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"As máquinas não são boas para fazer piadas": Carlos Fiolhais em entrevista

É um divulgador de ciência, professor catedrático de física em Coimbra, onde instalou um supercomputador para cálculo científico.

20 de março de 2024 às 11:20

Drante a última semana, quantos sistemas de Inteligência Artificial (IA) fizeram parte do seu quotidiano?

Quando quero usar o meu telemóvel, ele reconhece-me graças a tecnologia de IA. Quando pesquiso no Google, é considerada a minha atividade prévia. Um sistema anti-spam afasta o correio indesejado. Quando vejo o Facebook, a IA escolheu, por mim, a minha seleção de posts. O mesmo quando consulto a Amazon: eles antecipam aquilo que eu quero comprar. Fraudes em compras eletrónicas são impedidas por IA. Chego melhor de um sítio a outro, usando a IA. Sistemas de IA permitem traduções mais rápidas, assim como correções ortográficas. E isto sem falar do ChatGPT, que uso pouco, mas que pode dar jeito para uma primeira pesquisa sobre qualquer tema. Portanto, a IA já está há muito nas nossas vidas.

Quer explicar o que é um algoritmo e como é que ele tem impacto na IA?

Um algoritmo é uma sequência de instruções para obter um determinado resultado. Não tem de ser num computador: por exemplo, uma receita de bacalhau à Gomes de Sá. Os programas de computadores são exemplos de algoritmos. A "aprendizagem automática" (machine learning) da IA usa algoritmos. A diferença entre os programas de IA e os tradicionais é que os primeiros aprendem; isto é, mudam à medida que são usados. Os computadores estão nisso a imitar os seres humanos, embora de forma limitada. Para uma entrada, um certo algoritmo não dá sempre a mesma saída. Uma das questões discutidas hoje é a transparência dos algoritmos de IA. Alguns deles são "caixas negras", o que causa desconforto a muitos. Funcionam, mas ninguém sabe muito bem o que lá está dentro. À semelhança do que acontece no cérebro humano, assistimos a decisões automáticas sem conseguir indicar como foram novidades.

O que pensa sobre os investidores em empresas de IA?

As grandes empresas de IA são as cinco que dominam a economia mundial: a Microsoft, a Apple, a Amazon, a Alphabet (da Google), a Meta Platforms (do Facebook), estão todas elas no top 10 das maiores empresas. Há ainda, nesse top, a empresa de hardware NVIDIA, que começou por fazer placas para jogos e agora está lançada na AI com enormes lucros. A OpenAI é nova, está a subir muito, mas é em boa parte da Microsoft. Há poucas empresas europeias competitivas em IA e algumas delas funcionam com capital americano (por exemplo, a francesa Mistral). A China é outra história, pois tem empresas com domínio ou supervisão estatal. Na IA como noutras áreas há um confronto entre os EUA e a China. As referidas empresas ocidentais, todas elas sediadas na costa oeste americana, são mais poderosas do que a maioria dos países. Por exemplo, só seis países têm PIB superior ao valor da Microsoft. Nesta era de capitalismo global, há óbvias questões de soberania: o poder deixou de residir apenas nos Estados. Ora estes podem ser democráticos, mas as grandes empresas não são. Têm por meta o maior lucro e não o bem comum. Os Estados, que devem defender o bem comum, estão a responder com atraso às inovações tecnológicas…

Faz sentido criar regras para monitorizar sistemas de IA?

A regulação não só faz sentido, como é essencial. São as próprias empresas que a pedem para que possam jogar dentro das regras. O Presidente Biden assinou em 2023 uma ordem executiva sobre a segurança da IA, protegendo a privacidade e os direitos dos cidadãos. A União Europeia criou uma regulação baseada no tipo de risco. A UNESCO também fez recomendações éticas para a IA. O Papa apelou a que a IA sirva as causas da fraternidade e da paz.

Quais são as principais questões éticas e legais que se colocam?

A tecnologia avança muito mais depressa do que a ética e o direito. Estes veem-se obrigados a correr atrás das inovações, por vezes a "correr atrás do prejuízo". A Europa tomou como prioridade a regulação, que é indispensável. Temos de prestar mais atenção às questões morais e legais, para alinhar os interesses económicos com os valores humanos. Uma coisa é o que se pode fazer e outra, muito diferente, é o que devemos fazer. Temos de evitar os maus usos da IA, proibindo mesmo alguns deles. Entre os perigos , está o da quebra de privacidade. Aí, somos cúmplices porque damos os nossos dados em troca de uma suposta gratuitidade. Mas, para mim, o maior perigo é a intoxicação maciça com falsas notícias na Internet, o que não só mina a democracia como pode provocar conflitos. O problema da regulação não é novo: quando foram inventados os carros tivemos de criar códigos para evitar o caos nas estradas. Deverá também haver uma preocupação com a democratização do acesso para que a desigualdade já gritante entre ricos e pobres não cresça.

A IA é também uma oportunidade de desenvolvimento. Como é que Portugal se deve posicionar?

A área de IA está em franco progresso, com aplicações como o ChatGPT. A fronteira entre o real e o virtual está a esbater-se. Há possibilidades enormes e também cuidados a ter. Nesta área, poderíamos mobilizar investigadores para um centro interdisciplinar nacional. Aí teriam lugar pessoas da matemática, da física e da engenharia, mas também das ciências sociais e humanas e das artes. Muitos cientistas estão de costas uns para os outros e há aqui uma possibilidade de trabalho conjunto.

"A inteligência artificial depende de milhões de microtrabalhadores pobres", disse, ao ‘Expresso’, o sociólogo Antonio Casilli. Enquanto cientista como interpreta estes impactos?

É difícil fazer previsões sobre o impacto da IA no emprego. Mas as grandes inovações sempre trouxeram mudanças nas profissões: umas acabaram e outras surgiram. No cômputo geral, não foi mau. Com as máquinas a vapor deixámos de ter necessidade da força animal

ou humana. E as profissões passaram a exigir mais qualificações. Agora com a IA, tarefas repetitivas estão a ser feitas automaticamente, ainda que sejam de escritório. Ficarão as profissões mais criativas e que lidem mais com coisas humanas, como a alimentação ou a saúde. Talvez tenhamos menos tempo de trabalho, o que não é necessariamente mau. Casilli levanta um ponto relevante: há uma multidão de operadores humanos, mal pagos, que ajudam no treino de sistemas de IA: por exemplo, confirmam se uma imagem foi bem vista pela máquina. A economia é um domínio da política e por isso, está para além da ciência e tecnologia.

Na próxima década, quais são as áreas em que a IA deverá ter maior impacto?

O impacto é transversal a várias áreas. Existe grande potencial na saúde, como diagnósticos automáticos, descoberta de novos fármacos e apoio psicológico. Os serviços de justiça podem ser mais rápidos e mais baratos. A educação vai ser afetada, com os professores, sempre imprescindíveis, a adaptarem-se. Já há e vai haver mais carros com condução autónoma. Serviços como banca, seguros, energia e outros serviços públicos podem ser mais automatizados. Em contraste, as áreas menos afetadas serão aquelas que envolvam mais criatividade humana, como as artes e a diversão. As máquinas não são boas a fazer piadas…

Se tivesse de aconselhar uma área profissional de futuro a um adolescente, o que lhe diria?

Que vá atrás do seu sonho.

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