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Sócrates: O primeiro ex-PM indiciado por corrupção

É a primeira vez que um ex-primeiro-ministro é detido sem que haja mudança de regime.

30 de dezembro de 2014 às 00:30

Ao contrário do que muita gente ficou a pensar, José Sócrates não foi o primeiro antigo primeiro-ministro a ser preso. Para não ir muito longe, basta mencionar Marcello Caetano, detido alguns dias em 1974, antes de ser enviado para o exílio forçado. Mas já Afonso Costa tinha sido preso por Sidónio Pais em 1917, e Francisco da Cunha Leal pela Ditadura Militar em 1930. Já se fez também a comparação com o marquês de Pombal, por ter sido acusado de corrupção. Mas nem o marquês foi exactamente acusado de corrupção nem chegou a ser preso.

A verdade é que as coisas eram muito diferentes na altura. Aquilo que podemos dizer é que se trata da primeira vez que um ex-primeiro-ministro é preso sem que disso resulte uma mudança de regime, e também que se trata da primeira vez que tal acontece na nossa democracia. Assim como se trata da primeira vez que um ex-primeiro-ministro é indiciado de corrupção. Tudo suficientemente importante e inédito para merecer destaque.

SEMIPÁRIA

José Sócrates nem sempre foi esta espécie de semipária em que a prisão o transformou. Ele foi um dos dois únicos líderes partidários a conseguirem uma maioria absoluta na nossa democracia e o único a fazê-lo para o PS. E bem pode ele hoje ser o objecto de execração da direita que a verdade é que nunca teria ganho as eleições de 2005 sem os votos de boa parte dela. Direita essa que, aliás, manteve com Sócrates uma relação de encantamento até bastante tarde.

Talvez fosse pelas proclamações reformistas com que se apresentou ao início, ou então pelas vastas oportunidades de negócio que proporcionou, sobretudo em obras públicas. José Sócrates ficou, de resto, famoso pelas boas relações que manteve com uma parte importante do mundo dos negócios: Ricardo Salgado e o Grupo Espírito Santo, Joe Berardo, a Ongoing, Joaquim Oliveira e a Controlinveste, o BCP.

Provavelmente, a relação mais emblemática foi a que manteve com Ricardo Salgado. Daí que o significado da queda simultânea dos dois homens vá para além da mera coincidência temporal. Eles coligaram-se cedo, pouco depois de Sócrates chegar a primeiro-ministro, por alturas da OPA da SONAE sobre a Portugal Telecom em 2006. Sócrates permitiu que a PT continuasse dentro do Grupo Espírito Santo, e a partir daí criou-se um entendimento que durou até ao dia em que Sócrates se demitiu em 2011.

Jorge Jardim Gonçalves diz que também mais ou menos por volta de 2006, Salgado (junto com outros banqueiros) se pôs (puseram) a pagar a testas-de-ferro para alterar a estrutura accionista do BCP, levando o banco a ser progressivamente tomado pelo PS. Mais tarde, em 2010, a PT, controlada por Salgado, estaria no centro de diversos "casos", incluindo a suposta tentativa de aquisição da TVI a fim de criar um "grupo de media" favorável a José Sócrates.

ESCÂNDALOS

Em 2009, o actualmente proscrito Sócrates ainda era suficientemente popular para ser reeleito. Sem maioria absoluta, mas com um resultado respeitável de 36% de votos, apesar de já então circularem muitas suspeitas a envolverem-no em presumíveis escândalos. O famoso caso da licenciatura vem de 2007 e quase toda a gente terá votado em 2009 convencida de que Sócrates era uma espécie de engenheiro da farinha Amparo.

O não menos famoso caso do licenciamento do centro comercial Freeport, em Alcochete, vem de 2009, pouco antes das eleições. A verdade é que Sócrates nunca conseguiu afastar as suspeitas. Depois, apareceram ou foram sendo recuperados outros pequenos casos (‘Cova da Beira’, ‘Figo’, ‘Taguspark’ ou o dos projectos de engenharia em casas de emigrantes). Apenas ao fim desta enorme acumulação de suspeitas a sua popularidade começou a quebrar.

Foi só então que Sócrates se reinventou como político radical. Abandonou a pele do centrista reformador e apelou ao instinto tribal da esquerda: passou a defender a expansão da despesa pública para combater a crise e roubou a agenda do "casamento gay" ao Bloco de Esquerda. Só nessa altura tardia a direita o abandonou, e só nessa altura começou ela a elaborar a "narrativa" do primeiro-ministro que arruinou o país.

Perante o aumento da despesa do Estado em 2009, os mercados de capitais passaram a desconfiar da capacidade de Portugal para honrar os seus compromissos de dívida pública. Sócrates ainda tentou acalmá-los sem pedir ajuda externa. Pedro Passo Coelho ainda o ajudou, deixando passar uma sucessão de Programas de Estabilidade e Crescimento (PEC), e Ricardo Salgado (e o BCP e a Caixa Geral de Depósitos) ainda cumpriu(ram) o seu papel de aliados comprando grandes quantidades de dívida.

Até que Passos Coelho percebeu que não podia continuar a viabilizar PEC atrás de PEC sem pôr em causa a sua credibilidade política, e Ricardo Salgado e a restante banca perceberam que não podiam continuar a arruinar-se para segurarem Sócrates. Sócrates teve então de se demitir e chamar a troika. E já não conseguiu ganhar as eleições de 2011.

REGIME ABALADO

Saiu convencido de que tinha razão. Achava que o PEC IV teria evitado a troika. Por isso, desde 2011 que andou por aí, entre Lisboa e Paris, a tentar um  regresso com estrondo. Mas o rasto de escândalo não o largou. Agora, foi-lhe reservado o papel simbólico de único primeiro-ministro da democracia suspeito de corrupção. O seu é o último de um longo cortejo de casos envolvendo a classe política e financeira: ‘BPN’, ‘Duarte Lima’, ‘Face Oculta’, ‘BES’ e ‘Vistos Gold’. Estes casos criaram uma legítima sensação de fim de regime. Talvez o regime não acabe já, mas uma coisa é certa: não voltará a ser o mesmo.

*texto escrito com a antiga grafia

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