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SPENCER TUNICK: TUDO AO MOLHO, TUDO NU

O Domingo Magazine foi até Santa Maria da Feira posar para o artista. Ao lado de 300 pessoas sem qualquer peça de roupa e, ninguém se constipou.

21 de setembro de 2003 às 15:06

Passam poucos minutos das sete da manhã de sábado, 13 de Setembro. Acabei de despir as últimas peças de roupa e amontoei-as no chão. Estou completamente nu, algures em Santa Maria da Feira. Tento não olhar de frente para os corpos igualmente despidos, de homens e mulheres de diferentes idades e classes sociais, que passeiam à minha volta pela calçada fria. Não somos aspirantes a ‘stripper’ ou meros exibicionistas. Estamos ali todos em nome da arte de Spencer Tunick.

Todos, excepto eu. Se bem que aprecie as instalações de corpos que o artista americano tem celebrado pelos quatro cantos do mundo, encontro-me ali em trabalho. Sem gravador, papel ou caneta, tento passar despercebido entre os 300 participantes, loucos de alegria. “Pratico nudismo na praia mas nunca assisti a um espectáculo destes. Valeu a pena acordar às cinco da manhã”, confidencia-me Zé, um cenógrafo de cabelo laminado, que veio de Lisboa para se eternizar nas objectivas de Tunick.

Havíamo-nos conhecido há duas horas atrás, quando a noite ainda era cerrada e a vila nortenha dormia. Os primeiros carros circulavam, algo desorientados, pelas calçadas empedradas. Um polícia paciente explicava que o centro histórico de Santa Maria da Feira estava vedado ao trânsito e nem os peões podiam por ali passar. “São ordens da organização. Têm de dar uma volta maior para irem até à igreja da Misericórdia.” Chegámos ao local do evento às 6h00, onde já se encontravam alguns grupos de pessoas que se entreolham entre o divertido e o ensonado. A maioria eram rapazes entre os 18 e 30 anos, mas à medida que os minutos passavam, chegavam homens e mulheres mais velhos, raparigas de penteados ‘freak’ e até pais com crianças ao colo. Todos se haviam inscrito para o evento via 'e-mail', mas ao contrário do que os organizadores do Festival Imaginarius haviam prometido, ninguém mandou um SMS a anunciar a hora e local do encontro semi-clandestino. Valeu o passa-palavra…

Às 6h30 o ambiente já é de festa antecipada. “Vamos já ensaiar um pouco?”, pergunta um homem de bigode farfalhudo e boné na cabeça, que simula ir tirar a t-shirt. Os primeiros risos são de descompressão. A madrugada até não estava fria, mas uma brisa cortante arrepiava a pele. Ou seria apenas nervoso miudinho? Spencer Tunick, ‘himself’, passeia-se entre o seu público e vai agradecendo a participação dos corajosos. A organização abre três escadotes, para onde sobe o norte-americano e dois assistentes.

Depois de assinarmos uma ficha de inscrição, que nos responsabilizava por qualquer acidente durante a instalação e autorizava a ceder a nossa imagem (fotos e filme) para futuras exposições do artista, Spencer, de megafone na mão faz as primeiras declarações do dia. “Se estiverem alguma dúvida, ainda estão a tempo de desistir. Mas ficarão arrependidos. Vai ser divertido.” As primeiras palmas soam no ar. Entretanto, explica, que de vez em quando irá gritar com os participantes. Afinal, lidar com as multidões não é pêra doce.

O tempo passa, devagar. “Temos de esperar que o sol nasça, porque não tiro fotos com flashes nem tripé”. Um assistente do artista nova-iorquino exemplifica o que devemos fazer na primeira das três instalações. Parecia simples: bastava deitarmo-nos no chão, de barriga para baixo, com os braços imóveis e a cabeça virada na direcção do nascimento do sol. “Vai ser uma experiência única”, profetiza o cenógrafo alfacinha conhecedor do trabalho do Tunick, mesmo ao meu lado.

ONDE PÔR AS MÃOS?

“Vamos então fazer um pouco de arte?”, sugere o norte-americano com um sorriso. Eram 7h20. Aquele é o momento mais ansiado. Finalmente, despimos as roupas, compenetrados no nosso papel de 'esculturas humanas'. A bola que crescia no estômago há vários minutos é ainda maior. Entre a multidão ouvem-se frases nervosas. As pessoas depositam a sua roupa em montinhos anárquicos no chão. “Ai, se a minha mãe me visse agora!”. “Será que a polícia nos vai prender com as calças na mão?”. “E agora onde é que ponho o telemóvel?”, questionava um casal de namorados, que não dera ouvidos aos avisos da organização, que pedira para ninguém trazer objectos de valor. Por mim, se me roubassem o cartão multibanco e os sete euros que tinha no bolso das calças, não tinha hipótese de apanhar um taxi de regresso para o hotel em São João da Madeira. Mas não era o momento para este tipo de angústias…

No cimo da escadaria da Igreja da Misericórdia, um batalhão de jornalistas registava o momento histórico. Vestidos, claro. Tentei andar no meio da multidão. Sempre passava mais despercebido e com sorte não iria aparecer nas fotografias e imagens de televisão. A primeira sensação de se estar sem roupa é de leveza e de alguma insegurança. “As câmaras estão a fazer um grande plano dos órgãos genitais?”, a interrogação deve passar pela cabeça de muitos dos participantes.

OS NUS E OS MIRONES

Depressa descobri que o mais complicado em estar despido era o de não saber onde pôr as mãos. Como não tinha bolsos, optei por andar com os braços cruzados. Mas verifiquei que era uma posição ridícula. Deixei então descaí-los e tentei andar com a descontracção que parecia não faltar à minha volta. “Nunca vi tantos homens nus”, exulta uma mulher roliça, na casa dos 40 anos, para as suas amigas. “Nem eles”, ri-se uma das companheiras, que faz observações brincalhonas sobre os seus seios. “Nunca tinha visto um espectáculo destes!”, regozija-se Zé, que revela ter o corpo repleto de tatuagens.

Há corpos bonitos, alguns claramente esculpidos em ginásios, e não apenas barrigas de cerveja ou pernas cheias de celulite. E ao contrário do que as mentes mais perversas possam imaginar, não vi um pénis erecto, olhares indiscretos ou insinuações sexuais, entre os participantes. No entanto, as persianas das janelas das redondezas vão-se abrindo, madrugadoras. Os espectadores acenam para os ‘voyeurs’ de ocasião, a maioria escondidos entre os cortinados floridos. E há quem assente arraiais na varanda.

Caminhamos para a rua estreita, defronte da igreja. O sagrado e o profano lado-a-lado, devem pensar muitos. Vamo-nos deitando no chão frio com gravilha. A sensação é desagradável e algo dolorosa. A temperatura do corpo volta a descer e fico com medo de apanhar uma constipação.

Entretanto, Spencer Tunick inspecciona os seus pupilos e vai endireitando com as mãos os corpos desalinhados. “Ponha-se mais à esquerda, por favor.” O meu vizinho do lado sorri para mim. Vejo o seu rosto entre os pés cobertos de terra de um estrangeiro. “Parece um daqueles sonhos desconfortáveis, em que nos vemos a andar sem roupa em público”, disserta. “Mas aqui ninguém nos olha com reprovação.”

Mesmo por cima da minha cabeça, num dos prédios de dois andares que ladeiam a rua, um homem aproveita para tirar fotos, para ira de muitos nus de Tunick. “Não estou a fazer nada de errado. Estou na minha casa. Vocês é que estão deitados na rua onde moro”, justifica impassível, com a máquina em punho. Em baixo, a sua loja de revelação de fotografias de casamentos, baptizados e festas de passagem de ano, irá ter mais clientela nos próximos dias. “Não lhe liguem”, diz-nos Spencer, que pede silêncio.

“Já não fazia esta instalação desde 1995”, comenta. Os seus assistentes também circulam entre nós, com câmaras de filmar e máquinas fotográficas digitais. Só o choro de um bebé, queixando-se aos pais por estar de cara esmagada contra o chão, sem se poder mexer, interrompe o súbito silêncio.

Segundos mais tarde, ouve-se um nítido ‘clic’ da sua máquina fotográfica. “OK. Muito bem! Parabéns e obrigado!” A primeira ronda terminava ao som de palmas e assobios eufóricos. Olhei para o aspirante a ‘paparazzi’ no preciso momento em que se recolhia para dentro de casa. Voltamos até às nossas roupas mal dobradas no chão e vestimo-nos outra vez. Era necessário andarmos até ao Largo Dr. Gaspar Moreira, um pouco mais abaixo. “Não queremos que andem por aí sem roupas pela cidade”, ironizam os organizadores.

QUERO FAZER XIXI!

Três minutos depois, estávamos sentados num anfiteatro semi-circular, ainda com as roupas vestidas, à espera de novas instruções. A imprensa também mudou de lugar e há quem considere que os fotógrafos estão demasiado próximos. “Eles encontram-se quase em cima de nós!”, gritam em inglês para Tunick. O artista defende-se com um argumento imbatível: “Se não lhes déssemos um espaço próprios, os tipos iriam fazer coisas imagináveis, como pendurarem-se no telhado ou alugar um quarto das redondezas só para apanhar um bom ângulo.” O público ri-se, mais descontraído. Mas uma voz insurge-se com um retumbante e intraduzível, “fuck the press!”. O recado estava dado.

Desta vez, bastava-nos estar sentados, de costas bem direitas, na mesma direcção, virados para o sol matutino. Depois de largadas as instruções, voltamos a atirar com o vestuário para um relvado próximo. O à-vontade era agora, bem maior. “Sou de São João da Madeira e já morei aqui em Santa Maria da Feira. E tenho pena de não ver nenhuma cara conhecida. É quase tudo do Porto e de Lisboa”,

conta um dos participantes mais extrovertidos, o tal do bigode farfalhudo, que revela um corpo escaldado pelo sol. Voltamo-nos a sentar. A pose parece a apresentação de uma equipa de futebol no início da época. “Por favor, tentem não falar agora”. Tarefa impossível. Nesse preciso momento passam duas velhotas na zona vedada com um avental e o cesto das compras na cabeça e seguem o seu percurso matinal sem olhar demasiadamente para 300 pessoas sem roupa. “Venham tirar uma foto connosco”, grita alguém. A multidão rebenta a rir com a situação ‘sui generis’. Spencer, que estava a tentar captar a atenção, não entende o que se passa e pergunta aos assistentes. Então, olha para as senhoras e esboça um sorriso amarelo. “Não se riam. Preciso que estejam sérios. Não se esqueçam que estamos aqui pela arte”, diz em um tom admoestador. Os minutos estão a passar e o artista precisa que o sol não esteja demasiado alto para poder tirar as fotografias. A ordem volta a reinar entre os portugueses e a sua máquina volta a entrar em acção. Nova salva de palmas, para uma instalação que Tunick nunca “havia realizado até hoje”.

No intervalo para a terceira sessão, Spencer pede para aproveitarmos para descontrairmos e conhecer os vizinhos do lado. “Vou apenas mudar rolo. Algo que faço muito rapidamente porque nos EUA estou habituado a que me prendam durante estas instalações”, ironiza. Aproveito para meter conversa com as minhas ‘compagnons de route’ (companheiros de viagem). Por coincidência, as duas raparigas chamam-se Ana. São estudantes e vieram de Coimbra para assistir ao ‘Imaginarius’, que começara a 6 de Setembro, com diversas actividades de teatro de rua. Mas esperavam por esta ‘performance’ com ainda mais ansiedade. “Infelizmente, há muito mais rapazes do que raparigas a participar. Talvez porque as mulheres tenham mais complexos com o seu corpo. E por isso, talvez sejam mais envergonhadas com este tipo de circunstâncias”, defendem as belas jovens. Uma delas sussurra à amiga: “Quero fazer xixi!”. A frase é ouvida por todos, o que causa mais risos. Ao meu lado direito, Francisco, também um estudante de Coimbra, desabafa: “Gostava que os críticos do trabalho do Tunick viessem cá agora para perceberem que isto não é, afinal, uma pouca-vergonha!”

A FALSA ORGIA ROMANA

Se alguém visse a instalação seguinte talvez ficasse com dúvidas das palavras do universitário. O cenário é agora uma fonte antiga, situada no coração da Praça da República. “Alguém que me dê o megafone, que já estou a ficar sem voz!”, pede Tunick já meio rouco. Já com o aparelho, explica-nos as suas intenções. “Basta que se deixem cair no chão, como se desmaiassem de repente, em redor da fonte.”. E acrescenta: “Finjam que estão a vir de uma festa romana, ou qualquer coisa do género. Mas não olhem para mim. Quando ouvirem a minha voz ajam naturalmente. Mas por favor, nada de iogas ou posições malucas. Vocês não são actores de um filme porno.”

Os mais corajosos chapinham dentro da água fria da fonte. “Andem às voltas”, ordena. “Agora, deixem-se cair, com naturalidade”. No ensaio, nem consigo sentir o chão. Dois corpos servem-me de colchão. Há uma alegre amálgama de braços, pernas e cabeças. “Parece uma orgia sem sexo”, diz uma voz à minha esquerda. A risota não pára. E está mais que visto que o primeiro ‘take’ não correu muito bem.

Spencer, já um pouco exasperado, pede para abrirmos os braços e nos afastarmos mais uns dos outros. Na segunda tentativa, caímos novamente. Fico estendido por entre três duros degraus e o tornozelo fica por baixo das costas de um divertido estrangeiro, que tinha a cabeça em cima das nádegas de uma tripeira. A posição não é muito cómoda, mas ninguém se queixa. “É pela arte”, suspira uma voz feminina atrás de mim. Mais uma vez, sinto o soalho frio durante uma eternidade. E fico aliviado ao ouvir um sonoro “get up!” (levantem-se!). Ainda assim não deixo de sentir uma certa emoção durante a ovação final. Há uma nova correria até às roupas amarrotadas. Ninguém tinha mexido nelas. A próxima sessão era à porta fechada, na biblioteca e destinada exclusivamente a mulheres. “Uma experiência nova no meu portfólio”, explica o escultor de corpos. “Pois, pois. Agora queres é ficar com elas todas”, diz baixinho um rapaz de crista e brinco no nariz enquanto veste as calças.

Eram 8h40. A missão estava terminada. Daqui a três meses vou receber por 'e-mail' uma fotografia assinada pelo próprio homem que fez despir 4500 pessoas em Melbourne e mais de três mil em Montreal. Enquanto caminhava para o taxi, ouvia os comentários dos feirenses. “Não achei mal, não senhor”, afirmava uma senhora idosa. “Ele que vá lá para a terra dele. Onde é que isto é arte?”, ripostava a vizinha. Saí dali com um sorriso nos lábios.

“NUNCA VI UM PÉNIS ERECTO”

As fotografias de Spencer Tunick, o artista nascido em nova-iorque há 35 anos, já correram o mundo. “Os media não falariam tanto de mim, se não trabalhalhasse com corpos nus em público. Mas ainda bem que isso acontece”, defende o norte-americano, que não se considera fotógrafo. “Sou um escultor. E o corpo humano é a minha escultura”, disserta. Foi em 1992, que lhe nasceu a ideia de fotografar nus. “Sou natural de um país com pessoas fechadas e com preconceitos em mostrar o seu corpo, ao contrário do que se sucede na Europa.” Este paradoxo esteve sempre presente na cabeça durante a sua juventude, quando era aluno de uma escola militar, onde jogava basquetebol e tocava clarinete. “A minha primeira experiência com as massas deu-se quando era líder da banda estudantil composta por 15 alunos.” Spencer não seguiu, no entanto, a carreira militar, como gostaria o seu avô. “Preferi áreas diferentes como o cinema, a arte e fotografia.” E foi então que se interessou pelos corpos despidos. “Apreciava os modelos nus, como se fossem frescos renascentistas. Gostava de escultura, performances e instalações. A fotografia era apenas um documento das instalações.”

Desde que começou a tirar as primeiras fotografias teve problemas com os polícias de Nova Iorque. Tunick já foi preso por cinco vezes, acusado de atentado ao pudor. Chegou a estar à beira do esgotamento pela pressão das autoridades. “Nos EUA, os corpos nus num espaço público estão ao mesmo nível de um crime brutal.” Cansado de ser perseguido, Spencer Tunick decidiu processar o Estado de Nova Iorque. O caso foi ao Supremo Tribunal. “E ganhei. Os juizes acreditaram que o meu trabalho era arte.” Mas, depois de vencer o seu caso, quis fazer a sua primeira instalação legal em Nova Iorque mas o ‘mayor’ (presidente de Câmara) não permitiu. “Disseram-me: processa-nos que não nos importamos.” O artista acredita que “99% dos participantes” nas suas instalações fazem-no pela arte. “São pessoas normais, que provavelmente nunca posaram sem roupa e nunca fizeram nudismo na praia. Elas apenas acreditam no meu trabalho e querem ser uma peça de arte.” Tunick afiança que em onze anos nunca viu “nenhum pénis erecto ou propostas indecorosas”. Os voluntários têm perfis opostos. “Podem ser electricistas, secretárias ou médicos de todas as idades. No fundo, o meu trabalho tem algo de sociológico”.

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