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“Portugueses sempre tiveram uma história de miscigenação”

Tudo começou com um pequeno grupo de ‘adães’ e ‘evas’ há 200 mil anos. É lá que se ‘escondem’ as linhagens portuguesas. Quem somos e de onde vimos é um caminho que a investigadora Luísa Pereira ajuda a traçar.

10 de janeiro de 2010 às 00:00

- Escreveu o livro ‘O Património Genético Português’. O que dizem os nossos genes?

- Podem oferecer várias informações, nomeadamente aquela a que estamos mais acostumados, que é saber se temos alguma doença genética. Mas nem toda a informação no nosso genoma pode ser má e levar a doenças. Há uma parte, que o livro trata, que pode ter informação que nos ajuda a inferir a história evolutiva da espécie.

- E também a história de um país?

- A história de um país é mais difícil porque as populações são móveis, pelo que dificulta associar a momentos específicos. Ao estudarmos a história evolutiva da população estamos interessados não só em migrações geográficas mas também no seu comportamento ao longo do tempo.

- E por que é que se sabe mais sobre os genes transmitidos pelas mulheres?

- Porque a parte masculina, transmitida apenas dos pais para os filhos, que é o cromossoma y, é muito maior e tem zonas que são altamente repetitivas, o que torna o seu estudo complicado, ao contrário do genoma que é transmitido apenas pelas mulheres. É uma questão metodológica.

- É por isso que no livro refere que o ‘Adão’ é mais novo do que a ‘Eva’?

- Sim, porque ao reconstruirmos o passado temos que garantir que estudamos o maior número de populações totais, a maior diversidade. E isso é mais facilitado quando se estuda o ADN mitocondrial, que pertence às mulheres, à nossa ‘Eva’. Como não temos ainda capacidade tecnológica para estudar tão bem o cromossoma y, a nossa inferência para o passado nunca é tão longa em relação ao ‘Adão’.

- No fundo, ‘Adão’ e ‘Eva’ têm a mesma idade mas é mais fácil chegar ao passado das mulheres.

- Sim, tanto que isso criou alguns problemas de interpretação de resultados porque se achava que ‘Adão’ e ‘Eva’ não tinham afinal co-habitado.

- Quando se souber mais do ‘Adão’, ou seja, sobre as linhagens masculinas, as teorias sobre a ‘Eva’ podem cair por terra, ser alteradas?

- Isso não, porque temos a certeza que o Leste de África é o sítio mais provável para o ‘Adão’ ter aparecido. O que está em questão é quanto mais atrás conseguimos ir até o conseguirmos pôr da mesma idade da ‘Eva’ ou num patamar próximo.

- O ‘Adão’ nasceu no Leste de África. E qual é a nossa linhagem materna?

- Quando estudamos as linhagens maternas também temos, devido a certas particularidades biológicas, facilidade em sabermos que algumas linhagens são mais frequentes na África Subsariana [a sul do deserto do Sara], outras são mais frequentes na Europa, outras na Ásia. E o que verificamos em Portugal é que a maior parte das linhagens são partilhadas com outras populações europeias.

- Não temos uns ‘pais’ exclusivos.

- Não, partilhamos uma grande percentagem de património genético com o resto da Europa. Estamos à espera de saber mais ou menos há quanto tempo entraram essas linhagens cá na Europa. Temos algumas que entraram há muito, muito tempo, a partir de 40 mil anos, temos outras mais recentes, há cerca de 20 mil anos, outras há dez mil anos, e portanto conseguirmos distinguir as várias levas.

- É possível perceber, em cada uma dessas fases, por que é que entrámos na Europa?

- O Homem conseguiu expandir-se por todos os continentes e em todos os tipos de clima por isso é a espécie com maior sucesso. E à medida que a espécie humana foi crescendo em número foi migrando. Agora estamos a conseguir perceber os motivos – porque temos mais dados de climatologia do passado – e saber até que ponto as migrações foram influenciados pelo facto de o Norte da Europa estar debaixo de uma calota de gelo.

- O clima foi um dos grandes responsáveis pelas migrações.

- Sim, pensa-se, por exemplo, que por o Sul da Europa nunca ter estado tão afectado pelo gelo como o Norte, que a Península Ibérica foi um refúgio: teria mais alimentos disponíveis, seria mais fácil habitar.

- É por causa disso que se diz que África ofereceu ao passado as condições mais favoráveis para a evolução?

- Não se tem a certeza mas concorda-se que a espécie humana surgiu em África e por lá permaneceu muito tempo. Depois há uma série de hipóteses para explicar por que é que isso aconteceu. Pensa-se que os hominídeos evoluíram para a espécie actual do homo sapiens no Leste de África. E muitas vezes associa-se isso com alterações climáticas.

- No livro diz que o grupo que viveu em África tem mais variantes de ADN humano que o resto do Mundo. Sem essa ancestralidade não existíamos?

- Sem isso a espécie humana, como é actualmente, não existiria.

- Mas o facto de as pessoas que vivem actualmente descenderem apenas de um único ancestral comum não significa que tenha existido apenas um ‘Adão’ e uma ‘Eva’. Quantos houve?

- Não se consegue saber. O que sabemos é que todas as espécies começam de um pequeno número de indivíduos.

- Há esperança de um dia se recuperarem linhagens perdidas?

- Isso seria muito ‘Jurassic Park’. Não acredito que a Ciência vá evoluir para aí, acho que não há interesse. Fazer renascer um dinossauro seria tecnicamente muito difícil, embora não diga impossível.

- O Homem português moderno tem a mesma idade do Homem moderno no resto do Mundo?

- Temos uma mesma idade para a espécie humana: as populações que já estão cá há mais tempo são as africanas. O homem moderno, no geral, tem 200 mil anos, que será o nosso ancestral comum a todos. Pensa-se que permaneceram em África até há cerca de 80 mil anos e que só nessa altura houve a grande migração que trouxe o homem moderno para os outros continentes. Pensa-se que esta primeira leva foi em direcção ao sul da Índia e que chegou à Austrália há setenta mil anos, ao passo que na Europa só entraram há quarenta mil anos.

- Mas nós, portugueses, temos uma grande diversidade de linhagens...

- Porque apesar desse grande património comum, que é o mais frequente, com o resto das populações europeias, temos algumas linhagens que nos entraram de outros povos e que não afectaram tanto as outras nações, nomeadamente do Norte de África e da África Subsariana.

- Quais foram os fenómenos que influenciaram os genes portugueses?

- Temos o período islâmico, do qual encontrámos uma grande influência em Mértola. Já a entrada de linhagens da África Subsariana foi muito recente: os Descobrimentos foram o período mais provável. Também há dados históricos que comprovam que a vinda dos escravos se dirigiu principalmente para o Sul de Portugal, onde se estudou que 10% da população tinha escravos nas linhagens – e que não é uma migração recente pós-25 de Abril e pós-independência das ex-colónias.

- O que se verificou nas ex-colónias?

- É possível detectar a presença de linhagens europeias na componente masculina e ausência na feminina, porque eram os homens que migravam. As poucas mulheres que migravam iam casadas ou iam estabelecer relações com quem lá estava.

- O conhecimento das linhagens pode tornar-nos menos racistas?

- Nós, portugueses, sempre tivemos uma história de miscigenação embora muitas vezes não consigamos assumir. E os genes não ligam a questões racistas e contam-nos essa história. Não só de entrada e permanência mas também de quando os nossos navegadores migraram e deixaram genes na componente masculina nesses países que fomos colonizando. Partilhamos uma grande percentagem da diversidade, nós da espécie humana. Por isso não faz sentido nenhum, biologicamente, falarmos em raças.

"CADA VEZ SERÁ MAIS FÁCIL MIGRAR"

- O Homem geneticamente moderno é um homem como Obama?

- Se podemos prever alguma coisa é que cada vez a miscigenação vai ser maior. Cada vez será mais fácil migrar.

- Então Obama será a tendência do futuro...

- Podemos dizer que sim, porque cada vez haverá maior partilha de linhagens, de miscigenação. Há profissões em que não faz sentido pensar que vamos ter um emprego para toda a vida dentro de Portugal, por exemplo.

- O estudo da genética pode levantar problemas de aproveitamento político?

- Todas as ciências em geral podem levantar problemas éticos. Mas depende da sociedade onde estamos inseridos. Por exemplo, a questão das seguradoras usarem informação genética para saber se vamos ter uma doença no futuro não são tão prementes em Portugal como seriam nos EUA, somos diferentes.

DIVERSIDADE HOMOGÉNEA DAS 'NOSSAS' MULHERES

"A diversidade feminina é mais homogénea do que a masculina devido a características socio-demográficas. Verificou-se que nos casamentos de indivíduos de duas regiões diferentes era geralmente a mulher que migrava para a terra do marido, por norma alguém de uma aldeia vizinha, por isso notava-se uma grande mobilidade das mulheres entre zonas próximas. Os homens quando migravam era para zonas muito distantes, eram os aventureiros".

PERFIL

Luísa Pereira, bióloga e doutorada em genética populacional humana, nasceu em 1974. Durante a licenciatura percebeu que iria optar pela genética "mas para estudar as coisas boas". Investigadora do IPATIMUP (Porto) escreveu ‘O Património Genético Português’, com Filipa Ribeiro (Ed. Gradiva).

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