‘Os Meninos do Rio’ mostra uma realidade com 125 anos: miúdos do Porto a saltar da ponte D. Luís I.
A 18 de dezembro de 1942 estreava no Cinema Éden o filme ‘Aniki Bóbó’, de Manoel de Oliveira, uma história com e sobre miúdos que tinha como pano de fundo a zona ribeirinha do Porto e de Gaia. Mais de setenta anos depois, a Ribeira da Invicta e as suas crianças voltam a ser protagonistas à frente das câmaras. Já não entoam a fórmula mágica ‘Aniki Bebé. Aniki Bóbó. Passarinho. Tótó. Berimbau. Cavaquinho. Salomão. Sacristão. Tu és polícia. Tu és ladrão’, mas também saltam da ponte D. Luís I em direção ao Douro, um ritual de valentia que ali se vê e vive desde que a ponte de filigrana de ferro ficou pronta, há já 125 anos.
Desta vez não é o centenário Oliveira a realizar o filme (aliás, a curta-metragem) mas sim o cineasta espanhol Javier Macipe, de 26 anos, que numa visita turística ao Porto ficou deslumbrado com o ‘postal’ que lhe passou à frente dos olhos. "Encontrei uma situação que é difícil ver em Espanha: um grupo de crianças que passam tanto tempo juntas e não estão o dia todo em casa agarradas ao computador. Há uma microssociedade na Ribeira que achei importante documentar", explica o realizador. ‘Os Meninos do Rio’ – assim se vai chamar "o projeto de ficção em estilo documental" – são também os guardiões do rio, e é isso que a curta-metragem quer mostrar. Para sublinhar o registo, os ‘saltadores’ da Ribeira – quinze, entre os cinco e os dezasseis anos – são nados e criados junto à ponte, escolhidos num casting a preceito onde lhes foi pedido que contassem as suas histórias de vida, tão entrelaçadas no Douro como as dos seus pais e avós.
"Comecei a nadar no rio com cinco anos e a saltar do tabuleiro com nove. As minhas irmãs também saltavam, antes de casarem, e a minha avó, apesar de não saltar do tabuleiro, dá mergulhos no rio", conta com graça Eurico Garcês, 14 anos de genica na voz e no corpo. "Perguntei quem eram os senhores do casting e a minha prima disse-me. Fui falar com eles e apesar de a data já ter passado eles disseram que eu podia tentar. Fizeram-me perguntas sobre mim e depois tinham lá uma rapariga para eu contracenar. A minha mãe – auxiliar num lar de idosos – ficou muito contente e disse que isto pode ser uma boa oportunidade para o meu futuro, e também uma forma de eu ganhar responsabilidade", continua Eurico, que todos conhecem como o ‘Messi da Ribeira’.
Joga no Candal – já teve até um convite para ir jogar para Inglaterra –, mas a experiência no cinema deixa-lhe no ar uma outra possibilidade. "Nunca se sabe. Desde que consiga pôr a minha família bem na vida, é indiferente ser jogador da bola ou ator. Eles agora cuidam de mim que ainda sou pequeno e depois sou eu que tenho de cuidar deles", diz quem gosta da escola "mas não das aulas" e já assistiu a mais desgraças em 14 anos do que muitos numa vida inteira. "O que mais me marcou nestes miúdos foi saber a quantidade de suicídios que eles já presenciaram na ponte, eles são os primeiros a ver as pessoas que se atiram para morrer. Contaram-me histórias arrepiantes e o documentário mostra muito essa realidade", conta o realizador.
O ‘Messi da Ribeira’ confirma. "Matam-se mesmo, já vi várias. Uma vez ia para a escola e uma senhora mandou-se da ponte mas não caiu na água, caiu no chão, com a cabeça toda aberta. Vomitei e tudo e estive uma semana a pensar nisso, nem dormia. Também vi o pai de um colega que se matou por desgostos. É mau as pessoas mataram--se. Eu, apesar de ser novo, acho que não há motivos para alguém querer morrer, mas é bom ter visto porque essas histórias tornam-nos mais fortes no futuro".
OS 'SALVADORES'
Os miúdos também salvam, não assistem só a mortes que não vão a tempo de travar. "São eles os primeiros a assistir aos afogamentos e a tentar tirar as pessoas da água. Pode ser que o documentário alerte para a necessidade de haver um salva-vidas no rio", acredita o realizador. Leonardo Durães, de 14 anos, nunca saltou do tabuleiro da ponte. Nem na realidade nem na ficção. É ele o protagonista da curta-metragem, o rapaz tímido e apaixonado que fica a ver os outros a saltarem da ponte sem ter coragem para o fazer, de saltar também. "A história dele marcou-me e faz-me lembrar de mim quando era menino: namoradeiro, alguém que já sofreu por amor", explica o realizador. Leonardo participou no casting na associação da Segurança Social ‘Qualificar para Intervir’ e foi escolhido. "Era mais fácil escrever a história com um menino que não fosse exatamente da Ribeira, que não fizesse parte do grupo dos ‘saltadores’, por isso fizemos castings em escolas, instituições e tempos livres."
O protagonista mora "a dez minutos a pé da Ribeira, no Bonfim". Nasceu em Lisboa mas vive no Porto há sete anos, com a mãe (que está desempregada) depois da separação dos pais. "Eram mesmo muitas crianças e senti-me muito contente e honrado. Até já tinha pensado ser ator, por isso é um grande orgulho. Qualquer dia sou conhecido, até porque no outro dia passei na rua e um senhor perguntou-me: ‘tu és daqueles rapazes que vão participar no filme, não és?’ Eu disse-lhe: ‘sou, mas não vou saltar’". Samira Ramos, de 16 anos, também não. Nem poderia, porque não sabe nadar. É por ela que o personagem de Leonardo se vai apaixonar na curta-metragem. Veio do Brasil há dois anos com o pai à procura de uma vida melhor. O progenitor já regressou ao país do samba, mas Samira ficou a ajudar a irmã. "Tomo conta da minha sobrinha enquanto ela trabalha numa cozinha", conta a adolescente brasileira – que não vai à escola em Portugal.
Samira não foi ao casting, apesar de morar na Ribeira. "Descobri-a por acaso, quando estávamos à procura de uma rua para filmar. É uma menina que tem algo de distinto, foi uma casualidade encontrá-la e acredito em casualidades", comenta Javier Macipe, convicto no talento da jovem Samira. "Nunca tinha feito nada em televisão e fiquei muito feliz, estava a pensar trabalhar em algo ligado ao comércio, mas se der certo a representação nunca se sabe..."
A notícia deu-a aos pais por telefone, numa ligação da Ribeira para Porto Seguro, Bahia. Do lado de lá deram-lhes os parabéns e desejaram-lhe sorte. "Sou muito tranquila e já conheci o rapaz que se apaixona por mim, é muito simpático e sabe atuar melhor do que eu". "A Samira é muito gira e é alta, embora eu também seja baixo, não dá para medir muito bem", esclarece por seu lado Leonardo.
25 METROS E MEIO
Trabalhar com os ‘saltadores da Ribeira’ escolhidos para a curta-metragem é fácil. "Porque é fácil para eles serem quem são, eles preocupam-se menos com o que as pessoas pensam deles e esquecem-se rapidamente da presença da câmara, são naturais", explica Javier Macipe. No fundo, ali tudo é real: o sítio existe, os miúdos existem e fazem realmente aquilo, saltam há anos para o Douro. Bela Palavrinhas – assim mesmo, Palavrinhas, que é como toda a gente a conhece – que o diga.
"Comecei a nadar aos cinco anos no rio e a saltar da ponte aos seis. Tenho 42 anos e hei de saltar até aos 50. Ainda ontem, depois de limpar a casa, olhei para a canalha na água, pedi a um para me segurar a carteira, atirei os chinelos para debaixo da ponte e lancei-me. É uma adrenalina que não dá para explicar." Foi Bela quem mediou os primeiros contactos entre a produtora e os atores, todos miúdos que viu de fraldas na Ribeira e que pegou ao colo à medida que iam nascendo. "E depois, disse-lhes: ‘Eu sei que tenho 42 anos, mas gostava de ser alguém na vida’", confessou à equipa luso-espanhola responsável pelo filme. E acrescenta: "Não é que eu não seja mundialmente conhecida, porque fui a primeira mulher a integrar a claque dos Super Dragões, mas nunca tive grande proveito. Esta é a minha grande oportunidade" – explica Bela, desempregada, três filhos e dois netos. Um dos filhos teve uma participação no filme ‘Jaime’ e agora Belinha, a mais nova, de 15 anos, vai ter o seu momento de fama também neste ‘Os Meninos do Rio’. "Acho que pode ser uma coisa boa para mim. Contei às minhas amigas e elas disseram que também queriam participar. Vou ter de saltar, mas não tenho medo nenhum, faço isso desde os seis anos. Para quem está habituado é canja, só é preciso saber nadar", conta a campeã de boxe.
"Mas só no verão" – adianta-se Eurico. "Uma vez saltei no inverno e fiquei com uma pneumonia que jurei para nunca mais, nem podia sair da cama." Em relação à participação no filme, só uma coisa o preocupa: "A minha namorada não gostava que eu aparecesse em tronco nu, por causa das outras miúdas, ‘tá a ver? Mas se eu ficar famoso, ela depois não se deve importar..."
UMA PRODUÇÃO LUSO-ESPANHOLA
‘Os Meninos do Rio’ é uma coprodução luso-espanhola, entre a portuguesa Riot Films e a espanhola El Temple. "O realizador convidou-nos para fazer a produção em Portugal. Fomos conseguindo vários apoios (câmaras de Saragoça e do Porto, Turismo do Porto e Norte, Douro Azul, Porto Film Commission e Associação de Bares da Zona Histórica da Invicta)", explica Júlio Alves, da Riot Films. De Espanha vieram, além do realizador, o diretor de fotografia e o de som. A produtora explica que "todos os miúdos irão receber um cachet dentro dos limites da produção, valor que ainda não está definido". O filme teve quatro dias de rodagem, entre a Ribeira e as ruas das Flores e do Codeçal, e será pós-produzido até ao final do ano. A ideia é que em 2014 entre no circuito dos festivais de cinema.
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