O Finalmente tem 40 anos e continua a dar cartas na noite lisboeta. os travestis são as estrelas que sobem ao palco
Samantha Rox nasceu no 15 de agosto de 1986, feriado nacional da Assunção de Nossa Senhora, mas nem por isso é crente. Tem personalidade extrovertida e até ligeiramente gozona, uma preferência pelo batom bordeaux com que pinta os lábios finos e um certo gosto por bordar pérolas em vestidos de cabaret quando o tempo livre permite. Marco Ferreira tem 46 anos e descobriu cedo o deslumbramento pelos brilhos e pelas luzes. Começou no palco do teatro amador mas, aos 17 anos, quando entrou pela primeira vez no Finalmente – um bar-discoteca no Príncipe Real que resiste há quarenta anos num espaço acanhado onde os travestis são as estrelas da madrugada – nunca mais de lá saiu. Mesmo que o pai quase o tenha matado quando descobriu onde passava as noites.
"Roubei um vestido à minha mãe e fui. Sempre tentei esconder o que fazia porque sabia que o meu pai era daqueles homens à antiga portuguesa que homem é homem, mulher é mulher e fora isso é aberração, mas houve um dia que ele me aborreceu tanto que eu disse: ‘ai é, queres saber o que é que eu faço? Sou isto e faço isto’. Escusado será dizer que a casa veio abaixo." Passaram trinta anos desde que Samantha nasceu e Marco nunca a matou. Ou mata-a todas as manhãs para a ressuscitar todas as madrugadas, altura em que se planta em frente ao espelho para despir o homem que é durante o dia e maquilhar com precisão o alter-ego. Foi casado durante quatro anos com uma mulher que conheceu no Finalmente. "Vinha ver todos os meus shows e convenceu-me", por isso prefere não assumir uma orientação sexual definida. "Apaixono- -me por seres humanos."
É o segundo membro mais antigo do elenco do Finalmente, só ultrapassado por Fernando Santos – ou Deborah Kristal – que além de travesti é também o diretor artístico do grupo, um homem de 53 anos e de rosto andrógino que privou com alguns dos mais famosos transformistas portugueses, como Lydia Barloff e Ruth Bryden. Fernando Santos foi inclusivamente nomeado melhor ator pelo filme ‘Morrer como um Homem’, de João Pedro Rodrigues, inspirado na vida de Bryden – ele que é, graças à sua Deborah Kristal, atualmente um dos maiores ícones do transformismo da cena lisboeta ainda em atividade.
Grito de libertação
O 25 de Abril de 1974 tinha sido há meia dúzia de anos quando, numa saída à noite, numa altura em que durante o dia trabalhava num pronto- -a-vestir, o desafiaram a vestir roupas femininas numa boîte na Amadora, a Fórmula Um. Depois da revolução, os homens vestidos de mulher deixaram de ser um exclusivo das peças de teatro e invadiram os espaços noturnos, em jeito de grito de libertação dos homossexuais.
Só no Príncipe Real havia cinco bares de travestis, embora a primeira casa tenha sido o Scarlatty Club, na rua de São Marçal, no Martim Moniz. Fernando foi a medo: "A experiência de ser maquilhado e vestir roupas femininas? Terrível, terrível, ao início nem nos depilávamos, usávamos quatro e cinco pares de colantes para esconder os pelos, passávamos um calor insuportável. Durante dois anos, só fiz papel de fadista porque como sou de um bairro popular era a única coisa que sabia fazer, entrava com um vestido preto, com um xaile, chegava ao palco, debitava aquele fado e já estava". Foi Susy Flower e Deborah Snake antes de assumir o nome pelo qual ficou conhecido, ele que depois da vergonha inicial percorreu a Europa em bares, casinos e cabarets e só voltou ao Finalmente em 1994 (onde tinha estado dez anos antes), já como Deborah Kristal e diretor artístico. Saiu mais uma vez em 1996 e regressou em 2000 para ficar. Muito tinha mudado. Nos loucos anos oitenta, ainda sobrava em Lisboa um rasto de costumes anteriores à revolução dos cravos: os proxenetas que tinham as meninas nos cabarets e os boxeurs do Parque Mayer "que dominavam a cidade e que gostavam muito de vir para aqui à noite e nem sempre acabava bem. Também houve uma altura em que o antigo dono, Armando Teixeira, o fundador desta casa, proibiu a entrada às mulheres". Nessa época, muitos dos que ali entravam para beber um copo acreditavam que no palco estavam mulheres e não homens.
"Estava a começar essa explosão e o ideal era que as pessoas que estavam a ver acreditassem que era uma mulher que estava ali, mas, no fim, fazíamos números de desmistificação do boneco, de arrancar a peruca, rasgar as meias, tudo isso que hoje já não é preciso porque sabem ao que vêm. Na altura, havia pessoas que entravam ali e ‘ai que miúda tão gira, podes-me apresentar no fim, de onde é que vieram estas miúdas, são inglesas?’, e depois chegavam ao fim e quando limpávamos a cara, ficavam: ‘o quê, isto são homens?’. Um dia vinha a sair do palco e o dono da casa parou-me: ‘tira lá os peitos’. E virou-se para o cliente e disse: ‘já percebeste agora?’. Era interessante essa ingenuidade que havia no país", recorda Fernando, antes de começar a vestir a pele de Deborah num camarim onde os chapéus, as plumas e as perucas se apertam para que nada caia.
Rivalidade?
Há 30 anos, muitas das roupas dos espetáculos eram pedaços de cortina presos com alfinetes. "Havia muito pouca coisa a nível do guarda- -roupa. As vedetas do teatro iam comprar a Paris ou a Madrid, mas nós queríamos um brilho, uma lantejoula, havia uns galõezinhos na Casa Batalha mas era caríssimo para os nossos cachets, ganhávamos muito pouco" diz Fernando. Não dizem quanto ganham hoje, mas quando o gravador se desliga garantem que "dá para viver bem", porque trabalham todos os dias, "apesar dos gastos em roupa, sapatos e maquilhagem" inerentes à profissão. Até porque, quando às 03h30 a cortina se abre, querem ser as mais bonitas da festa.
"A Nyma [Charles] tem de ter personalidade forte para se impor nesta profissão. Há muitas bocas para um prato só e para te manteres tens de te impor, não com maldade mas com uma rivalidade saudável", explica João Carlos Marques, travesti há 23 anos e autor dos seus fatos de cena. "Sou de uma família de costureiros e alfaiates e, por isso, não é difícil. E, quando não tenho tempo para fazer, peço à minha mãe que faça os acabamentos, ela respeita a minha profissão e até já cá veio ver- -me", conta João, ou Nyma.
Hugo Pardal, de 27 anos, também já trouxe a família. É o primeiro a chegar, ainda antes da uma da manhã. No bar já se movimentam meia dúzia de clientes que abanam o corpo ao som de ritmos como Enrique Iglesias ou Amy Winehouse. É o mais novo do elenco, foi contratado há dois anos e precisa de mais tempo para vestir a pele de Kelly Kiss, o alter-ego que descobriu quando trocou o Alentejo por Lisboa. "A Kelly trouxe-me mais naturalidade: chego aqui, transformo-me e saio de cara lavada, mais seguro de mim próprio. Durante o dia sou eu e à noite transformo- -me numa linda mulher, que nasce quando eu ponho as pestanas." Antes de entrar em palco, e com cuidado para não borrar o batom, fuma mais um cigarro, fôlego extra para encarar o público que espera pelas divas. Finalmente começou o espetáculo.
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