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Vai chamar pai a outro

“(...) imagino tais casais a exercitarem o truca-truca exclusivamente nas segundas quintas-feiras de cada mês (...)”

14 de novembro de 2010 às 00:00

O fim do ano aproxima-se, estamos em época de balanços, e neste momento já estou em condições de eleger o meu Mais Triste Momento de 2010. Aconteceu há coisa de mês e meio em casa dos meus sogros. Eu estava num dos quartos, a minha mulher gritou do corredor "papá!", e eu respondi imediatamente "sim?". Não sei se estão a ver a gravidade da situação. Eu respondi "sim". Eu. O alegado marido. A minha mulher estava em casa dos pais. A minha mulher chamou pelo pai. E aqui o alegado marido achou que o pai era ele e não o pai dela.

Aquilo roeu-me por dentro. Andei uma semana deprimido, a resmungar com o mundo e a recusar a terrível descoberta da mais triste das verdades: transformei-me no típico pai de família. Passei a ser um daqueles tipos que após pôr os filhos no mundo passou a chamar "mamã" à mulher. Passei a ser um daqueles tipos que responde "sim" quando a mulher o chama de "papá". Pior: que responde "sim" mesmo quando a mulher nem sequer está a falar com ele.

Eu sei que não pensei. Eu sei que foi uma resposta automática. Instintiva. Irreflectida. Inconsciente. Mas isso só agrava a situação. Ver um casal tratar-se por "pai" e por "mãe" quando os filhos não estão na mesma assoalhada sempre foi para mim o cúmulo da depressão pós-matrimonial. Na minha cabeça, imagino tais casais a exercitarem o truca-truca exclusivamente nas segundas quintas-feiras de cada mês e a preferirem as telenovelas da TVI a uma ida ao cinema ou ao teatro. Basicamente, imagino tudo aquilo que prometi a mim próprio que não aconteceria, por mais filhos que pusesse no mundo.

Afinal, como quase todos os casais, eu e a minha mulher temos uma longa (e bonita) história antes dos nossos três descendentes terem aparecido. Nós estamos juntos há 18 anos e só somos pais há seis, o que significa que o João e a Teresa ainda dão 3 a 1 ao papá e à mamã. Isto não é como a história do ovo e da galinha. Nós sabemos quem apareceu primeiro. Só que acabamos a chamar-nos por "papá" e "mamã" à frente deles, naqueles pequenos teatrinhos de que a vida familiar é fértil, e mal nos distraímos a coisa contamina tudo.

O episódio da casa dos sogros foi um sério aviso. Agora imaginem-me num jantar romântico a pedir ao empregado: "Entrecosto para mim e umas lulas grelhadas para a mamã." Não vai voltar a acontecer. Mãe há só uma. E não é a minha mulher.

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