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Wrestling made in Portugal

Cá fora são o Zé, o Manel ou o António. No ringue são heróis e vilões. Entre o desporto e a diversão, bem-vindos ao wrestling nacional, uma ‘novela’ para homens e para senhoras e crianças.

21 de setembro de 2008 às 00:00

Iceborg. Metade homem, metade máquina.Totalmentemonstro. Dois metros de altura por 150 kg de vilania. Insulta o público. Rouba bebidas. Expressa-se num macarronismo incompreensível. E, sim, veste lycra e toca em tipos suados. 'E os que usam meias até ao joelho, como no futebol?!', defende-se Pedro Afonso. Fora do ringue, quando despe asuapersonagemdomundodo wrestling, seria um pacato miúdo grande de 19 anos não fossem os piercings e um corte de cabelo pouco comum que salta à vista entre os colegas do Liceu Pedro Nunes, em Lisboa. 'Todos somos malucos. Eu sou mais do que os outros! Se me virem só com cabelo de um lado não me associam ao wrestling, fogem! Mas como sou simpático não costumam ter medo de mim. Tenho amigos que já me chamam Ice sem querer, nem que seja por piada.'

Até a mãe se rendeu à alcunha de guerra, apesar de o desporto, 'uma péssima ideia', não cair em graça. 'Preferia que eu fizesse ténis! Mas obriguei-a a ir a um espectáculo e gostou muito. Disse-me que não devia ter batido com tanta força no adversário!'

Pedro emprestou a voz a desenhos animados, foi segurança e relações públicasnumadiscoteca,monitorde campos de férias, praticante de râguebi e de luta greco-romana. Tudo caberianalista.Menos futebol.'É tudo combinado!', brinca, em protecção do ‘realismo’ do wrestling.

Imagine uma novela para homens – que contagia senhoras e miúdos. Pedaços de histórias entre o bem e o mal, com um toque de moral onde a imagem e o carisma dos intérpretes são determinantes. É este o enredo simulado dentro das cordas que tem vindo a conquistar portugueses em eventos do género. Quarta-feira, o Pavilhão Atlântico volta a ser a casa das maiores estrelas internacionaiscomoregressodo Smackdown Live, que traz a Portugal uma legião de culto para fãs de ‘filmes de acção’.

'É para ganhar mas ninguém entra a matar. É como um filme com efeitos especiais. As pessoas sentem que é mesmo real. É uma espécie de entretenimento familiar. Os miúdos vão ver os seus heróis e arrastam toda a gente lá em casa. O pai vai ver a porrada e a mãe os meninos musculados', descreve Axel, antigo lutador e actual promotor da modalidade ao serviço da AssociaçãoPortuguesade Wrestling, inserida na World Stars of Wrestling, e procurada por curiosos de todas as idades.

No total, já terão passado 150 lutadores pela associação. O número fixa-se agora nos 30 activos. Três dezenas de amigos que adoram 'pegar no microfone e rebentar a casa'. Com espectáculos em Portugal e além- -fronteiras, Badajoz (27 de Setembro) e Grândola (28) são as próximas paragens. Em vésperas de novos embates, Iceborg deixa o aviso: 'É impossível alguém ganhar-me. Só se eu for desclassificado (já aconteceu, estava a sufocar o adversário e empurrei o árbitro!), ou fizerem batota, ou se for mais do que um.'

Os números da Matemática de 12.º ano ainda não estão arrumados mas Pedro já sabe o próximo passo: seguir Veterinária. No futuro, dedicar-se em exclusivo ao wrestling, uma paixão que não levanta grandes fanatismos coleccionistas. 'Em casa só tenho o fato. A mamã já me estragou um fato, lavou-o à máquina e destruiu-o. Ela diz que foi sem querer. Agora está escondido num sítio que a mamã não descobre.'

Pelo contrário, Ultra Psycho é também ultra-fã. Quem mergulha no quarto dele afoga-se em wrestling, previne. Da colcha com super-heróis às pilhas de DVD e panóplias de bonecos, Psycho, ou João Ruivo, 28 anos, respira, vive e veste o desporto. Todos os dias, desde 91, quando em pleno zapping se cruzou com o wrestling na caixinha mágica. 'Os meus pais nunca levaram a sério. Acharam que é como os putos que querem ser astronautas ou pilotos de Fórmula 1, mas sempre soube no meu íntimo que era isto que queria fazer. Nunca liguei a outros desportos. Falam-me de futebol e eu: ‘Quem?!’ A minha avó pela-se de medo. Está sempre a dizer para os outros adversários não me destruírem!'

Os 78 quilos não se assustam com os pesos-pesados. Psycho é uma personagem psicadélica e espertalhona que oscila entre o herói e o vilão. Condensa humor e loucura. Faz da técnica arma. Puxa do neurónio para derrotar os adversários. 'Se todos fossem Hulk Hogans tornava-se banal. São precisos os pequenos para equilibrar. A piada do wrestling é a variedade.' Com o fato arraçado de motard ou sem ele, João apresenta-se como um rapaz de Alverca. Desistiu de Jornalismo na Universidade, foi recepcionista num ginásio e trabalhou numa fábrica. Hoje trabalha por conta própria com a introdução de dados. Ao fim-de-semana dá treino na escola de wrestling da APW. Atrás da cortina, antes de entrar em ringue, o nervoso é tal que 'só me apetece ver livre daquilo'. Mal o pano sobe, a aflição dissipa-se com a entrada em palco. Gosto não lhe falta. Só um truque para domar o stress inicial. 'Isso queria eu descobrir!'

Mais rodadas, as estrelas norte- -americanas da World Wrestling Entertainement dominam como ninguém as atenções mundiais. O ‘Monday Night RAW’, programa transmitido pelo cabo, é campeão de audiências do outro lado do Atlântico. E se o famoso Hulk Hogan encetou a era dos lutadores ‘bonitos’ e musculados, Undertaker, Batista, John Cena ou Triple H são algumas das estrelas da actualidade, imbatíveis a gerar dividendos. Por cá, os valores auferidos ficam uns bons furos abaixo, representando cerca de dois terços da média europeia.

'Depende da quantidade de trabalho, das vendas do merchandising, dos espectáculos, dos direitos de imagem. Por ano, os valores podem rondar os 6 mil ou 7 mil euros. Mad Dog e Iceborg são dos mais rentáveis. Outros funcionam mais ao nível do merchandising. Por exemplo, os bons da fita rendem mais', explica Axel.

As personagens são rendibilizadas com a venda de t-shirts, fotos autografadas, DVD, chapéus e restantes produtos. 'Vamos começar com pay per view nacional e internacional, através do Meo. Vamos transmitir no site também em regime pago.' Até o vinho se junta à festa. Sim, leu bem. Em breve será lançada uma edição especial de um alentejano de Pias com seis personagens. Em versão branco, tinto, rosé e maduro. Disponível em espectáculos, internet e lojas especializadas.

Longe dos copos, beleza e matreirice é a receita de Miss Sylvie, a primeiradivado wrestling nacional. Controladora,dispostaa tudo para salvar o companheiro em ringue – e em casa –, Sylvie, ou Sílvia Francisco, 28 anos, é uma assistente dentária que não dispensa a companhia de ‘Juan Casanova’.'Sempregosteide wrestling. Entrando, podia controlaromeumarido! Sou a única mulher no meio dos monstros todos', ri-se. É nos eventos, 'um mundo à parte', que se liberta das obrigações laborais. 'Cá fora ninguém me conhece. Os meus pais disseram que era maluca. No trabalho perguntam se bato no meu marido em casa! Nos eventos é giro, os miúdos pedem autógrafos e os pais já se renderam.'

O faz-de-conta inclui decotes arrojados, barriga ao léu, calções bem curtos e sedução quanto baste. 'É fácil entrar na personagem. Treinamos em casa e improvisamos.' Junto às cordas, onde monopoliza os olhares sem alinhar em grandes barulhos, Sylvie revela um sorriso enganador, nota dissonante da expressão genuína com que vive este universo. Sempre com o seu Casanova. 'Conseguimos conciliar com o trabalho. Os espectáculos são ao fim-de-semana. Assim passamos mais tempo juntos.'

Gabam-lhe a veia ‘poética’ mas Arte-Gore não sabe onde a terão visto latejar. Campeão nacional por duas vezes, vilão por excelência, lutador de cara feia, bem camuflada, 'faz os outros sofrer com jogos mentais, é um pouco sádico'. Fora da encenação, Gore é Pedro Encarnação. E as manhas cerebrais estão todas ao serviço da Engenharia Informática. Com 31 anos, a picada do bicho do wrestling começou cedo, aos dez. Do gosto aos treinos foi um pequeno golpe. 'É sempreuma surpresa quando me vêem no ringue. Ninguém acredita que seja possível. Quando fomos às ‘Tardes da Júlia’, o meu tio ligou-me a perguntar se eu tinha ficado mal. Depois, na rua, dizem-me que têm medo de mim! E no trabalho gozam comigo quando perco.'

Dar corpo e alma a Arte-Gore não é tarefa fácil. Até porque a coisa se tornou séria. O público passou a 'perceber melhor' as palhaçadas nos espectáculos. 'Exige preparação prévia. Quando me interrompiam ficava muito chateado. Todos temos rituais.' Personagem de força, Gore é provavelmente o mais habilitado a fazer frenteaopoderosoIceborg. Que o embate seja brando para o jovem de Portimão.'Já tive várias lesões. Sacrificamos o corpo todos os dias.' Tudo se deve a uma evidência queosprópriosconfirmam:'No wrestling é preciso ser mais louco do que o normal.'

Mais do que louco. Raivoso. Mad Dog está para os ringues como Cristiano Ronaldo está para os relvados, pelo farto currículo no wrestling. Quando o cão larga o osso da luta-livre volta a ser Carlos Sequeira, o algarvio de 35 anos, 'já com idade para ter juízo', que em 1993 pôs em marcha a Associação Portuguesa de Wrestling. Várias vezes campeão nacional, actual detentordotítulo,oseu ‘Neckbreaker’, golpe característico, já fez suar as estopinhas do gigante e multi- campeãodaWWE BookerT,com quem lutou. Apesar das coleiras e correntes, e do ar de duro, é um herói que faz a folhaaos maus da fita. Fora de cena, leva uma 'vida normal'.

Semiprofissional, Mad Dog é dos poucos que se dedicam praticamente por inteiro à modalidade. 'O único, até à data', a poder lutar com Vito, personagem célebre por combater de vestido. 'Eu uso saia. Fazemos um bom conjunto!' O seu ‘boneco’ passou por várias transformações. Há três anos, bem depurado, fixou-se nesta ‘raça’, um 'estilo próprio e marcante', diferente dos antigos padrões que revestiam este desporto. 'Nos anos 40, com o Zé Luís, o Carlos Rocha e o Tarzan Taborda, o wrestling derivava directamente da luta-livre. Raramente iam às cordas ou saltavam para fora. Bastavam uns calções e umas botas e estava feito um lutador.'

Carlos enamorou-se pelos golpes e contragolpes em 1987 através dos canais internacionais que transmitiam as várias ligas. Cedo lhe pareceu 'um filme', com ilustres desconhecidos que passaram a pulular pelo seu imaginário. Tal e qual estrelas de cinema. Quando a estrutura do wrestling em Portugal não passava de uma miragem, lançou a primeira pedra. 'Estamos a criar um monstro, no bom sentido! Temos espectáculos espalhados por vários sítios.' E surpresas. 'Não são só os miúdos que me abordam. Uma vez recebi umas cuecas fio-dental pelo correio!'

FILHOS LEVAM MOURINHO À LUTA

São muitos os pais que acabam enredados no wrestling a pedido dos filhos, os mais fiéis seguidores dos heróis dos ringues, a quem é preciso explicar que ‘é tudo a fingir’. Nem o treinador José Mourinho escapa à sina. Ainda ao serviço do Chelsea, foi destaque na página da WWE, a maior federação norte- -americana de luta-livre, depois de ter assistido em Londres a um dos espectáculos na companhia dos dois filhos. 'Foram os meus filhos que fizeram que a luta-livre entrasse em minha casa. É óptimo estar com os miúdos e com as pessoas que eles admiram tanto', disse o ‘Special One’ à WWE.

DE LUTADOR A MANAGER

'Comecei por maluqueira, na luta greco-romana. Depois treinei alguns anos com o Tarzan Taborda, fui o único aluno original dele desde 91 até 98. Fiz espectáculos internacionais. Mas a música ocupa-me 99% do tempo. Tive que fazer opções', explica Axel, antigo lutador e actual promotor dos espectáculos. Tarzan Taborda, ou Albano Taborda Curto Esteves, figura célebre do wrestling nacional, foi cinco vezes campeão mundial e quatro vezes campeão europeu. Taborda também foi bailarino no Lido de Paris e duplo em Hollywood, tendo contracenado com Brigitte Bardot, Alain Delon, John Wayne e Robert Mitchum. Faleceu a 9 de Setembro de 2005 com 70 anos.

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