Lutam por um mundo melhor, abominam a sociedade industrial, fumam marijuana por motivos espirituais e vivem ao som do 'reggae'. Viagem ao mundo do movimento rastafariano português.
A casa de Jahlú destaca-se entre o verde da Serra da Lousã. Pintada de um amarelo vivo, contrasta com as outras pequenas habitações da aldeia de Vale do Gueiro, local inóspito onde o tempo há muito parece ter parado.
Seguidores da filosofia rastafariana, ele e a esposa, Sister Benjy, vivem ali há 14 anos. Comem o que plantam, sem recorrerem a adubos ou fertilizantes, e têm a música por ocupação. Em 1998, motivados por esse interesse comum, decidiram pegar nos quatro filhos, hoje com idades entre os 8 e os 16 anos, e criaram a One Love Family. Tinha nascido uma banda de 'reggae' onde todos se parecem com Bob Marley.
Após muitos concertos e passagens por festivais importantes, como o Paredes de Coura e o Avante, o grupo conta hoje com oito elementos, dois dos quais ‘adoptados’ pela família. Sister Rita é um deles. Vive a poucos metros da casa de Jahlú. Abandonou Lisboa porque estava cansada da vida que levava, do sistema que a oprimia. A família achou estranho, considerou que a filha estava a voltar atrás no tempo, mas aos poucos aceitou a opção. Ela não sente qualquer arrependimento do que fez. “Não é um choque ir à cidade, mas tenho pena das pessoas que lá vivem. Sinto--me uma privilegiada por ter acontecido isto na minha vida. Gostava que se passasse o mesmo com todos os que vejo naquele turbilhão, sem tempo para os filhos. E penso: como é que aguentam tal ritmo?”
Rita tem 26 anos e contactou com o rastafarianismo já no campo, situação contrária à de Jahlú, que durante muito tempo viveu essa experiência na cidade. Aos 44 anos, relembra momentos curiosos do passado, motivados pelo aspecto diferente. Desde a adolescência que usa 'dreadlocks' (cabelo com rasta). “Por causa deles, quando era puto cheguei a ir quatro vezes à esquadra da Polícia num só dia, apenas porque os agentes olhavam para mim com desconfiança. Eu e os meus amigos dizíamos que íamos às visitas de estudo.”
FÉ EM JAH
Jahlú diz ter nascido 'rastaman', ou pelo menos ter sentido sempre essa vibração. Em criança era um rebelde, descontente com o que lhe apresentavam como verdade absoluta. Durante a adolescência, sem ter sido influenciado por nada nem ninguém, acabou por tropeçar no 'reggae' e na mensagem que acompanhava a música. Descobriu aquilo com que realmente se identificava. Tinha 15 anos e nunca mais deixou de ser um ‘dread’. “O 'reggae' é uma música do gueto. Passa uma mensagem boa, de alerta sobre o que está mal, como a poluição, a guerra e a fome. Não é inovador, mas é necessário que alguém continue a transmitir essas máximas. Foi isso que fez de mim um ‘rastaman’”.
Algum tempo depois, Jahlú conheceu o lado espiritual do movimento, a fé em Jah, o deus rastafariano, encarnado em Haile Selassie I, imperador da Etiópia que morreu a 27 de Agosto de 1975 (ver caixa). Desde então tornou-se um crente, seguidor de uma vertente religiosa pouco divulgada ou conhecida da maior parte dos cidadãos. A doutrina rastafariana tem como bases o respeito à vida, ao ser humano e aos animais. Depois seguem-se os dez mandamentos e a Bíblia. “É o livro mais importante para nós, embora não façamos a leitura da igreja católica. A luta do 'rastaman' é tentar explicar ao mundo qual a verdadeira mensagem da Bíblia, cheia de Amor e Paz.”
Roots Mandela Shabbaz partilha a mesma opinião. Nasceu em Luanda, a 20 de Fevereiro de 1969, e está em Lisboa há cinco anos. Entrou no movimento através de Jah Issac, percursor do rastafarianismo em Angola. Filho de Testemunhas de Jeová, conhecia as escrituras bíblicas e começou por debater a vertente religiosa. Aos poucos foi mudando de atitude, deixou de cortar o cabelo e adoptou uma alimentação vegetariana. A família torceu o nariz. “Cheguei a ser expulso de casa duas vezes. Os meus pais reagiram mal à situação, diziam que eu tinha um aspecto desleixado e não percebiam a razão da minha atitude.”
A falta de apoio não o desmotivou. Reforçado pelos princípios que descobriu, manteve a fé em Jah e nos seus ideais. Hoje, olha com preocupação para a sociedade ocidental, a que na gíria os rastafaris chamam de Babilónia. “Actualmente, todas as atitudes positivas, como dar lugar a uma senhora no autocarro, são uma utopia. Há quem diga: ‘olha, este gajo deve ser louco, ou está a mostrar que é bom demais.’ Mas não. Isto são apenas as normas que devem ser cumpridas.”
PROCURA-SE CASA
Para divulgar os ideais rastafarianos à população em geral seria necessário abrir uma ‘mansão’, que funcionaria como centro de informação e meditação. No entanto, o movimento vive com dificuldades. Roots Mandela acredita na existência de uma organização a nível cultural, embora falte um espaço de encontro. “Temos necessidade de uma casa aprovada por lei, uma associação com sede própria onde os 'rastaman', assim como a população em geral, possam encontrar-se e discutir os problemas sociais, ou simplesmente ler a Bíblia.”
Jahlú concorda e acrescenta que o movimento está disperso, pois existem muitos seguidores que vivem em regiões diferentes. “Há países em que o movimento está mais organizado, com locais de culto. Em Portugal existiu já uma casa, mas era apenas virtual, na Internet. Falta uma verdadeira. Fazê-la seria uma ideia óptima, até porque só assim podemos crescer.”
Paulo Matos não acredita que tal venha a ser uma realidade nos próximos tempos. Há quem lhe chame crítico e pessimista, mas aos 26 anos o apresentador do ‘Solar Reggae’, programa de 'reggae' da Rádio Solar, de Albufeira, diz ser difícil existir uma comunidade do género em Portugal. “Há uma falta de união em termos gerais, as pessoas estão dispersas e não há um centro onde se possam encontrar e discutir os problemas. Isso é algo que só acontece no estrangeiro. Por cá, ainda vai demorar a ser uma realidade.”
ERVA: “A CURA DA NAÇÃO”
A construção de uma casa rastafari serviria, também, para quebrar uma série de mitos. O maior prende-se com a forma como a marijuana é usada pelos 'dreads'. Sister Rita sente que existe uma ideia negativa da planta e da forma como os 'rastaman' a utilizam. “De uma maneira geral, as pessoas associam da pior forma o uso da ‘ganja’ ao rastafarianismo. Fumar é a atitude menos importante que temos para com a planta. Ela dá para tanta coisa, desde roupas a combustível, que vê-la só dessa forma acaba por ser redutor.”
Jahlú acena com a cabeça em sinal de concordância e revela ter pena do desconhecimento daqueles que apenas a associam à droga. “A planta é a cura da nação. Aliás, as pessoas nunca olham para a vertente espiritual da erva. Nós olhamos para ela como algo medicinal e espiritual. É utilizada como algo sagrado. Muitos 'dreads' nem a fumam, usando-a na comida, nos chás, na roupa. De resto, a erva fumada é mais habitual nos rituais rastafarianos.”
Existe alguma ligação entre o rastafarianismo e o movimento hippie do ‘flower power’, que teve sucesso na década de 60, que também usava a marijuana? Jahlú responde: “Essa atitude não é só nossa. Para mim o John Lennon também era um 'rastaman', porque tinha uma visão muito pura em relação ao que se estava a passar”, diz entre risos.
Ainda em relação à marijuana, Roots Mandela afirma que actualmente não fuma até porque falta-lhe tempo para tantas actividades. Homem dos sete ofícios, é dançarino e jardineiro de profissão, e trabalha numa firma de limpezas e manutenções. Tem ainda uma pequena empresa de ‘catering’ de comida vegetariana, a Prontoveg, que fundou com a mulher, Claudia Gigliotti, uma italiana que conheceu em Portugal. “Era impossível viver apenas da dança, arte, porque nessa área o mercado continua a funcionar apenas de tempos a tempos”. Para trás não ficará, certamente, a vertente rasta. Isso há-de morrer com ele.
Jahlú sente o mesmo. Como gosta de referir, o 'rastaman' está no coração, nas atitudes, naquilo que está dentro das pessoas. “Têm de existir pessoas que vão contra o poder absoluto. Nós somos apenas o grãozinho de areia que está no sapato e que incomoda. É uma luta sem fim.”
74 ANOS DE HISTÓRIA
O movimento rastafariano nasceu na década de 30, na Jamaica, e tem como raiz o pensamento de Marcus Garvey, activista negro que ganhou fama de profeta. Ao que reza a história, num domingo de 1926, Garvey, terá dito: “Olhem para Leste, para África, onde um negro será coroado Rei.” E assim aconteceu.
A 2 de Novembro de 1930, Ras Tafari Makonnen foi coroado Rei, alegando descendência do Rei Salomão de Jerusalém e da Rainha Makeda de Sheba. Adoptou o nome de Haile Selassie I ('o poder da divina trindade'), tendo sido designado 225º Imperador da dinastia Salomónica.
Na Jamaica, os escravos negros assistiam à realização da profecia bíblica e ao regresso de deus à Terra, como homem vivo. Assente na liberdade de pensamento, a fé rastafariana pode ser interpretada de várias formas, pelo que quase todos os seus seguidores têm as suas próprias ideias acerca dos factos. Encarado não como uma religião mas como uma forma de vida, o rastafa-rianismo tem ligações à fé judaica e cristã. Os rastas acreditam que 'Jah' (deus) encarna de tempos a tempos na forma humana.
DICIONÁRIO RASTAFARI
Jahman – respeito a um irmão
Nyabhingi – concentração com fins espirituais
Jah – Deus
Sis – o mesmo que sista. Abreviatura de 'sister' (irmã), forma como um rasta fala com uma mulher do movimento
Mano – o mesmo que ‘brother’ (irmão). Forma de chamamento entre dois rastafaris
I Tal – alimentação natural e vital. O vegetarianismo
Dread – aquele que usa 'dreadlocks', o mesmo que 'rastaman'
I and I – ‘eu e eu’, que para um rastafari é o mesmo que ‘nós somos um’
‘Marcus Garvey: Life and Lessons’ – Robert A. Hill e Barbara Bair (University of California Press), 1987
‘Understanding Jamaican Patois’ – L. Emilie Adams, Kingston
‘Reggae International’ - Stephen Davis, Peter Simon, R & B, 1982
DISCOGRAFIA ESSENCIAL
No 'reggae', a vertente 'roots' (raízes) é a que está mais ligada ao rastafarianismo. Tem um lado espiritual forte, estando ligada à liberdade do indivíduo e à crítica social. Com o auge em plena década de 70, é constituída por álbuns essenciais na história do movimento rasta.
Eis cinco exemplos a reter numa discografia que se preze:
‘Natty Dread’ – Bob Marley & The Wailers
‘War Ina Babylon’ – Max Romeo
‘Marcus Garvey’ – Burning Spear
‘Are We a Warrior’ – Ijahman
‘Blackheart Man’ – Bunny Wailer
‘Muzic City – The Story of Trojan’ celebra os 35 anos de uma das editoras mais importantes da Jamaica. Como o próprio nome indica, a caixa de quatro discos traça a história da Trojan, incluindo alguns dos grandes sucessos do 'reggae', assim como raridades. Não incluindo apenas a vertente 'roots', mais ligada ao rastafarianismo, serve como um óptimo ponto de partida para quem quer conhecer a música daquela ilha mágica. Além de gigantes como Bob Marley ou Lee Scrath Perry, estão aqui muitos nomes menos famosos como os The Upsetters.
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