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Uma vida cortada

Quando morreu em 1997, Lisete transformou-se no símbolo do aborto clandestino. Em vão. Os filhos não gostam disso. E no bairro tudo continua como antes.

29 de outubro de 2006 às 00:00

Lisete tomou vários comprimidos Cytotec, indicados para a úlcera péptica e na prevenção de lesões gastroduodenais. Veio o vermelho, não o feto e, por isso, introduziu na vagina comprimidos de permanganato de potássio, um oxidante. Queria que se fosse. A todo o custo. Em 1997 morreu silenciosa com uma infecção no colo do útero, uma semana depois de ter dado entrada no Hospital de São João, no Porto. O seu desespero coincidiu com uma discussão longínqua, lá para Lisboa, sobre a interrupção voluntária da gravidez, por causa de uma proposta de Lei da JS e do PCP. A sua morte com o Dia Internacional da Mulher. Lisete, que se tinha torcido de dores sozinha na barraca n.º 13 do Aldoar, transformou-se num símbolo quando morreu. Os três filhos que deixou não gostam nada disso.

A noite chegou há pouco. Chove. Hugo encosta-se no lance de escadas com vista para a rua que leva à entrada da casa que recebeu da Câmara, quando o realojamento chegou em 2000 ao Aldoar. A irmã mais nova sobe e desce os degraus. Fabiana tinha quatro anos em 1997, não se lembra de quase nada. Hugo, ou Igo como lhe chamam, lembra-se de quase tudo, especialmente de terem falado da sua toxicodependência e de, depois, quando já ninguém se lembrava da mulher-símbolo, terem-no deixado à espera três anos pelo realojamento da barraca número 13. Aos 17 anos viu a mãe morrer no hospital e prometeu-lhe a desintoxicação de heroína e cocaína. Cumpriu. Hoje está desempregado, faz biscates. Vive há anos com uma companheira. Fabiana deixou a escola no sexto ano e vive com eles, depois de ter estado em casa da avó materna.

Em 1997, a irmã do meio teve de trocar a escola por um emprego na cozinha de um café. Tinha 14 anos. Marta substituiu Lisete, a progenitora, no ganha-pão, e viveu com o irmão na barraca n.º 13. Hoje está casada. Tem uma filha. Vive numa casa unifamiliar, perto do bairro onde nasceu. “Depois de tanta coisa, ninguém nos veio perguntar do que é que precisávamos. E até o nosso realojamento foi como o dos outros”, diz Igo.

Por isso o ressentimento enquanto fuma um cigarro; que se vá falar com aquela que deu os comprimidos à mãe. Os filhos de Lisete não perdoam e há quase uma década que se instalou uma guerra fria em poucos quilómetros quadrados.

NO ALDOAR

No Aldoar, a mulher que Hugo acusa fala pela primeira vez a coberto da porta fechada. Diz que a ajudou, quando Lisete em desespero lhe bateu à porta. Deu-lhe os Cytotec. Não sabe quem lhe deu o permanganato que o médico lhe encontrou no útero. “Pediu-me ajuda, dei-lha. Devia tomar dois pela boca, seis por baixo. Andou três meses a tomá-los. Tinha hemorragias, saiam-lhe postas e achava que estava limpa. Fazia o teste da gravidez e não estava. Andou assim quase até ao quinto mês.”

Não é uma parteira, daquelas de casa clandestina. No Aldoar nunca houve disso. Para a maioria, o dinheiro nunca chegou para pagar até mil euros por uma maca numa casa e umas mãos habilidosas. Em ‘Aldoar City’, como alguém pinchou numa parede do bairro, abortar assentou sempre numa espécie de solidariedade feminina de expedientes caseiros e de remédios que se carregam na algibeira da bata porque ali é um bairro de gente pobre e problemas sociais.

Em 1968, quando se começaram a instalar as conserveiras, os trolhas e os serralheiros que engrossaram a pequena população original, a miséria sobrava ao trabalho. Mais um filho significava desencantadamente mais uma boca, entre já tantas, e um mês sem trabalhar. Chá de bicos de loureiro, cerveja com canela, permanganato dissolvido serviam para fazer irrigações, as agulhas de tricot para “furar a bolsa”. “Quando não resultava ia-se à Ribeira à procura de uma habilidosa para fazer melhor.” E então, as vizinhas, as amigas, segredavam umas às outras: “Vou à Ribeira às cebolas.”

A população do bairro triplicou em 30 anos. Das 6050 pessoas que ali residiam em 1960, ali viviam nos últimos censos em 2001 13 457. Menos duas mil pessoas do que na década anterior (1991), por conta do realojamento que distribuiu habitantes pela cidade do Porto e arrasou as barracas que davam tecto a pessoas como Lisete. A pobreza mudou de rosto, ao ritmo da modernidade. Desemprego, rendimento mínimo, subsídio, prédios de habitação social encardidos e má fama. O chá de loureiro deu lugar há décadas ao Cytotec que entra no bolso das batas através de uma rede de contactos femininos: a amiga que trabalha no hospital, a amiga que tem o marido com aquele medicamento prescrito e que avia a receita na farmácia com unidades a mais.

“Antigamente, havia aqui um farmacêutico que para não arranjar problemas, nem com a Polícia, nem com as mulheres, deixou pura e simplesmente de vender os comprimidos”, diz Esmeralda Mateus, presidente da associação de moradores do bairro há uma dúzia de anos e militante da UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta, a organização que em Setembro promoveu uma romaria à campa de Lisete, disposta a não deixar cair a história daquela que para sobreviver fazia arranjos de costura e de madrugada acartava à cabeça peixe na lota de Matosinhos.

FÁTIMA NEVES

Fátima Neves abortou dois meses depois de Lisete. Eram amigas. Tinham três anos de diferença. Tentou com a pastilha preta da caveira, o permanganato de potássio. Na arma da roleta calhou-lhe a si a câmara vazia, mas Fátima está convencida de outra justificação: “Eu cá quando introduzia não parava de andar, ela meteu-se na cama. Não se pode culpar ninguém de lhe ter dado as pastilhas. Só fazemos o que queremos. Só se culpa o medo que não nos deixa ir ao hospital. Ela foi lá tarde de mais.”

Fátima tem 43 anos, o cabelo escuro e a cara encardida pelos anos de vida mal vivida. Fala em catadupa, sem medo de contar que “alcançou” filhos e não os teve. Abortou. Sempre sozinha. “Tinha o Vítor, que hoje tem 29, quando alcancei. O bebé tinha nove meses, era solteira e tinha muito medo do meu pai. Introduzi 24 pastilhas de permanganato até a bolsa queimar. Estive muito mal.”

O verbo alcançar, que assume novo significado, é repetido até fazer do acto de contar um problema. Três meses depois do aborto alcançou, deixou nascer. Seis meses depois alcançou, abortou novamente, passou as passas, mas ficou em casa, a torcer-se. Dois anos e meio depois nasceu outro menino e em meio ano alcançou outra vez. Já tinha homem, um pescador que lhe batia, e abortou novamente com as pastilhas. Bebeu também chá de loureiro. Nessa altura, o medo dos médicos e da denúncia à Polícia esvaiu-se com o sangue que perdia. “A médica do hospital pedia-me para lhe dizer a verdade, que tinha abortado, neguei sempre. Que me deixassem morrer!” A médica mandou-a para casa e disse-lhe que afinal tinha um fibroma, que nunca tinha estado grávida. Mas estava. Ao fim de seis meses nasceu Raquel, a menina que aos 14 anos fez um aborto, quando Fátima estava detida por tráfico. Um dos filhos, menor de idade, guardava-lhe em casa droga. Fátima jura que foi para a cadeia para o proteger. “O que não faz uma mãe...” Mesmo que tivesse passado toda a idade fértil a lutar por não tê-los. Num dos abortos que fez, virou-se toda do avesso, saltou, até arrancar de si o que podia ser pegado ao colo.

Aquele filho de Fátima serve no bar da associação de moradores. Em hora de trabalho está encostada ao balcão do bar da associação de moradores, uma mulher que foi mãe pela primeira vez adolescente. Tem um filho de 17 anos, outra de 14. Fez três abortos, sempre com a clínica dos pobres, o Cytotec. Da última vez, em 2004, comprou uma lamela a uma conhecida com marido dependente daquele medicamento. “Ela fez-me um favor, mas como ninguém já faz favores fez-se pagar.” Cinco euros.

Mais adiante, encostada à parede de um dos prédios gastos do bairro, está a mãe de Lisete. Júlia foi na romaria da UMARà campa da filha. A família não gostou. Não gosta também que ela insista em falar daquela morte. Do fio de ouro pende sobre o decote da sua bata uma medalha com as fotografias do marido e da filha. Júlia agarra entre o indicador e o polegar a recordação desbotada. Foi ela que deu com Lisete a morrer no barraco. Já não falava. “Fui tarde. O médico disse-lhe que chegava cinco minutos mais cedo.” Quase tanto como a morte, a Júlia custou-lhe não saber que a filha se matava todos os dias um bocadinho para não voltar a ser mãe.

DUAS OPINIÕES APARTIDÁRIAS

Qual a sua posição relativamente à despenalização voluntária da gravidez até à décima semana, tal como proposta no próximo referendo?

A FAVOR

- Paula Teixeira da Cruz, deputada PSD

A questão vem colocada exactamente como a entendo e como espero que venha a ser discutida: é a prisão a resposta que a sociedade quer para quem pratica tal acto? E aí, justamente aí é que não tenho qualquer dúvida: não, a pena de prisão não é a resposta, independentemente da concepção filosófica, religiosa ou política que se perfilhe, como creio que está demonstrado. Acresce que a interrupção voluntária da gravidez é um acto de uma tal violência que implica uma auto-sanção física e psíquica; até para quem entende que o juízo de censura é máximo, devia bastar.

Temos aliás assistido à apresentação de projectos de lei que visam suspender o efeito da pena de prisão mesmo por parte de quem entende que a prisão, na lei, é uma resposta a manter, o que é muito sintomático de que essa não é efectivamente a resposta.

CONTRA

- Maria do Rosário Carneiro, deputada independente pelo PS

Votarei não no próximo referendo relativo à interrupção voluntária da gravidez. A questão que se coloca no próximo referendo é a possibilidade de interromper uma gravidez até às dez semanas de gestação sem que para tal seja necessária apresentar qualquer razão, excepcional, fundamentadora do pedido da mulher. A questão que se coloca é pois a de liberalização às dez semanas – interrupção da gravidez a pedido da mulher – e não do alargamento das excepções previstas na actual lei penal.

Em 2005, os hospitais portugueses realizaram 906 interrupções voluntárias da gravidez e trataram 72 complicações decorrentes de abortos ilegais, segundo dados provisórios da Direcção-Geral de Saúde, avançados esta semana pelo ‘JN’. A situação portuguesa mereceu a 20 de Outubro uma página do ‘El País’. O jornal do país vizinho refere a banalização do uso do Cytotec entre as portuguesas mais pobres. A proposta de referendo do Governo de Sócrates, que visa despenalizar o aborto até às primeiras dez semanas, foi para o Tribunal Constitucional a pedido de Cavaco Silva.

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