Ex-ministro das Finanças, Jorge Braga de Macedo, então com 22 anos, comprou bilhete para o festival dos “três dias de paz e amor”.
Passavam sete minutos das cinco da tarde do dia 15 de agosto de 1969 (fará meio século na próxima quinta-feira) quando, sozinho com a sua guitarra acústica, num palco gigantesco, Ritchie Havens começou a cantar ‘From the Prison’ e inaugurou o Festival de Woodstock.
A banda Sweetwater é que devia ter aberto o programa daqueles três dias de "música, paz e amor" – em plena escalada da contestação juvenil à Guerra do Vietname (‘make love, not war’) e no auge do movimento hippie (‘flower power’). Mas tinha ficado parada no caos do trânsito, pois em vez dos cerca de 200 mil espetadores previstos (os mesmos do Festival de Monterey, dois anos antes), afluiu uma multidão calculada em meio milhão de pessoas, que "inventou" uma cidade de lona e utopia, de sol e chuva, de canábis e cogumelos – depois de lama, outra vez de céu azul e prados verdes.
Mesmo quando Ritchie Havens, após esgotar o seu repertório, improvisou sobre o velho gospel ‘Motherless Child’ e criou o famoso hino ‘Freedom’, com que se retirava ainda a dedilhar as cordas e com a túnica colada às costas pela transpiração, não se pensava que aquele acontecimento se viesse a tornar uma lenda.
O futuro ministro das Finanças Jorge Braga de Macedo, então um jovem de 22 anos a passar as primeiras férias nos Estados Unidos, tinha o bilhete de seis dólares para o segundo dia – um dos 186 mil vendidos, porque a maioria, derrubando a vedação, entrou sem pagar. Mas naquele sábado, quando estariam a uns cinco quilómetros do recinto, que viam do local onde tinham parado entre uma "balbúrdia de carros" (as autoridades já tinham considerado "zona de calamidade pública"), alguém terá dito: "A partir daqui, só se pode ir a pé."
Perante a chuva que caía de forma inclemente e a perspetiva de ficarem completamente encharcados, tanto ele como o amigo que conduzia o Ford Mustang e as duas jovens que os acompanhavam decidiram inverter a marcha e regressar a casa.
No dia seguinte, ao ler os jornais, Jorge Braga de Macedo deparou com a expressão que sintetizava o que se estava ali a passar e que praticamente ninguém, entre aquele mar de gente, vinda até mesmo da Costa Leste e representando todas as tribos urbanas, ainda tinha tomado consciência: "O Mundo mudou."
O sábado de Janis Joplin
Apesar de só ter tomado conhecimento de alguns grupos quando chegou aos Estados Unidos, na altura do festival já os nomes em cartaz eram quase todos do seu agrado. Aliás, gosta de sublinhar que este episódio é a "ponta do iceberg numa vida sempre marcada pela música".
Mais tarde, quando Vilar de Mouros tentou ser o ‘Woodstock português’, em 1971, apenas com duas bandas estrangeiras, para espanto dos seus amigos de Cascais, encontrou uma antiga colega do Liceu Francês que era a empresária de Elton John e o levou aos bastidores para lhe apresentar o afável compositor e intérprete.
Mas, em agosto de 1969, tinha escolhido o programa do segundo dia, que anunciava Janis Joplin (que viu a atuar no Central Park), Grateful Dead, Creedence Clearwater Revival, Canned Heat (Jerry Garcia havia de se queixar por ter apanhado choques elétricos na guitarra devido à chuva), Jefferson Airplane, Santana e The Who.
Entre as preferências do melómano português ficavam de fora Joan Baez, a estrela de sexta-feira, grávida de seis meses e a dedicar o tema ‘Joe Hill’ ao marido, objetor de consciência que estava detido por se recusar a ir combater no Vietname; e os Blood, Sweet & Tears, agendados para domingo.
Os 267 "novos" temas
Na montagem, teve de se prescindir de imenso material, que ia desde a sitar do indiano Ravi Shankar à frenética guitarra de Alvin Lee (Ten Years After), do rock psicadélico de Country Joe and the Fish ao folk de Melanie Safka (que, vendo o público com isqueiros acesos, pensando que eram velas, acabaria por compor um dos seus êxitos, ‘Lay Down (Candles in the Rain)’) – mas decidir escolher entre Arlo Guthrie ou The Band não seria fácil.
Naquele documentário há atuações memoráveis, como a versão de Joe Cocker, completamente drogado, a imortalizar ‘With a Little Help from My Friends’ (o tema dos Beatles), ou o solo do jovem baterista Michael Shriev, que acompanhava Carlos Santana, na interpretação de ‘Soul Sacrifice’. Mas Janis Joplin, por exemplo, só aparece a sair de um dos helicópteros que tinham ido buscar os músicos em vez de surgir a cantar ‘Kozmic Blues’, ‘Piece of My Heart’ ou ‘Ball and Chain’.
Também não se percebe que os Crosby, Stills & Nash, com a aparição de Neil Young após meia dúzia de temas, se transformaram ali nos Crosby, Stills, Nash & Young.
O conjunto das gravações nos microfones do palco (músicas, comentários, mensagens) estão registados em 32 horas, como comprovaram o produtor Andy Zax e o sonoplasta Brian Kehew, autores do recentemente comercializado ‘Woodstock – Back to the Garden (50th Anniversary Collection)’, cuja edição de luxo – com caixa forrada a tela e uma ‘ephemera’ que inclui desde um cartaz que nunca chegou a ser afixado até uma correia de guitarra como a usada por Jimi Hendrix – tem 36 CD com 432 temas ali tocados (faltam dois de Hendrix, por questão de direitos, e um dos Sha Na Na, que não foi possível recuperar).
Para se perceber esta preciosidade, de que só serão executadas 1969 cópias numeradas (há versões com 10 e 3 CD), basta dizer que, até agora, apenas se tinham ouvido, em diferentes discos, 165 músicas do festival.
Neste registo nem sequer devem faltar episódios como o do ativista radical Abbie Hoffman, convencido que ali estava presente uma "nação", a agarrar no microfone em que Roger Daltrey cantava ‘Pinball Wizard’ (os The Who tocaram a ópera-rock ‘Tommy’ na íntegra e mais alguns clássicos desta banda que enalteceu ‘My Generation’) para protestar contra a prisão de John Sinclair, líder do White Panther Party – com Pete Townshend a afastá-lo do palco a golpes da guitarra que, no final, lançaria para o meio do público.
Sem Beatles nem Zappa
Três dias e meio depois de Ritchie Havens, a guitarra elétrica de Jimi Hendrix encerrava o programa entre as 9h00 e as 11h00 da manhã de segunda-feira (já o sol raiava), com um solo de três minutos e 46 segundos que é provavelmente a sua melhor versão psicadélica do hino americano (há dezenas de gravações dele a tocar ‘The Star-Spangled Banner’), em que, no meio daqueles ‘riffs’ poderosos, quase se ouvem as bombas dos aviões B-52 a caírem no Vietname.
Jorge Braga de Macedo, de tal forma se sente envolvido naquele "momento disruptivo da contracultura" – "decorei muitas músicas", que parte da sua geração também trauteou, desde ‘White Rabbit’, dos Jefferson Airplane, a ‘On the Road Again’, dos Canned Heat –, que considera ter a mesma sensação que interiorizaria se se tivesse sentado na relva ou chapinhado na lama do recinto: "Recordo-me de tudo, como se fosse ontem. Inesquecível!"
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