Tudo começou com um pequeno grupo de ‘adães’ e ‘evas’ há 200 mil anos. É lá que se ‘escondem’ as linhagens portuguesas. Quem somos e de onde vimos é um caminho que a investigadora Luísa Pereira ajuda a traçar.
- Escreveu o livro ‘O Património Genético Português’. O que dizem os nossos genes?
- Podem oferecer várias informações, nomeadamente aquela a que estamos mais acostumados, que é saber se temos alguma doença genética. Mas nem toda a informação no nosso genoma pode ser má e levar a doenças. Há uma parte, que o livro trata, que pode ter informação que nos ajuda a inferir a história evolutiva da espécie.
- E também a história de um país?
- A história de um país é mais difícil porque as populações são móveis, pelo que dificulta associar a momentos específicos. Ao estudarmos a história evolutiva da população estamos interessados não só em migrações geográficas mas também no seu comportamento ao longo do tempo.
- E por que é que se sabe mais sobre os genes transmitidos pelas mulheres?
- Porque a parte masculina, transmitida apenas dos pais para os filhos, que é o cromossoma y, é muito maior e tem zonas que são altamente repetitivas, o que torna o seu estudo complicado, ao contrário do genoma que é transmitido apenas pelas mulheres. É uma questão metodológica.
- É por isso que no livro refere que o ‘Adão’ é mais novo do que a ‘Eva’?
- Sim, porque ao reconstruirmos o passado temos que garantir que estudamos o maior número de populações totais, a maior diversidade. E isso é mais facilitado quando se estuda o ADN mitocondrial, que pertence às mulheres, à nossa ‘Eva’. Como não temos ainda capacidade tecnológica para estudar tão bem o cromossoma y, a nossa inferência para o passado nunca é tão longa em relação ao ‘Adão’.
- No fundo, ‘Adão’ e ‘Eva’ têm a mesma idade mas é mais fácil chegar ao passado das mulheres.
- Sim, tanto que isso criou alguns problemas de interpretação de resultados porque se achava que ‘Adão’ e ‘Eva’ não tinham afinal co-habitado.
- Quando se souber mais do ‘Adão’, ou seja, sobre as linhagens masculinas, as teorias sobre a ‘Eva’ podem cair por terra, ser alteradas?
- Isso não, porque temos a certeza que o Leste de África é o sítio mais provável para o ‘Adão’ ter aparecido. O que está em questão é quanto mais atrás conseguimos ir até o conseguirmos pôr da mesma idade da ‘Eva’ ou num patamar próximo.
- O ‘Adão’ nasceu no Leste de África. E qual é a nossa linhagem materna?
- Quando estudamos as linhagens maternas também temos, devido a certas particularidades biológicas, facilidade em sabermos que algumas linhagens são mais frequentes na África Subsariana [a sul do deserto do Sara], outras são mais frequentes na Europa, outras na Ásia. E o que verificamos em Portugal é que a maior parte das linhagens são partilhadas com outras populações europeias.
- Não temos uns ‘pais’ exclusivos.
- Não, partilhamos uma grande percentagem de património genético com o resto da Europa. Estamos à espera de saber mais ou menos há quanto tempo entraram essas linhagens cá na Europa. Temos algumas que entraram há muito, muito tempo, a partir de 40 mil anos, temos outras mais recentes, há cerca de 20 mil anos, outras há dez mil anos, e portanto conseguirmos distinguir as várias levas.
- É possível perceber, em cada uma dessas fases, por que é que entrámos na Europa?
- O Homem conseguiu expandir-se por todos os continentes e em todos os tipos de clima por isso é a espécie com maior sucesso. E à medida que a espécie humana foi crescendo em número foi migrando. Agora estamos a conseguir perceber os motivos – porque temos mais dados de climatologia do passado – e saber até que ponto as migrações foram influenciados pelo facto de o Norte da Europa estar debaixo de uma calota de gelo.
- O clima foi um dos grandes responsáveis pelas migrações.
- Sim, pensa-se, por exemplo, que por o Sul da Europa nunca ter estado tão afectado pelo gelo como o Norte, que a Península Ibérica foi um refúgio: teria mais alimentos disponíveis, seria mais fácil habitar.
- É por causa disso que se diz que África ofereceu ao passado as condições mais favoráveis para a evolução?
- Não se tem a certeza mas concorda-se que a espécie humana surgiu em África e por lá permaneceu muito tempo. Depois há uma série de hipóteses para explicar por que é que isso aconteceu. Pensa-se que os hominídeos evoluíram para a espécie actual do homo sapiens no Leste de África. E muitas vezes associa-se isso com alterações climáticas.
- No livro diz que o grupo que viveu em África tem mais variantes de ADN humano que o resto do Mundo. Sem essa ancestralidade não existíamos?
- Sem isso a espécie humana, como é actualmente, não existiria.
- Mas o facto de as pessoas que vivem actualmente descenderem apenas de um único ancestral comum não significa que tenha existido apenas um ‘Adão’ e uma ‘Eva’. Quantos houve?
- Não se consegue saber. O que sabemos é que todas as espécies começam de um pequeno número de indivíduos.
- Há esperança de um dia se recuperarem linhagens perdidas?
- Isso seria muito ‘Jurassic Park’. Não acredito que a Ciência vá evoluir para aí, acho que não há interesse. Fazer renascer um dinossauro seria tecnicamente muito difícil, embora não diga impossível.
- O Homem português moderno tem a mesma idade do Homem moderno no resto do Mundo?
- Temos uma mesma idade para a espécie humana: as populações que já estão cá há mais tempo são as africanas. O homem moderno, no geral, tem 200 mil anos, que será o nosso ancestral comum a todos. Pensa-se que permaneceram em África até há cerca de 80 mil anos e que só nessa altura houve a grande migração que trouxe o homem moderno para os outros continentes. Pensa-se que esta primeira leva foi em direcção ao sul da Índia e que chegou à Austrália há setenta mil anos, ao passo que na Europa só entraram há quarenta mil anos.
- Mas nós, portugueses, temos uma grande diversidade de linhagens...
- Porque apesar desse grande património comum, que é o mais frequente, com o resto das populações europeias, temos algumas linhagens que nos entraram de outros povos e que não afectaram tanto as outras nações, nomeadamente do Norte de África e da África Subsariana.
- Quais foram os fenómenos que influenciaram os genes portugueses?
- Temos o período islâmico, do qual encontrámos uma grande influência em Mértola. Já a entrada de linhagens da África Subsariana foi muito recente: os Descobrimentos foram o período mais provável. Também há dados históricos que comprovam que a vinda dos escravos se dirigiu principalmente para o Sul de Portugal, onde se estudou que 10% da população tinha escravos nas linhagens – e que não é uma migração recente pós-25 de Abril e pós-independência das ex-colónias.
- O que se verificou nas ex-colónias?
- É possível detectar a presença de linhagens europeias na componente masculina e ausência na feminina, porque eram os homens que migravam. As poucas mulheres que migravam iam casadas ou iam estabelecer relações com quem lá estava.
- O conhecimento das linhagens pode tornar-nos menos racistas?
- Nós, portugueses, sempre tivemos uma história de miscigenação embora muitas vezes não consigamos assumir. E os genes não ligam a questões racistas e contam-nos essa história. Não só de entrada e permanência mas também de quando os nossos navegadores migraram e deixaram genes na componente masculina nesses países que fomos colonizando. Partilhamos uma grande percentagem da diversidade, nós da espécie humana. Por isso não faz sentido nenhum, biologicamente, falarmos em raças.
"CADA VEZ SERÁ MAIS FÁCIL MIGRAR"
- O Homem geneticamente moderno é um homem como Obama?
- Se podemos prever alguma coisa é que cada vez a miscigenação vai ser maior. Cada vez será mais fácil migrar.
- Então Obama será a tendência do futuro...
- Podemos dizer que sim, porque cada vez haverá maior partilha de linhagens, de miscigenação. Há profissões em que não faz sentido pensar que vamos ter um emprego para toda a vida dentro de Portugal, por exemplo.
- O estudo da genética pode levantar problemas de aproveitamento político?
- Todas as ciências em geral podem levantar problemas éticos. Mas depende da sociedade onde estamos inseridos. Por exemplo, a questão das seguradoras usarem informação genética para saber se vamos ter uma doença no futuro não são tão prementes em Portugal como seriam nos EUA, somos diferentes.
DIVERSIDADE HOMOGÉNEA DAS 'NOSSAS' MULHERES
"A diversidade feminina é mais homogénea do que a masculina devido a características socio-demográficas. Verificou-se que nos casamentos de indivíduos de duas regiões diferentes era geralmente a mulher que migrava para a terra do marido, por norma alguém de uma aldeia vizinha, por isso notava-se uma grande mobilidade das mulheres entre zonas próximas. Os homens quando migravam era para zonas muito distantes, eram os aventureiros".
PERFIL
Luísa Pereira, bióloga e doutorada em genética populacional humana, nasceu em 1974. Durante a licenciatura percebeu que iria optar pela genética "mas para estudar as coisas boas". Investigadora do IPATIMUP (Porto) escreveu ‘O Património Genético Português’, com Filipa Ribeiro (Ed. Gradiva).
Tem sugestões ou notícias para partilhar com o CM?
Envie para geral@cmjornal.pt
o que achou desta notícia?
concordam consigo
A redação do CM irá fazer uma avaliação e remover o comentário caso não respeite as Regras desta Comunidade.
O seu comentário contem palavras ou expressões que não cumprem as regras definidas para este espaço. Por favor reescreva o seu comentário.
O CM relembra a proibição de comentários de cariz obsceno, ofensivo, difamatório gerador de responsabilidade civil ou de comentários com conteúdo comercial.
O Correio da Manhã incentiva todos os Leitores a interagirem através de comentários às notícias publicadas no seu site, de uma maneira respeitadora com o cumprimento dos princípios legais e constitucionais. Assim são totalmente ilegítimos comentários de cariz ofensivo e indevidos/inadequados. Promovemos o pluralismo, a ética, a independência, a liberdade, a democracia, a coragem, a inquietude e a proximidade.
Ao comentar, o Leitor está a declarar que é o único e exclusivo titular dos direitos associados a esse conteúdo, e como tal é o único e exclusivo responsável por esses mesmos conteúdos, e que autoriza expressamente o Correio da Manhã a difundir o referido conteúdo, para todos e em quaisquer suportes ou formatos actualmente existentes ou que venham a existir.
O propósito da Política de Comentários do Correio da Manhã é apoiar o leitor, oferecendo uma plataforma de debate, seguindo as seguintes regras:
Recomendações:
- Os comentários não são uma carta. Não devem ser utilizadas cortesias nem agradecimentos;
Sanções:
- Se algum leitor não respeitar as regras referidas anteriormente (pontos 1 a 11), está automaticamente sujeito às seguintes sanções:
- O Correio da Manhã tem o direito de bloquear ou remover a conta de qualquer utilizador, ou qualquer comentário, a seu exclusivo critério, sempre que este viole, de algum modo, as regras previstas na presente Política de Comentários do Correio da Manhã, a Lei, a Constituição da República Portuguesa, ou que destabilize a comunidade;
- A existência de uma assinatura não justifica nem serve de fundamento para a quebra de alguma regra prevista na presente Política de Comentários do Correio da Manhã, da Lei ou da Constituição da República Portuguesa, seguindo a sanção referida no ponto anterior;
- O Correio da Manhã reserva-se na disponibilidade de monitorizar ou pré-visualizar os comentários antes de serem publicados.
Se surgir alguma dúvida não hesite a contactar-nos internetgeral@medialivre.pt ou para 210 494 000
O Correio da Manhã oferece nos seus artigos um espaço de comentário, que considera essencial para reflexão, debate e livre veiculação de opiniões e ideias e apela aos Leitores que sigam as regras básicas de uma convivência sã e de respeito pelos outros, promovendo um ambiente de respeito e fair-play.
Só após a atenta leitura das regras abaixo e posterior aceitação expressa será possível efectuar comentários às notícias publicados no Correio da Manhã.
A possibilidade de efetuar comentários neste espaço está limitada a Leitores registados e Leitores assinantes do Correio da Manhã Premium (“Leitor”).
Ao comentar, o Leitor está a declarar que é o único e exclusivo titular dos direitos associados a esse conteúdo, e como tal é o único e exclusivo responsável por esses mesmos conteúdos, e que autoriza o Correio da Manhã a difundir o referido conteúdo, para todos e em quaisquer suportes disponíveis.
O Leitor permanecerá o proprietário dos conteúdos que submeta ao Correio da Manhã e ao enviar tais conteúdos concede ao Correio da Manhã uma licença, gratuita, irrevogável, transmissível, exclusiva e perpétua para a utilização dos referidos conteúdos, em qualquer suporte ou formato atualmente existente no mercado ou que venha a surgir.
O Leitor obriga-se a garantir que os conteúdos que submete nos espaços de comentários do Correio da Manhã não são obscenos, ofensivos ou geradores de responsabilidade civil ou criminal e não violam o direito de propriedade intelectual de terceiros. O Leitor compromete-se, nomeadamente, a não utilizar os espaços de comentários do Correio da Manhã para: (i) fins comerciais, nomeadamente, difundindo mensagens publicitárias nos comentários ou em outros espaços, fora daqueles especificamente destinados à publicidade contratada nos termos adequados; (ii) difundir conteúdos de ódio, racismo, xenofobia ou discriminação ou que, de um modo geral, incentivem a violência ou a prática de atos ilícitos; (iii) difundir conteúdos que, de forma direta ou indireta, explícita ou implícita, tenham como objetivo, finalidade, resultado, consequência ou intenção, humilhar, denegrir ou atingir o bom-nome e reputação de terceiros.
O Leitor reconhece expressamente que é exclusivamente responsável pelo pagamento de quaisquer coimas, custas, encargos, multas, penalizações, indemnizações ou outros montantes que advenham da publicação dos seus comentários nos espaços de comentários do Correio da Manhã.
O Leitor reconhece que o Correio da Manhã não está obrigado a monitorizar, editar ou pré-visualizar os conteúdos ou comentários que são partilhados pelos Leitores nos seus espaços de comentário. No entanto, a redação do Correio da Manhã, reserva-se o direito de fazer uma pré-avaliação e não publicar comentários que não respeitem as presentes Regras.
Todos os comentários ou conteúdos que venham a ser partilhados pelo Leitor nos espaços de comentários do Correio da Manhã constituem a opinião exclusiva e única do seu autor, que só a este vincula e não refletem a opinião ou posição do Correio da Manhã ou de terceiros. O facto de um conteúdo ter sido difundido por um Leitor nos espaços de comentários do Correio da Manhã não pressupõe, de forma direta ou indireta, explícita ou implícita, que o Correio da Manhã teve qualquer conhecimento prévio do mesmo e muito menos que concorde, valide ou suporte o seu conteúdo.
ComportamentoO Correio da Manhã pode, em caso de violação das presentes Regras, suspender por tempo determinado, indeterminado ou mesmo proibir permanentemente a possibilidade de comentar, independentemente de ser assinante do Correio da Manhã Premium ou da sua classificação.
O Correio da Manhã reserva-se ao direito de apagar de imediato e sem qualquer aviso ou notificação prévia os comentários dos Leitores que não cumpram estas regras.
O Correio da Manhã ocultará de forma automática todos os comentários uma semana após a publicação dos mesmos.
Para usar esta funcionalidade deverá efetuar login.
Caso não esteja registado no site do Correio da Manhã, efetue o seu registo gratuito.
Escrever um comentário no CM é um convite ao respeito mútuo e à civilidade. Nunca censuramos posições políticas, mas somos inflexiveis com quaisquer agressões. Conheça as
Inicie sessão ou registe-se para comentar.