Derrubador de touros foi julgado por matar um deles na Moita.
Chamaram-lhe derrubador de touros e de corações, ele que foi considerado o toureiro que melhor bandarilhou no mundo e que se tornou matador admirado nas arenas. Nesta entrevista, Mário Coelho desfia memórias onde não faltam histórias com as estrelas que conheceu, nem a fortuna que ganhou o rapaz da província que sempre sonhou ser toureiro.
Foi cinco anos amador, 11 anos bandarilheiro e mais de 23 matador. Do que tem mais saudades?
Os toureiros têm uma facilidade tremenda que lhes abram as fronteiras em toda a parte e eu era um miúdo de província que não imaginava que um dia ia poder conviver com essa vida de luxo. Mas do que tenho mais saudades é de quando andava aqui nesta casa [onde nasceu e onde hoje é a Casa Museu Mário Coelho] e jogava futebol sem sapatos. Foi também em frente a estas paredes que treinei, com toalhas a fazer de capotes, os primeiros ‘capotazos’.
Quando foi à primeira corrida?
Tinha cinco anos. O meu pai tinha um bilhete oferecido de sete escudos e meio, mas à medida que íamos andando pela rua com o bilhete pela mão as pessoas começaram a oferecer vinte, quarenta, cinquenta escudos pelo bilhete. Passávamos naquela altura, pós-2ª Guerra Mundial, muitas dificuldades. Mas quando o meu pai pensou aceitar a troca, eu apertei-lhe a mão e ele disse, orgulhoso, ‘não, eu não quero o dinheiro’. Isso influenciou toda a minha carreira.
Quanto foi o seu primeiro cachê?
Ainda era amador quando apareceram dois empresários da Nazaré e disseram: ‘Vamos dar-te 300 escudos [1,50 euros]’; eu ganhava 80 escudos [40 cêntimos] por semana na Câmara, como canalizador. Na arena – eu era muito ágil – pus um pé no estribo, dei um salto, rebolei no ar e fiquei sentado em cima da barreira.
E quem é que estava na barreira naquele dia? A Amália Rodrigues, que exclama: ‘Mas isto é um diabo?’ Com o dinheiro que recebi comi seis ou sete doses de lulas recheadas, comprei um terço de filigrana para a minha mãe e ainda sobrou.
Mais tarde chegou a receber dos maiores cachês pagos a toureiros portugueses…
Cheguei a cobrar, na Venezuela, 20 mil dólares [18 mil euros] numa corrida, e com 20 mil dólares nesse tempo comprava seis Mercedes. Mesmo cá em Portugal chegava a cobrar no Campo Pequeno 180 contos [900 euros], quando o mesmo Mercedes custava 90 [450 euros]. Mas costumo dizer que se os empresários na época soubessem a ‘afición’ e a vontade que eu tinha de tourear, eu é que tinha de lhes pagar a eles (risos).
À boleia dos touros conheceu muitas celebridades internacionais, como o escritor Ernest Hemingway ou o realizador Orson Welles.
Fiz uma viagem de carro com o Hemingway, e naquela altura ele tinha um compromisso de mandar diversos artigos mas, nos copos e com os amigos, acabava por não mandar. Um dia, ao telefone num bar com a revista ‘Life’, exaltou-se e depois disso, já no carro, disse-me: ‘Dava tudo para cravar um par de bandarilhas como tu, Mário.’ E eu disse: ‘E eu trocava mil pares de bandarilhas pelo seu talento.’ O Orson Welles conheci-o em 1964, em Madrid, e mantivemos uma boa amizade, seguiu-me em muitas corridas.
E também teve uma relação íntima com a atriz Ava Gardner...
Posso ter sido um malandro para as mulheres, mas nunca na minha vida disse que fui namorado ou que fui para o quarto com uma senhora. A minha ligação com a Ava começou em 1959 numa corrida, ela ia lá ver os matadores de touros e, apesar de eu ser na altura bandarilheiro, houve uma troca de olhares e mais tarde fui convidado para a embaixada dos Estados Unidos, onde a conheci.
Fazíamos ginástica juntos, corríamos em Madrid e um dia descemos a rua de Alcalá e havia um stand com um descapotável muito bonito, branco, com estofos grenás e eu fiquei encantado com o carro, tinha naquela altura um Renault usado. Um dia ela foi ter comigo ao hotel e estendeu-me um envelope com o livrete e a chave do carro.
Eu, com a minha mentalidade saloia, disse que não e ela ficou ofendida. Muitos anos mais tarde, convidado a tourear na Califórnia, fui a um programa de rádio e a Ava telefonou para lá. ‘Oh Ava, ainda fazes as corridinhas que a gente fazia em Espanha?’ E ela diz ‘já não posso nem andar’. Pouco depois, ia a sair de casa e vi num quiosque a revista ‘¡Hola!’ com uma fotografia na capa a anunciar a morte dela. Deu-me uma tristeza imensa.
Do Picasso recebeu um bilhete.
Foi numa corrida em França, em que eu era bandarilheiro. Deu-me um bilhete onde tinha feito um desenho de um fulano a pôr um par de bandarilhas, que era eu. Dez anos mais tarde mandei fazer um fato com o desenho do Picasso.
Como lidava com o medo?
Diante do touro não estás diante de um inimigo, mas de um adversário que respeitas, admiras e até amas. Mas é o único adversário que pode roubar-te a vida, tem toda a liberdade para roubar-te a vida, e não há nenhuma crítica de nenhum toureiro em relação ao touro que rouba a vida. Eu tinha mais medo do público que do touro. Quando entra na praça, o toureiro não tem família: não tem mulher, não tem filhos, não tem pai, não tem pátria, não tem nada, é ele e o touro, o seu adversário.
Em Portugal foi julgado por matar um touro na Moita, em 1984.
Em Espanha, tu não matas um touro e vais preso porque não cumpriste. Aqui em Portugal matei um touro e fui a julgamento e havia de facto uma tentativa do Ministério Público para que a minha pena fosse exemplar. Eu matei o touro porquê? Porque era uma corrida de verdade.
Enquanto naquela altura se toureavam aqui touros pequenos, aquela era uma corrida com touros adultos, com cinco anos, mais de 500 quilos em pontas e com duas das maiores figuras do toureio mundial. E entendi – só eu, não houve conhecimento de ninguém – que aquele touro merecia uma morte digna, não tinha que ir com ferimentos para o matadouro, para ser abatido com febre 24 horas depois.
Quando foi o julgamento houve feriado nacional durante dois ou três dias, as pessoas queriam estar presentes no tribunal, com ameaças do juiz de que punha toda a gente que estava a assistir na cadeia e a rua completamente cheia à espera da sentença.
E qual foi?
Eu disse ao doutor juiz que o meu entusiasmo era tão grande que perdi a noção de onde estava e já não sabia se estava no México, em Espanha ou Portugal: levava a espada e entrei a matar. Houve um psicólogo que disse sim senhor, isso é possível, e tive uma multa de 300 mil escudos [1500 euros] e três anos de pena suspensa.
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