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Trabalho alimentar

São operadores em centros de atendimento telefónico, fazem promoções nos supermercados e na rua – são trabalhadores temporários. Os ‘eternos temporários’ ascendem já a 450 mil.

02 de abril de 2006 às 00:00

Tarde primaveril no Chiado a fervilhar de gente. No passeio, à esquerda de quem sobe, duas raparigas, de calções e luvas de boxe, simulam um combate sobre um tapete verde. Ali, no ringue improvisado à porta da Zara, tentam vender uma assinatura de um canal de televisão por cabo que vai passar o filme ‘Million Dolar Baby’. Para as sósias – ou nem por isso – de Hillary Swank, aquela é uma oportunidade de ganharem algum dinheiro. Foram contratadas por uma empresa de trabalho temporário para satisfazerem necessidades pontuais de mão-de-obra. Um regime que serve aos estudantes que precisam de dinheiro para sustentar as viagens e as saídas nocturnas, mas faz temer quem tem de pagar a prestação da casa, a conta da electricidade e alimentar os filhos.

No ano passado, mais de 450 mil portugueses – 8,8 por cento da população activa e 8,2 por cento da população empregada – foram colocados em empresas para responderem a necessidades pontuais, imprevistas ou de curta duração. Milton Pereira, 19 anos, é um entre esse quase meio milhão. No primeiro ano do curso de Engenharia Mecânica, desempenha, em paralelo, as funções de operador num centro de atendimento telefónico. “Já tinha trabalhado durante um ano num ‘call center’ de um banco; deixei na altura dos exames de acesso ao ensino superior e agora voltei à actividade, porque quero ter uma certa independência.” Milton não é rapaz de andar a pedir dinheiro aos pais para sair à noite ou ir ao cinema.

Maria Campos, 21 anos, é um rosto bonito dentro de um fato com a forma de gota azul. Bailarina de formação, não hesita, quando os espectáculos rareiam, em agarrar o que aparece. “Partilho uma casa com três pessoas e tenho de entrar nas despesas.” Mesmo que tenha de andar aos saltinhos, Rua do Carmo acima, a promover um detergente de que não sabe o nome. “Não me caem os parentes na lama”, brinca a gotinha.

Ser gotinha de água e afins é, para Maria Campos, um “emprego alimentar”, quer dizer, uma forma de garantir a si própria pelo menos duas refeições por dia. Dedicação, investimento pessoal, esforço guarda-os inteiros para a dança.

Esclarecer dúvidas aos clientes também não é o sonho da vida de Milton. “Dá-me jeito.” Mas, acredita, a vida profissional a sério só vai começar quando for engenheiro mecânico, daqui a cinco anos. “É um curso com bastante saída.” O trabalho temporário serve-lhe agora, mas “nunca saber o dia de amanhã” não é perspectiva de futuro que considere.

No dicionário pessoal do dirigente da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses – CGTP Joaquim Dionísio, trabalho temporário significa precariedade. “Há uns anos a própria Organização Internacional do Trabalho excluía as agências de aluguer de mão-de-obra.” Chama-lhes assim porque são empresas de trabalho temporário que recrutam os funcionários e os ‘vendem’ a outras.

Joaquim Dionísio não está especialmente preocupado com os universitários a trabalhar em ‘call centers’ para financiar viagens de finalistas. O que o inquieta é a situação de quem passa anos a “saltitar de empresa do grupo em empresa do grupo” com contratos mensais renovados automaticamente. “Simulam-se regimes precários para isentar o empregador, quando, de facto, se trata de um regime permanente”, acusa.

O dicionário de Marcelino Pena Costa é, evidentemente, outro. Para o presidente da Associação Portuguesa das Empresas do Sector Privado, trabalho temporário quer dizer “alternativa à precariedade.” Sob este regime, alega, é possível integrar os desempregados e os jovens à procura do primeiro emprego. “A precariedade é condenada como um mal absoluto e a segurança no emprego é ainda (mal) considerada um direito inalienável”, critica o dirigente da associação que congrega as empresas de trabalho temporário, cerca de 250 em Portugal.

Trabalho temporário foi o que apareceu a Pedro, 37 anos, quando o projecto de restauração em que se tinha envolvido fracassou. Enviou currículos, fez telefonemas, respondeu a anúncios de jornal. Não conseguiu empregar-se. Uma amiga disse-lhe que uma empresa de trabalho temporário estava a recrutar pessoas para um centro de atendimento telefónico. Tentou e correu-lhe bem. Trabalha com contrato mensal, renovado automaticamente.

Pedro não é estudante e não tem pais ricos. Tem responsabilidades, contas para pagar e um emprego que pode acabar no mês seguinte. Tem também “alguma esperança”, inspirada no exemplo de “colegas que já lá estão [no ‘call center’] há três e quatro anos, sempre com contrato.” Por outro lado, sabe que é um funcionário competente, caso contrário a empresa onde entrou há quatro meses não o teria colocado a ajudar os demais operadores. “Há dificuldade em encontrar pessoas que façam o trabalho como deve ser e com seriedade.” Que os trabalhadores respondam com escasso envolvimento pessoal a funções temporárias não causa surpresa ao sindicalista Joaquim Dionísio. “Não se envolvem porque sabem que não vão ficar lá, que no mês seguinte podem ficar sem emprego.”

Pedro envolveu-se, embora assuma a inquietação em face do futuro, incerto. “Sinto-me jovem, mas sei que, para o mercado de trabalho, já não o sou assim tanto.” Não se queixa por desempenhar funções não directamente relacionadas com a restauração, sector que antes o ocupou. Com boa vontade, encontra até semelhanças entre gerir uma cafetaria e responder pelo telefone às dúvidas dos clientes. “De alguma maneira, continuo em contacto com as pessoas.” Mas ser um ‘eterno temporário’ não é, também para o Pedro, uma perspectiva favorável. “Tenho projectos que gostava de concretizar mesmo para conseguir alguma segurança na minha vida.”

UM NEGÓCIO EM FRANCO CRESCIMENTO

O trabalho temporário é uma actividade em franco crescimento em Portugal, embora, segundo Marcelino Pena Costa, presidente da Associação Portuguesa das Empresas do Sector Privado de Emprego, ainda com muito menor implantação do que no resto da Europa. É pena, dizem uns. Ainda bem, alegam outros.

- 250 empresas de trabalho temporário em Portugal

- 450 mil trabalhadores em trabalho temporário em 2005

- 8,2% percentagem dos temporários na população activa

- 8,8% percentagem dos temporários entre a população empregada

- 15% crescimento anual no sector do trabalho temporário

- 50% expectativa de crescimento do sector do trabalho temporário

Dependendo de quem olha, o trabalho temporário é considerado a única forma de integração dos desempregados ou incentivo ao trabalho sem direitos.

A: Benefícios

O trabalho temporário é apresentado pelas agências de recrutamento como tendo benefícios para as empresas e para os trabalhadores, neste caso porque lhes permite encontrar uma função de acordo com as suas qualificações. Quanto às empresas, libertam-se de obrigações burocráticas.

B: Temporários há anos

Há trabalhadores em regime de trabalho temporário – com contratos mensais renovados automaticamente – a exercer funções há vários anos em empresas de um mesmo grupo económico. A denúncia é das organizações sindicais, que têm lutado pela integração daqueles funcionários.

C: Os mais requisitados

Os indivíduos com formação técnica são cada vez mais requisitados pelos empregadores. As empresas pedem às agências de trabalho temporário, entre outros, serralheiros, soldadores, torneiros, motoristas, cozinheiros, electricistas e operadores de suporte técnico em ‘cal centers’.

D. Mercado informal

Além do trabalho temporário organizado, existe um mercado informal, classificado de “ilegal” pelo presidente da associação das empresas autorizadas a recrutarem mão-de-obra. Marcelino Costa fala de “empresas de telemóvel e carrinha para transportar o pessoal, grande parte indocumentado.”

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