Em Vila do Conde nem todos chegam aos jipes topo de gama ou às gargalhadas no casino. Há informadores do crime na grande comunidade oriental e só resta “limpá-los” sem deixar rasto.
A ponta da lâmina vergada nas costas faz soltar um grito de dor e de medo na noite de Vila do Conde. O ataque é rápido e traiçoeiro, quando Huang vê o carro do marido afastar-se no escuro e sente o frio da navalha paralisar-lhe o corpo. A gravidez não comove os dois marginais que a agarram por trás. Querem dinheiro e não adianta mentir. Sabem que o guarda consigo e conhecem todos os passos do casal, desde que deixaram o armazém até à chegada a casa, antes de Ye partir para nova madrugada de jogo no Casino da Póvoa. Os assaltos à comunidade chinesa sucedem-se em flecha e lançam o pânico entre os comerciantes, mas as fugas vêm de dentro e a Polícia é mantida à margem. A raiz do mal está nos chineses infiltrados – e só resta persegui-los e “limpá-los” sem deixar rasto, adianta sem meias palavras Y Ping Chow, o respeitável presidente da Associação Industrial e Comercial dos Chineses em Portugal.
Ao contrário de outras comunidades imigrantes, recordam, “a chinesa não só absorve toda a sua mão-de-obra, como ainda dá trabalho directo e indirecto a muitos portugueses”. Advogados, economistas, contabilistas, seguradoras ou transportadoras. E não se conhecem casos de mendicidade entre os seus pares. Mas entre 700 chineses há patrões e empregados e, nos 170 armazéns na Zona Industrial da Varziela, circulam diariamente muitos milhares de euros em dinheiro vivo. Nem todos chegam aos jipes topo de gama, tal como nem todos se podem dar aos desvarios nocturnos e às gargalhadas em torno das máquinas e panos verdes do casino.
“Sabemos que passam informações lá para fora”, são algumas das poucas palavras que lhes arrancamos e tudo o resto é resolvido entre eles. Por uma questão de honra e da própria cultura, nada passa para fora da comunidade. Têm uma imagem a defender e não perdoam traições. “Quem vem é para trabalhar, é ajudado pelos que já cá estão e fica obrigado a um código de conduta”, desvenda Manuel Vieira, 38 anos, hábil advogado de Oliveira de Azeméis ligado a muitos dos empresários chineses. E o “limpar”, ficámos a saber, passa por afastar os traidores da comunidade, tirar-lhes apoio e o trabalho. A estocada final é fazer com que sejam repatriados – se for preciso com um telefonema anónimo ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Não há pior castigo que voltar a casa e à opressão do regime vigente.
TOUPEIRAS INFILTRADAS
Os assaltantes, garantem, “são portugueses de bairros pobres no concelho de Vila do Conde”, jovens que recebem informações a partir das toupeiras infiltradas e “sabem que aqui se mexe com muito dinheiro”. Atacam pela madrugada mas também ao final da tarde, são violentos e “andam armados com facas”. Foi o caso de Huang Jianzhen, 31 anos e grávida de quatro meses, mas também de Zhu e Lyn, como de outros casais de chineses com negócios de roupa montados na próspera zona industrial. Até há um mês deixavam as lojas render pela noite dentro, mas hoje em dia recolhem tudo mal o sol se põe. A excepção à regra e aos clássicos assaltos, tal como os conhecemos, foi um jovem empregado de armazém atacado há pouco mais de duas semanas pelos próprios chineses. Os três dedos mutilados sem dó nem piedade, “só porque recusou dar um código electrónico”, não deixam dúvidas. “Ainda não os encontrámos, mas vamos resolver o assunto”, garantem. Até lá correm-se grades de ferro de alto a baixo e patrões e empregados passam as noites de plantão nos armazéns. Em alerta constante.
E mais não se conseguem resguardar os chineses pelo “vício do jogo”, acabando muitos por se renderem diariamente à tentação do Casino da Póvoa, a escassos quilómetros do trabalho – o que muitas vezes se revela fatal pelas emboscadas no regresso a casa. “Há casos que nem sequer é por vício”, garante Lin Tsung Hwei, 36 anos, que trabalha como intérprete na associação. “Muitos só vão tanto ao casino porque é lá que se divertem. Não falam português e o cinema, televisão ou teatro para eles é ‘grego’. No jogo é só meter a chapa e a língua é universal”, lembra este chinês há 28 anos em Portugal. O entra e sai das notas no casino expõe os empresários ao crime e aguça o interesse dos assaltantes. Antes o casino era fechado, agora a entrada não tem controlo. Todos vêem o dinheiro de cada um. E foi isso que motivou Y Ping Chow a abrir com Wang Fian Shou, 46 anos e dos mais antigos da comunidade, uma corretora ‘Golden Brake’ na zona industrial. “É a oportunidade de aplicarem melhor o dinheiro”, com investimentos em grandes mercados bolsistas, “e de ocuparem o tempo sem correr tantos riscos”.
RESTAURAÇÃO JÁ NÃO É O QUE ERA
A comida chinesa junta à mesa jornalistas, advogado e empresários, que falam dos negócios sem tabus e só a segurança os preocupa. A restauração já não é o que era, felizmente há muito que se viraram para a roupa. Tem caído com “a moda do japonês” e pelo “impacto negativo” das constantes operações da ASAE – a Autoridade para a Segurança Alimentar e Económica, que fechou dezenas de restaurantes nos últimos tempos. “Como é possível enojarem-se, de repente, por uma cozinha com mais de 25 anos em Portugal?”
E os “boatos” sobre o mistério em torno dos mortos, responde agora o advogado português, “não passam disso mesmo. Tráfico de órgãos, trocas de identidades, inventam tudo”. Quem corra o País não encontra “mais de 100 registos” de chineses mortos e enterrados, mas é normal. “São uma comunidade jovem, que ainda não atingiu a esperança média de vida. E só agora, há cinco, seis, sete anos, trazem os pais ou os tios para Portugal. Por uma questão cultural, sempre que têm problemas de saúde regressam logo à terra – preferem recorrer à medicina chinesa, mais desenvolvida e experiente que a nossa. Mas, olhe, ainda há pouco tempo foi um chinês sepultado em Oliveira de Azeméis...”
A comunidade cresceu e deu vida a uma zona industrial até há cinco anos votada ao abandono, com pouco mais de “meia dúzia de grossistas”, recorda Lin Tsung Hwei. E hoje são 170 armazéns de roupa com uma localização estratégica, pela proximidade com o Porto de Leixões. “Sai mais barato despachar lá do que em Sines, onde depois temos de pagar 900 euros pelo transporte de camião”. As mercadorias chegam pelo mar em contentores e diariamente são carregadas para os enormes veículos contratados.
Lin domina o português e faz a ponte entre os despachantes, transitários e importadores chineses. Ajuda-os a tratar dos impostos e dá informações sobre as quotas a aplicar nos têxteis – exigências da União Europeia. Os armazéns da comunidade abastecem lojas chinesas pelo País todo e há ainda os grandes clientes ciganos, rendidos aos imbatíveis ‘negócios da China’ e que compram de tudo para vender nas feiras. As relações não podiam ser mais tensas e, tal como os ciganos, os chineses são, por tradição, “unidos e desconfiados”. Só aceitam dinheiro vivo.
Com mais ou menos segurança, restaurantes e roupa a vender ou a fiscalização a apertar, a grande comunidade não arreda pé e ninguém pensa em voltar para casa. As novas gerações já quase só falam português, mas “a cultura é para manter” e, tanto em Vila do Conde como no Porto, já abriram escolas que ensinam a falar chinês. “A prioridade vai para crianças nascidas cá, a partir dos dois ou três anos”, adianta Y Ping Chow, mas há ainda cursos de chinês para empresários, além das aulas de Kung Fu e Tachi. E tudo o resto é negócio, entre malhas e missangas, sapatos, cintos, calças ou camisolas, tudo às centenas e disposto pelos manequins alinhados ao longo dos armazéns. Já se preparam as vendas de Natal – e, claro, aos preços do costume.
DUPLA DE SUCESSO: CASAL DE ADVOGADOS GARANTE A DEFESA DE DEZENAS DE MEMBROS DA COMUNIDADE
A mulher resume-lhe dezenas de milhares de páginas ao essencial e, quando chega à barra do tribunal, Manuel Vieira, 38 anos, ergue-se nos seus fatos impecavelmente arranjados e faz gala em desarmar audiências com os processos na ponta da língua. Rufina é também advogada e o braço-direito do marido, que, invisual mas b
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