O vinho Kosher respeita todos os requisitos da religião judaica. Uma das regras sagradas é que a maquinaria da adega tem de ser nova ou muitíssimo bem lavada. Em Portugal é produzido em Meca, no Ribatejo, e tem até a bênção do rabino.
Passavam poucos minutos das sete e meia da manhã quando passámos a portagem e fomos em direcção a Alenquer. Chegados ao local que, curiosamente, pertence à freguesia de Meca (Ribatejo, no caso de alguma dúvida), esperámos meia hora para que o tractor ficasse operacional.
Quando pronto, um homem senta-se ao volante e começa a guiar com a mesma facilidade que barramos manteiga no pão.
Nós, o rabino, os dois agentes comerciais, seguimos o barulho. A pé. Poucas solas gastámos. Um campo apinhado de uvas despertou-nos a preguiça domingueira. O tractor ia-as engolindo como uma boca gulosa. Em menos de vinte minutos não cabia nem mais um cacho no camião. E dirigimo-nos para o lagar onde a mercadoria da natureza iria ser despejada.
O rabino obedece ao empregado e carrega num botão, depois noutro. As uvas caem com força, uma força meiga, para, lentamente, desaparecerem trituradas.
O sumo da uva é sugado para um tubo que vai dar ao cimo da adega. O rabino está de mangas semiarregaçadas. O espectáculo é acompanhado pelos olhares de um funcionário ucraniano e de um ribatejano que, simpaticamente, indicavam quais os mecanismos a serem accionados.
Quatro vezes, quatro camiões, quatro cargas apinhadas de uvas. Na verdade, quem faz o vinho, afinal, são as tramóias. Carrega aqui, ali, acolá. Ok. A páginas tantas perguntámos ao rabino a razão de não ter dado nenhuma bênção. E ele responde: "o vinho serve para muitas cerimónias e, como desconhecemos qual será, não dizemos nenhuma, mas temos a intenção."
O enólogo Tiago Carvalho pinta o quadro da produção: "Este ano foi seco. Sem a chuva, as uvas ficam com um teor alcoólico mais elevado. Normalmente o vinho fermenta a uma temperatura máxima de 30 graus, e este, antes de ser engarrafado, passa por um processo de pasteurização, elevado para 75 graus." O rabino denomina este processo de ‘Mevushal’: cozido, fermentado, "na lei judaica está escrito que temos de subir mais do que 45 graus."
Paulo Rocha, o presidente da firma, não hesitou em aceitar o desafio de fabricar um vinho que requer preceitos diferentes: "Produzo tantos vinhos, e por que não este?" Estreou uma máquina, facilitou todas as formalidades e está seguro do sucesso, "estou certo que haverá muita procura."
O vinho foi rotulado de Ben Rosh. Mas só por mero acaso é que a família do homenageado ficou a saber da existência do vinho. É o caso de Isabel Ferreira Lopes e de Mário Barros Bastos, netos de Ben Rosh. Apesar disso, esperam que seja o princípio do fim da injustiça de que foi vítima.
CONTA O RABINO da Comunidade Israelita de Lisboa, Boaz Pash, que, durante o II Templo (400 anos a.C.), "as mulheres mais justas de Jerusalém davam aos condenados à morte um cálice de vinho forte. A finalidade era aliviar a agonia do réu com o estonteamento do álcool. E, também, em tempos remotos, no regresso de um funeral, a Hebrá Kadisha – uma confraria que tem como principal propósito dar assistência espiritual aos doentes e moribundos, e de executar o dever religioso de enterrar os mortos – consolava os enlutados com uma taça de vinho.
No entanto, esta analogia com o decesso, depressa foi abolida do judaísmo: "A expressão Le Haim – para a vida – traduz a sólida afinidade entre a alegria e o ‘Yain’, vinho em hebraico, vocábulo que, feitas as contas numéricas, apresenta o valor 70, "o que na perspectiva cabalista pode revelar o segredo de uma pessoa."
Considerado pela Cabala (mística judaica) como o ‘sangue da natureza’ e referenciado na Bíblia de “sangue das uvas", o vinho é uma presença assídua em todas as cerimónias religiosas judaicas. Do Shabat à bênção de agradecimento da comida, das solenidades à oração que simboliza a entrada da semana, o vinho está sempre presente.
Mas é em Purim, festa das ‘sortes’, parecida com o Carnaval, pelas máscaras e pela suposta euforia, que o caso muda de figura. Num dos tratados do talmud (livro do estudo oral) está escrito, revela o rabi: "devemos beber vinho a ponto de ser impossível distinguir a diferença entre o Mordechai e Haman". E quem são eles?
O RABINO AFIANÇA QUE O PRIMEIRO "era bom, tio daquela que foi a rainha Ester". O outro, ministro do imperador Ahashverosh (séc. 5 a.C.) da antiga Pérsia, "era mau, mais do que as cobras. Quis exterminar todos os judeus que viviam no império." E para isso, fez um sorteio para saber em que dia esfregaria as mãos de contentamento. Calhou a 14 de Adar (mês hebraico equivalente a Fevereiro-Março).
Mas o feitiço virou-se contra o feiticeiro, e Haman, o mau da fita, acabou com o pescoço na forca, exactamente nessa data. A provável bebedeira que advém desta diferenciação é explicada: "dessa forma não sabemos quem era o bom e quem era o mau. É para esquecer a maldade." Esta festa realiza-se uma vez por ano. Claro. Não haveria fígados.
"Cada celebridade abarca um simbolismo na eleição do tipo de vinho", diz o rabino. Por exemplo, aos Sábados a escolha recai no tinto, "porque a cor vermelha representa a força." Igualmente na Páscoa (Pessach): durante a leitura da Hagadah (relato da saída dos judeus do Egipto) os quatro copos obrigatórios personificam "os quatro níveis de redenção, enquanto esperamos pelo quinto, que só chegará com a vinda do Messias", deverão ser do mesmo carácter: "é para lembrar o sangue dos nossos antepassados, quando éramos escravos." Os quatro copos não são bebidos de qualquer maneira. A expressão "bota abaixo" poderia estar correcta, não fosse o costume dos judeus recostarem o corpo para o lado esquerdo enquanto o bebem. É o lado pelo qual as pessoas livres ingeriam.
Nos casamentos a tradição aponta para o vinho branco, e não é por ser mais ou menos indigesto... mas "para que a ligação do casal seja tranquila. O branco simboliza a placidez." Nas festividades a selecção incide somente na qualidade.
ENFATIZANDO QUE O VINHO na religião judaica frui uma estreita ligação com a mística, o rabino assegura que "a certa altura da santificação (Kidush) é possível ver a nossa imagem." Essa ocasião centraliza-se quando a pessoa que conduz a oração inclina o rosto ligeiramente em direcção do copo, e é como se o vinho se transformasse num espelho. "Na verdade, esse vulto reflectido é a nossa forma espiritual."
Boaz defende que “a importância do vinho não se reduz a um potencial que põe os seres humanos mais alegres...". Portanto, o vinho não serve só para trocar os passos. Com ele é possível dizer orações e bênçãos. Para isso, ou apenas para provar o milagre da uva, existem normas e regras. A exigência primordial para um vinho estar de acordo com a Halácha, lei judaica, assenta numa única alínea: "deverá ser feito por judeus." A explicação baseia-se em que "antigamente, e ainda hoje, faz-se vinho nezer – aquele que é exclusivamente concebido para rituais religiosos da Igreja. E esse é proibido, porque é dedicado a um sacrifício." O vinho que está imune do carácter religioso, chamado ‘stam inam’, o rabino adianta que, igualmente, esse precisa de judeus "desde a apanha da uva até ser engarrafado", pelo facto de subsistir a probabilidade de serem adidos emulsionantes proibidos pelo código judaico.
Outra condição: "a maquinaria da adega deve ser nova, ou muito bem lavada." Quando o vinho passa por estes requisitos, o rabi afiança que é ‘Kosher’ – enquadra-se nos parâmetros dos preceitos judaicos.
PRODUTOS KOSHER EM PORTUGAL
Basta ir ao supermercado do El Corte Inglés que, desde há dois anos, estreou em Portugal uma secção Kosher, para ver o sortido de produtos, que passaram por uma fiscalização rabínica; carne, saladas, frangos, folhados, salsichas, bolachas, fazem parte das 700 referências que, diariamente, são repostas.
"Os nossos produtos são os necessários para uma refeição, por isso, diversificam" – afirma a responsável do departamento de Relações Externas. E adianta a razão que os levou a ter nas prateleiras alimentos Kosher: "havia uma necessidade que não estava coberta: muitos elementos da Comunidade Israelita de Lisboa iam comprá-los a Madrid." Claro que a Avenida António Augusto de Aguiar fica mais à mão do que Espanha.
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