Só entre dezembro e março últimos, na anterior época ciclónica, Moçambique foi atingido por três ciclones, incluindo o Chido, o primeiro e mais grave, no final de 2024.
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A Igreja Velha Apostólica do Ferroviário, subúrbios de Maputo, é inundada sempre que chove, mas a fé mantém os cultos vivos, com crentes vestidos de branco a atravessar poças de água e lama, 'obrigados' a consultar a previsão do tempo.
"Estamos aqui. Lutamos sempre para nos mantermos por causa da fé. As pessoas sempre sentem que precisam de ter espaço para a sua fé, é por isso que vêm aqui", diz à Lusa Carlos Sitoe, superintendente daquela congregação, pouco antes do início do culto, que se realiza desta vez porque só caiu uma "chuva miúda" no dia anterior.
A igreja é a central de várias comunidades dos bairros dos arredores, albergando cerca de 2.000 crentes, mas desde as piores cheias de Moçambique passou também a ser o centro das águas da chuva da região, com a corrente a atingir até ao limite das janelas do edifício.
"Ano sim, ano sim", durante a época chuvosa, "todas as águas" dos bairros Ferroviário, Polana Caniço, Hulene e Mavalane correm até à igreja, derrubam o muro e interrompem os cultos, deixando todo o terreno e edifícios do espaço submersos por vários dias.
"A água quando chega com força consegue derrubar o nosso muro até entrar aqui dentro da igreja (...). Há situações críticas mesmo em que a água até passa as janelas", queixa-se Carlos Sitoe, apontando o centro social da igreja que está ainda inundado devido às chuvas registadas na última semana em Maputo.
O muro já caiu e foi reconstruído pelo menos quatro vezes, os edifícios pintados outras tantas, além da instalação elétrica que tem de ser reposta quase sempre porque a "cada enchente há roubo" dos cabos: "Juntamo-nos, limpamos e pintamos a igreja", diz Sitoe.
A OAC (Old Apostolic Church, na sigla em inglês) do Ferroviário tornou-se uma referência e lugar a visitar sempre que há inundações na cidade de Maputo, capital de Moçambique, um país que está em plena época chuvosa, que se iniciou em outubro e decorre até abril, com as autoridades a preverem chuvas e ventos fortes.
A igreja está quase isolada - residências à volta abandonaram a zona - entre uma mata densa criada pela chuva, com as paredes marcadas pela água e o terreno cansado, com lama fresca e seca de mais de 20 anos de inundações.
"As cheias de 2000 alcançaram muito sítios que jamais tinham sido alcançados porque foi com muita intensidade. Então, concretamente aqui na nossa capela deriva-se isto aqui a partir de 2001 (...). Depois da continuidade das chuvas, a terra estava saturada e é aí que começamos a sentir que de facto o nosso sítio estava a ser abrangido pelas águas", diz Ricardo Cuinica, de 53 anos.
Para o ancião, que congrega naquela igreja desde 1992, a situação piora a cada ano face às alterações climáticas. Desde que se iniciou, três portões do espaço foram fechados para travar a entrada "em fluxo" das águas e parte da base do muro é feita de betão para evitar novas quedas a cada chuva.
"Nós estamos aqui como resilientes porque esperamos que as águas baixem. A gente faz as limpezas necessárias e a gente dá continuação (...). Realmente a fé ultrapassa tudo. Como pode ver estamos aqui com roupa branca, a situação não é das melhores, mas as pessoas estão cá", aponta Cuinica.
Há tentativas de arranjar outro espaço, mas "está difícil", acrescenta, referindo que, enquanto isso, o município de Maputo instalou um tanque e disponibilizou uma motobomba para escoar as águas, reduzindo o tempo de espera para retoma dos cultos após inundações.
A consulta da previsão meteorológica passou a ser obrigatória na OAC, havendo mensagens de alerta enviadas aos crentes sempre que a igreja fica submersa, que depois se dividem e congregam noutras paróquias próximas.
"Não é porque quando isto fica cheio de água que nós não rezamos, nós rezamos [sim]. Então nos dividimos em comunidades, umas vão para lá e outras para lá e assim é que têm sido os nossos dias de chuva aqui nesta igreja", conta à Lusa Leopoldina Pascoal, 42 anos, membro desde a infância.
Pelo menos a "chuva miúda" de sábado não foi suficiente para alagar a igreja, tanto que os crentes vão chegando, alguns com cadeiras na mão, prevendo não ter mais assentos, os homens de fato e as mulheres vestidas a rigor, com roupas brancas desde o sapato até ao chapéu para atravessar poças de água e lama, já característicos no terreno entre outubro e abril.
"É domingo de comunhão", por isso a roupa branca que transmite "paz", justifica Leopoldina, que não se importa de se sujar porque o "importante é rezar".
"Estou aqui pela fé. Cada um tem a sua fé, quem não tem fé está em casa porque choveu, mas eu estou aqui pela fé", remata a mulher.
Igual a Leopoldina está Celsa Dacalo, 50 anos, para quem "é uma honra" vestir-se de branco, apesar da lama, diz a mulher, lamentando que "um pouco de chuvisco" encha o espaço de água.
"Nós sentimos tanto porque às vezes o programa é de virmos cultar aqui, todos temos que estar aqui, mas depois recebemos mensagens dos pais a dizer que temos de entrar [noutros sítios]", lamenta Celsa Dacalo, transferida há um ano para a igreja do Ferroviário, mas que reza na Velha Apostólica desde que estava na barriga da sua mãe.
Entre jornadas de limpeza, pintura e reposição do sistema elétrico, a igreja é ciclicamente afetada por enchentes, num país em que as perspetivas só pioram, com as autoridades a alertarem que o número de ciclones que atingem Moçambique "vem aumentando na última década", bem como a intensidade dos ventos.
Só entre dezembro e março últimos, na anterior época ciclónica, o país africano foi atingido por três ciclones, incluindo o Chido, o primeiro e mais grave, no final de 2024. Os eventos extremos provocaram naquele país pelo menos 1.016 mortos entre 2019 e 2023, afetando cerca de 4,9 milhões de pessoas, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística.
Quando se vão as chuvas, a vida e os cultos voltam à normalidade na Igreja Velha Apostólica do Ferroviário, enquanto se renova a fé para aguentar a próxima época chuvosa em Moçambique, um país considerado dos mais severamente afetados pelas mudanças climáticas globais, enfrentando ciclicamente cheias e ciclones tropicais.
"Após as águas passarem, temos tido uma tranquilidade que as vezes até esquecemos que estamos num terreno que absorve a água (...). Aqui é onde as águas dessa região toda desaguam", conclui, sorrindo, Ricardo Cuinica, um dos membros mais antigos da Igreja.
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