Reinaldo Ferreira, o Repórter X, escreveu as últimas frases (nunca proferidas) de Sidónio Pais. Não faltam exemplos, em Portugal e no Mundo.
Actos forjados, protagonistas imaginários, declarações nunca proferidas, levaram a ‘Der Spiegel’ a despedir Claas Relotius, em dezembro, acusando-o de ter falsificado, pelo menos, 14 dos 60 textos que publicou na revista alemã. Repetiu-se uma fatalidade que já atingiu os mais prestigiados órgãos de comunicação social de todo o Mundo e de que há, também, exemplos em Portugal. Os professores de jornalismo António Granado (Universidade Nova de Lisboa) e Jorge Pedro Sousa (Universidade Fernando Pessoa, no Porto) recordam o relato da cancelada reunião do Conselho da Revolução (CR), escrito pelo diretor do ‘Tempo’, Nuno Rocha.
As sessões daquele órgão constituído por militares eram narradas com todos os detalhes no jornal que se publicava à quinta-feira – mas, quando o CR iniciava a ordem de trabalhos nas noites de quarta-feira, o semanário já estava a ser impresso. E tudo correu bem até que uma dessas reuniões foi desconvocada, em 15 de julho de 1981 – mas, na manhã seguinte, os leitores do liberal ‘Tempo’ até ficavam a saber quais eram as opiniões dos conselheiros sobre a "Lei de Delimitação dos Setores [Público e Privado]" numa sessão descrita como tempestuosa. Na edição seguinte – após ter sido criticado por outros jornais, com o comunista ‘Diário’ a sublinhar o "espantoso ‘furo’ jornalístico dos que definem os grandes da profissão" e o socialista ‘Portugal Hoje’ a titular aquele que era "Um Alves dos Reis do nosso Tempo" –, o semanário desculpava-se, alegando que apenas se referira "ao clima das reuniões do Conselho da Revolução".
Então a trabalhar no ‘Jornal de Notícias’, Joaquim Fidalgo lembra-se de se rirem muito na redação quando, "no dia a seguir ao assassinato do representante da OLP na reunião da Internacional Socialista, em Albufeira [a 10 de abril de 1983], três jornais trouxeram ‘a última entrevista de Issam Sartawi’. Nessa altura, ainda sem assessores, só o morto é que poderia desmentir o que estava escrito".
E Joaquim Letria conta que, nas décadas de 60 e de 70, "era frequente ler entrevistas de duas páginas, a personalidades estrangeiras, com perguntas e respostas, quando os jornalistas só tinham tido tempo para lhes colocarem duas ou três questões". E recorda-se de "um fotógrafo a dizer que um jornalista pediu um autógrafo, sendo retratado nesse momento, e escreveu uma longa entrevista, que aparecia logo na primeira página". Numa época sem internet nem leitores dos jornais portugueses no estrangeiro, ninguém se queixava.
No início da carreira, Joaquim Letria foi enviado pelo ‘Diário de Lisboa’ a Nisa e a Alpalhão para cobrir as manobras militares conjuntas do Pacto Ibérico. Para o mesmo serviço, o ‘Diário de Notícias’ destacara João Falcato, "um homem encantador e muito culto", mas que, mal chegara ao Alentejo, decidiu ir tratar das suas vinhas a Borba e pediu ao camarada mais novo que lhe desse "um caldinho" – na gíria da época, as informações essenciais transmitidas a alguém de outro jornal, que, por qualquer motivo, tinha falhado o acontecimento – e, todos os dias, Joaquim Letria telefonava a fazer o resumo da jornada.
Certa tarde, depois de ditar o seu texto para a gravação (os computadores eram, então, pura ficção científica), o chefe de redação pediu-lhe para "dar mais vivacidade às prosas, como fazia o ‘DN’". Ao regressar a Lisboa, foi ler o que o outro tinha escrito e ficou espantado: "Embora mantendo a veracidade dos factos, acrescentava aspetos de caráter humano que eram um grande sucesso, contando a história de um soldado que, para ali estar, deixara a mãe sem amparo em Trás-os-Montes ou de outro que iniciara, entretanto, um namoro com uma alentejana." Sem nunca ter revelado a verdade, Letria confrontou Falcato e ouviu a explicação: "Eh, pá! As pessoas gostam de ler esse género de coisas – e isso não faz mal a ninguém!"
Papa português
Nenhum media está imune a "maus jornalistas, que, quando não têm notícias, as inventam", como sustentou o Nobel da Literatura, Gabriel Garcia Márquez, que também foi redator do ‘El Universal’ e do ‘El Heraldo’. Há inúmeros episódios de casos fantasiosos em títulos quase intocáveis.
O ‘Washington Post’, que ganhou fama com o Escândalo Watergate, forçando o presidente Nixon a demitir-se, foi ludibriado, em 1980, por Janet Cooke, autora de ‘Jimmy’s World’, uma reportagem sobre um miúdo de oito anos que se tornara heroinómano – e este trabalho, que se viria a descobrir ser pura ficção, até ganhou um Prémio Pulitzer! Entre 1995 e 1998, Stephen Glass inventou, no mínimo, 36 artigos para a revista ‘The New Republic’, três para a ‘George’ e dois para a ‘Rolling Stone’ – e, mais tarde, lançou o romance ‘The Fabulist’ (‘O Mentiroso’), onde retrata um jornalista ambicioso, que cria factos e figuras.
Até as suas fraudes levantarem suspeitas, em 1999, Tom Kummer redigiu perfis de celebridades para diversas publicações suíças e alemãs, com Sharon Stone a confessar-lhe as suas fantasias sexuais e Mike Tyson a citar Nietzsche, enquanto os correspondentes em Hollywood eram criticados pelos editores por não irem pescar com Bruce Willis ou jogar golfe com Kevin Costner. Afinal, Kummer dedicava-se a um "aperfeiçoamento estilístico" quando transcrevia as gravações e acrescentava-lhes "diversão e inteligência". E Jayson Blair, corrido do ‘New York Times’, em 2003, chegava a efabular detalhes como o sonho da mãe de um soldado que vivia numa cidade onde ele nunca tinha ido ou o pormenor sobre o pastor anglicano que guardava uma foto do filho, que estava a combater, dentro da ‘Bíblia’.
A precipitação que origina informações erradas é uma realidade que tem mais de um século. Ao ler o ‘New York Times’ em que se lamentava o seu desaparecimento, em 1907, Mark Twain comentou: "Parece-me que as notícias sobre a minha morte são manifestamente exageradas". Também o ‘Le Monde’, após ter imprimido um obituário antecipado de Monica Vitti, em 1988, teve de admitir o erro e enviar à atriz "rosas vermelhas de vergonha" – e a diva do cinema italiano tem hoje 87 anos.
No livro ‘Parem as Máquinas’ (ed. Parsifal), Gonçalo Pereira Rosa descreve um dos maiores erros do jornalismo português. Em 1914, o anticlerical ‘O Mundo’ é vítima de um conluio entre membros do Governo, com um telegrama escrito em "italiano macarrónico" e uma manobra para que os repórteres do diário fundado por França Borges tivessem acesso àquele "segredo diplomático". No dia seguinte, o jornal noticia a eleição de um Papa português: "A esta hora, já [o cardeal] José Neto deve usar no dedo o anel do pescador." Mas ainda não havia fumo branco no Vaticano, com o conclave a optar pelo arcebispo de Bolonha, que viria a ser Bento XV.
Embalsamar Lenine
Noutro livro de Gonçalo Pereira Rosa, ‘O Inspector da Pide que Morreu Duas Vezes’ (ed. Planeta), a história que origina o título ocorreu em 1960, quando chegou ao ‘Diário de Notícias’ a indicação de que tinha falecido o coronel Rui Pessoa de Amorim, subdiretor da PIDE (a polícia política do salazarismo). Por não ter confirmado a identidade, o ‘DN’ foi para as bancas com a nota fúnebre sobre aquela figura – que, assim, ficou a saber o que pensavam dele e quais eram os seus amigos presentes no velório. No caixão estava o seu primo, que também era coronel, igualmente sexagenário e com o mesmo nome.
Outro embuste, descoberto nas suas pesquisas, foi uma primeira página do ‘Diário Popular’, de 1966, onde surgia a fotografia de uma jovem com feições orientais sob o título "Esta senhora pode ser a chave para o conflito no Vietname". As gargalhadas multiplicaram-se em Lisboa quando se percebeu que aquela "princesa" da Indochina era uma dançarina num conhecido clube noturno da capital.
Mais tarde, em 1970, Adelino Gomes queria ir cobrir precisamente a Guerra do Vietname, para o programa do Rádio Clube Português ‘PBX’, mas acabaram por o convencer a desistir desse projeto. Aproveitando a ideia, o realizador Paulo Cardoso, "um homem das Arábias", decidiu ir no seu lugar e, com várias peripécias na viagem, quando retornou fez um trabalho que "era pura descrição, só blá-blá-blá, sem se ouvir um som ambiente das ruas de Saigão, nenhum tiro ao longe". Mas, logo que viu o jovem repórter num longo corredor da rádio, chamou-o, "arregaçou as calças, mostrou uns arranhões e disse: ‘Sabes o que são estas marcas? São o resultado de ter caído de um helicóptero sobre umas silvas!" Como conclui Adelino Gomes, "tinha um certo desvio Repórter X".
Nada se compara, porém, à prodigiosa imaginação de Reinaldo Ferreira, mais conhecido por Repórter X, que redigiu inúmeras reportagens fictícias, desde um folhetim sobre "O Crime na Rua dos Fanqueiros" até um encontro em Lisboa com Mata Hari, em 1916, um ano antes da espia ser fuzilada. Enviado especial da revista ‘ABC’ a Moscovo, para relatar a sucessão de Lenine, sem nunca sair de Paris nos anos de 1926 e 1927, escreveria dali 27 peças como se estivesse na capital da Rússia, incluindo uma "entrevista" ao português que embalsamara o primeiro líder da União Soviética.
Mas a sua criação mais famosa foi a que improvisou ao chegar às instalações de ‘O Século’, na noite de 13 de dezembro de 1918, quando percebeu, pela agitação geral, que algo tinha acontecido naquela que ele julgava ser apenas mais uma viagem rotineira do Presidente Sidónio Pais – falhando, assim, o assassinato na Estação do Rossio. Quando o chefe de redação lhe perguntou se o popular ditador tinha dito alguma coisa antes de se finar, o Repórter X proferiu as cinco palavras inventadas que fizeram a manchete do jornal e ficaram para a história: "Morro bem… Salvem a Pátria!"
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