Luís Represas e ainda Vanessa Mae, Whitney Houston e Aurea.

HOMICIDA DE BEJA SEMPRE MOSTROU SINAIS

Por Isabel Faria

Os sinais foram sendo dados durante anos - depressão, paternidade incógnita, prisão por desfalque -, mas ninguém esteve disponível para os ler. E num repente, a cidade alentejana de Beja acordou com um crime macabro cometido dentro da casa de uma família que parecia não ter problemas.

Descontrolado, a 8 de Fevereiro, Francisco Esperança, ex-bancário, de 59 anos, assassinou à catanada a mulher, a filha e a neta, de quatro anos. Os animais de estimação também não escaparam "à limpeza". Ainda conviveu alguns dias com os cadáveres, fez vida normal na cidade até que a ausência das vítimas chamou a atenção do namorado recente da filha, Cátia. Acossado na própria casa, alcoolizado e em tronco nu, o homicida foi detido.

Confessou o crime com uma calma que desconcertou a procuradora Maria José Martinho. A ela contou ter usado a catana por "ser uma arma silenciosa" e justificou os crimes para evitar à família a vergonha de um acumular de "dívidas" que levaria à penhora da casa. Não queria deixar a neta sozinha. Lamentou não ter tido coragem para se suicidar logo após os crimes, por isso deu tiros para o ar, e acabou com a vida dias depois na cela do estabelecimento prisional de Lisboa, para onde tinha sido transferido.

A família afastada mostrou surpresa, mas os Esperança há muito davam sinais de tensão. Francisco cumprira pena por desfalque bancário, foi-lhe detectada depressão crónica; a filha tentara duas vezes o suicídio e a paternidade da neta, a quem era muito chegado, é uma incógnita.

Diz o psicólogo José Carlos Garrucho que os casos de violência na família "resultam muitas vezes de um surto psicótico em alguém que se vê como guardião do lar". No entanto, o clínico alerta que muitas vezes essas pessoas são muito isoladas. "Têm poucas redes sociais, ninguém visita a sua casa e, nesse caso, é difícil perceber os sinais de crise. São pessoas em sofrimento cujos sinais nem sempre são lidos."

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