São cada vez mais e mais novos os aprendizes deste instrumento. Escassez de guitarristas e guitarreiros abre espaço a talentosos.
Numa sala do Museu do Fado, em Lisboa, Wilson Frazão, 24 anos, passa parte do dia a tocar. "Isto dá-nos tanto que se torna um vício", explica o aluno de guitarra portuguesa. Por amor à arte, mudou de vida, trocou o curso de Engenharia Electrotécnica pela música e Caldas da Rainha por Lisboa. Vive em Alfama, onde ecoa o fado.
O mesmo som inspira Pedro Dias, de 17 anos, estudante de Artes Visuais. Quer fazer da guitarra portuguesa profissão, "criar um estilo e ser diferente". São dois dos 17 alunos da escola a funcionar há dez anos em Lisboa e que se alimenta da escassez de guitarristas, abrindo portas a novos talentos. E são cada vez mais e mais novos os aprendizes deste instrumento. Nem todos chegam ao topo, mas os virtuosos têm sempre lugar no palco.
PROFISSÃO DE FAMÍLIA
É a mestre António Chainho que se deve a ideia de formar novos instrumentistas. "Antigamente os profissionais não ensinavam, os guitarristas formavam-se nas famílias, era uma profissão fechada, que passava de pai para filho. E não é por acaso que abri a primeira escola em Portugal. Deve-se à maneira como fui recebido em Lisboa e maltratado por ir a casas de fado para ver como se tocava", conta.
Mestre Chainho treinou o talento a ouvir o pai, "o melhor da aldeia", que tocava no café da família, onde a mãe replicava a voz de Amália. "Ouvia na rádio os fados de Frederico Valério, muito evoluídos, e como tinha bom ouvido fui melhorando. A certa altura superei o meu pai."
Quando se apercebeu de que a morte de 20 guitarristas apenas fora colmatada com a chegada de dois novos instrumentistas, Chainho fez tudo para que "a guitarra portuguesa não corresse o risco de se perder". À escola no Museu do Fado, seguiu-se outra no seu concelho natal, Santiago do Cacém. Hoje, em Lisboa e no Alentejo, a idade dos alunos varia entre os 9 e os 74 anos. Em Coimbra, a escola de música de Secção de Fado da Associação Académica tem 35 alunos - menos universitários e mais estudantes do Secundário.
ALDEIA DE GUITARRISTAS
Wilson Frazão aprende com mestre António Parreira, que cresceu a tocar com António Chainho. "Na nossa aldeia, São Francisco da Serra, Santiago do Cacém, toda a gente tocava, homens e mulheres. E eu, que comecei na guitarra clássica aos três anos, aos 15 já acompanhava Chainho. Entretanto, ele foi para a tropa e nesse espaço aproveitei para apurar a guitarra portuguesa. Aprendi sozinho, com um método de João Vitória, por onde seguia os desenhos e experimentava os sons."
António Parreira acompanhou grandes vozes do fado, tocou pelo Mundo e, por ter "toda a paciência", senta-se agora na escola do Museu do Fado. A procura foi tanta que se viu obrigado a chamar o filho mais novo, Ricardo, para com ele ensinar guitarra portuguesa.
"Saber tocar nasce com a pessoa e quem tem talento precisa de cinco anos para aprender guitarra portuguesa. Os outros podem trabalhar e fazer-se guitarristas médios. Já tive aqui vários bons", nota o mestre, afirmando que a educação se faz por saltos até ao virtuosismo. "Vai-se sempre mais longe, até onde se conseguir. Um dia há um salto, uma barreira que pode ser ultrapassada e, quando isso acontece, é sempre a crescer."
Wilson Frazão já deu o salto. Começou na guitarra clássica aos dez anos, estuda agora guitarra eléctrica na Escola do Hot Club e guitarra portuguesa no Museu do Fado. A intenção é evoluir na área. "Mas a guitarra portuguesa é um instrumento duro, que exige esforço corporal", reconhece. As 12 cordas de aço muito esticadas chegam a ferir as mãos dos iniciantes e, talvez por isso, frisa mestre Parreira, "não se encontrem muitas mulheres a tocar". Neste momento, há quatro alunas na escola de Alfama. "A mais pequena, Carolina, de nove anos, já tem muita garra a tocar."
Temas de Artur e Carlos Paredes e de Armandinho, ‘Fado Corrido', ‘Fado Lopes' e ‘Guitarra Triste' estão entre os preferidos dos instrumentistas, mas fado é fado.
RECUPERAR ANOS DE OURO
Pedro Dias, cabelo comprido e pinta de artista, aprecia particularmente a voz de Hermínia Silva. Estudante no 12º ano e aluno do Conservatório, leva a música a sério. A meta é o curso de Ciências Musicais e o virtuosismo na guitarra portuguesa. No Museu do Fado, aprofunda com Ricardo Parreira o gosto que surgiu com uma amiga, "a Teresinha, que ouvia estas coisas". Pedro Dias ouve quase tudo: "Doors, Nirvana, reggae e fado, claro. O meu sonho era conseguir ter nome e um estilo próprio, pois se imito alguém é só no subconsciente."
Nas aulas de Ricardo Parreira, 24 anos, o ambiente é tenso. Afirma ser duro com os alunos e trabalhar para eliminar vícios. "Cada guitarrista adopta uma postura, o meu pai tem a dele, eu tenho a minha, mas existe uma base e depois cada músico adopta a relação com o instrumento. O que deve acontecer é que todo o nosso corpo tem de estar em sintonia."
Inspirado pela década de ouro de 1950, quando o guitarrista era cabeça-de-cartaz e se entrava numa casa de fados para ouvir "guitarradas", Ricardo Parreira quer recuperar o protagonismo. "Isso esmoreceu porque o interesse pela música não tem a riqueza da gramática. É mais fácil um ouvinte identificar-se com o som da voz, da palavra, e esquecer a história do instrumento", diz. "Mas sempre houve grandes intérpretes da guitarra portuguesa: Armandinho, José Nunes, Jaime Santos, Raul Nery, e hoje em dia começam a aparecer mais, com formação superior. Provavelmente perde-se a cultura popular, mas o fado também tem isso de giro."
Em Coimbra, onde a guitarra portuguesa soa mais grave, o interesse cresce sempre após as grandes festas da academia: a Serenata Monumental e a Serenata das Festas das Latas. "Nessa altura, temos mais inscrições, mas depois, com a exigência pedida nos cursos, são muitos os que não têm tempo para continuar a aprendizagem a que este instrumento obriga", diz Manuel Coroa, mestre em Coimbra.
Esse não foi, no entanto, o percurso do seu filho. Manuel Coroa, 23 anos, que se iniciou na guitarra portuguesa aos 12. No 5º ano de Medicina, é um dos instrumentistas do grupo In Illo Tempori e garante que "quem corre por gosto não cansa". As prioridades estão definidas: "Primeiro sou estudante e depois guitarrista no meu grupo de fado. Actuo nove ou dez vezes por mês e gosto particularmente de tocar o repertório da família Paredes."
Diz Ricardo Parreira, que interpretou peças de Carlos Paredes com a Orquestra Metropolitana de Lisboa, que "a guitarra portuguesa dá para viver, claro. Não se fica milionário mas há cada vez mais procura."
A ARTE DE UM BOM MESTRE GUITARREIRO
Óscar Cardoso, 52 anos, divide-se entre as ondas da Ericeira e a oficina em Odivelas. É um dos mais afamados guitarreiros e surfista por paixão. Aprendeu a construir instrumentos musicais com o pai e afinou o saber numa escola em Itália. O filho, João, já trabalha a seu lado, e uma guitarra portuguesa desta oficina pode custar cinco mil euros. Mas só sai uma por mês. "Só trabalho quando estou inspirado, quando sinto que posso fazer algo de diferente."
Na sua oficina, amontoam-se peças de jacarandá, pau-santo, cedro canadiano e outras madeiras nobres, formões, limas, plainas, aparas de madeira e cola, pois acredita que "é no caos que existe a beleza". Tem clientes no Japão, na Holanda, na Bélgica e até construiu uma guitarra para Pat Metheny. "Faço sempre diferente, estou sempre à procura do som novo, e como o trabalho é todo manual, cada guitarra é única, uma peça irrepetível."
Em 2005, criou uma guitarra portuguesa sem fundo, com estrutura em fibra de carbono (material das pranchas de surf): está à venda no Portal do Fado por 3500 euros.
NOTAS
GUITARRA
Uma guitarra portuguesa custa entre mil e cinco mil euros. As mais valiosas são peças antigas da família Grácio.
LISBOA
A guitarra de Lisboa é mais pequena: a escala tem 44 centímetros de corda vibrante, forma de maçã e termina numa voluta (caracol).
COIMBRA
Esta guitarra tem 47 centímetros de corda vibrante, forma de pêra e termina em lágrima. Afina um tom abaixo do lá, mi, ré, com som mais grave.
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