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Mercado do aborto já mexe

A proposta de referendo sobre a despenalização do aborto foi aprovada ontem, precisamente no mesmo dia em que foi tornado público que a espanhola ‘Los Arcos’ começa a ganhar concorrência na corrida à implantação de uma clínica para o efeito em Portugal.

20 de outubro de 2006 às 00:00

A Direcção-Geral de Saúde já foi contactada por outras clínicas privadas, além da espanhola ‘Los Arcos’, para poderem proceder à interrupção voluntária da gravidez em Portugal, apurou o CM junto do director-geral de Saúde, Francisco George. “Os contactos têm servido, principalmente, para se ilucidarem sobre as normas legais em vigor”, adiantou ainda, sem querer especificar o número de unidades de saúde que procuraram esclarecimento.

Esta nova informação surge no dia em que foi aprovado o projecto de resolução do PS para a realização de um referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gGravidez (IVG) nas primeiras dez semanas, com os votos favoráveis do PS, PSD e BE. No entanto, de acordo com Francisco George, “independentemente dos eventuais resultados de uma referendo”, estes contactos são feitos “às claras”, dado que o aborto “é legal em Portugal desde que dentro das causas que a lei prevê (quando a vida da mãe está em perigo, em caso de má formação do feto ou de violação)”. A Direcção Geral de Saúde, por sua vez, limita-se a “ informar as empresas interessadas sobre os critérios e normas legais em vigor que têm que ser observadas para que uma unidade privada possa ser licenciada”, informou sem querer alargar-se mais sobre o assunto.

Não é novidade a intenção do Ministro da Saúde de permitir que as clínicas privadas possam estabelecer-se, dado que o aborto legal em Portugal não é resolvido em tempo útil no sector público - efectuam-se entre 25 a 30 mil as interrupções voluntárias de gravidez todos os anos.

Nesse sentido, em Novembro de 2005, Correia de Campos reuniu-se com responsáveis da clínica espanhola ‘Los Arcos’. A unidade de saúde do país vizinho deverá inaugurar um centro em Lisboa no início do próximo ano. O encontro que se segue deverá ocorrer com a ‘Marie Stopes Internationel’, fundação britânica que já mostrou também interesse em abrir uma clínica em Lisboa.

Luís Graça, presidente do colégio da especialidade de Ginecologia Obstetrícia da Ordem dos Médicos, não fica surpreendido com estas audiências. “Os nossos hospitais não têm possibilidade de arrecadar com os números legais do aborto”, reforça Luís Graça, segundo o qual também clínicas portuguesas estarão para entrar na corrida. “Obviamente que havendo aprovação por referendo é natural que apareçam clínicas portuguesas interessadas no mercado. Mas agora, como, quando e em que circunstâncias é daquelas coisas que era preciso ter uma bola de cristal para responder”, afirma.

Luís Graça não imagina é o cenário em que uma clínica portuguesa se chega à frente de uma estrangeira. “Acredito que os espanhóis estão no topo da lista, pelos conhecimentos, pela clientela que já têm”,justifica, garantindo não ter quaisquer nomes para avançar em relação a empresas nacionais. “Não faço ideia se já movimentações de médicos e investidores nacionais nesse sentido. Mas caso o aborto seja despenalizado acredito que vai haver muitas”, repete.

De acordo com números oficiais do Ministério da Saúde de 2006, seis mil mulheres são anualmente atendidas nos serviços de saúde pública por complicações com abortos mal realizados. Cerca de mil são consequência de intervenções ilegais. Os outros cinco mil são essencialmente abortos autoprovocados com uso de um medicamento para úlceras gástricas, denominado Cytotec, mas que com efeito secundário causa o aborto. Duarte Vilar, director executivo da Associação para o Planeamento da Família garante que há muitas portuguesas recorrem a ele”, até porque o acesso ao medicamento está ao alcance de todos. “Já se fazem vendas a retalho do medicamento em bairros sociais”, diz.

NELSON DE BRITO ! GINECOLOGISTA

"JÁ ENCONTREI DE TUDO"

Nelson de Brito, ginecologista, trabalhou 20 anos no Hospital de Santo António. “Já encontrei de tudo na minha carreira. Uma rapariga tinha 20 centímetros de intestino de fora, porque lhe furaram o útero. Naturalmente perdeu o bebé, o útero e 20 centímetros de intestino”, relatou, contando que “a mais nova tinha 14 anos”. Concorda com a despenalização, mas diz que actualmente “só engravida quem quer”.

MANUELA GÓIS | PROFESSORA

"FOI UM TERROR"

Aos 55 anos, Manuela Góis, professora em Lisboa, não tem problema em dar a cara e reconhecer que já fez dois abortos. “O primeiro foi antes do 25 de Abril, tinha 21 anos. Tomava a pílula, mas mesmo assim engravidei”, revelou, contando que “foi num andar, na zona da Estefânia, com péssimas condições”. “Colocaram-me uma máscara com éter, mas não adormeci bem, foi um terror. Apesar de tudo, correu bem”, remata.

'MARIA' | PARTEIRA

"O DRAMA DO TERCEIRO FILHO"

‘Maria’, nome fictício, actua no Norte do País, diz que quem a procura “são casais, na casa dos 30, já com dois filhos e que não podem ou não querem ter o terceiro”. “Costumo dizer que é o drama do terceiro filho”, refere, contando que conhece situações em que os abortos são feitos nas piores condições possíveis: “Há mulheres que usam de tudo para provocar a situação e por vezes o trabalho corre mal.”

CARDEAL PELA CAMPANHA DO 'NÃO' EM LUGAR PRÓPRIO

O Cardeal Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, veio ontem esclarecer o papel da Igreja na campanha sobre o aborto que se avizinha com o referendo. Em comunicado, D. José Policarpo afirma que o debate deve ser “sobretudo um período de esclarecimento das consciências” e porque “a proposta de leis liberalizantes da prática do aborto se tornou numa causa partidária” e há o risco de se cair “numa vulgar campanha política”, o caminho é só um: “Todos os membros da Igreja e todos os que defendem a vida são chamados a participar nesse debate esclarecedor das consciências.”

Num mesmo comunicado, D. José Policarpo também deixa um recado: “Compete aos leigos organizar e dinamizar uma campanha, no concreto da sua metodologia”. Em seu entender, o papel dos sacerdotes é a proclamação da “doutrina da Igreja sobre a vida”. Por isso, pede à sua Diocese que saiba marcar “a diferença entre o seu ministério de anunciadores da verdade e as acções de campanha, necessárias e legítimas no seu lugar próprio”.

Mais tarde, D. Carlos Azevedo, secretário e porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa, explicou que a Igreja Católica não entra em campanhas políticas, mas tem o dever de esclarecer a comunidade na defesa do ‘não’, citado pela Rádio Renascença. Um registo diferente do proferido no início da semana.

Por seu turno, o Cardeal Patriarca de Lisboa ainda clarifica, no seu comunicado, o que pretendeu dizer ao aconselhar a abstenção no referendo.

“Foi-me perguntado o que aconselharia a esses que duvidavam. A minha resposta é clara: se não têm coragem de votar ‘não’, que pelo menos se abstenham”, escreve D. José Policarpo no dia em que foi aprovado o referendo no Parlamento. O Cardeal pensava sobretudo “no eleitorado mais jovem” quando fez esta sugestão.

REFERENDO SOBRE O ABORTO ESTÁ AGORA NAS MÃOS DE CAVACO SILVA

MATILDE VOTOU SOZINHA

Matilde Sousa Franco, católica confessa, deputada independente na bancada do PS e viúva do ex-ministro das Finanças Sousa Franco,votou ontem contra o referendo. Justificou-o por objecções de consciência que já transmitiu a José Sócrates. Aos jornalistas, adiantou que não decidiu se integrará a campanha pelo ‘não’ e, na sua declaração, lembrou que não pode “renunciar aos seus valores morais”.

O PS conseguiu fazer aprovar um referendo sobre o aborto à terceira tentativa, contando, com os votos favoráveis do PSD e do BE e com a abstenção do CDS-PP. PCP e Os Verdes votaram contra.

Contas feitas: votaram a favor 177, contra 16, e abstiveram-se 15 deputados. O processo segue, agora, para o Palácio de Belém. E, se Cavaco Silva promulgar o referendo, os portugueseses serão chamados a referendar a despenalização do aborto ainda no mês Janeiro ou em Fevereiro. Num debate curto, e sem grande fôlego, a questão do aborto dominou as várias intervenções, com o CDS-PP a assumir-se como o partido que fará campanha pelo ‘não’. Por terra ficou a proposta de mudar a palavra despenalização.

Marques Guedes, do PSD, acusou, o primeiro-ministro de partidarizar a campanha e Francisco Louçã (BE) apelou ao voto dos cristãos.

4 SEMANAS

Apresentação - Às quatro semanas, é um conjunto de células que pode medir de quatro a seis centímetros. Não chega a pesar um grama.

Método - Em caso de necessidade de recorrer ao aborto pode usar-se o método de sucção, mais conhecido por aspiração do colo do útero.

8 SEMANAS

Apresentação - Notam-se as saliências que serão os braços e pernas. O rosto começa a desenhar-se. Mede 27 a 35 milímetros e pesa 45 gramas.

Método - Além da aspiração, também se pode recorrer à coretagem, também chamada raspagem. No entanto, é um método mais perigoso.

12 SEMANAS

Apresentação - Não se chama embrião mas sim feto. Tem todas as características de um ser humano, mede 7,5 centímetros e pesa 15 gramas.

Método - Nenhum dos anteriores é recomendado. A partir desta altura recorre-se à indução do trabalho abortivo por medicamento.

PARTEIRA (Anónimas, existem por todo o País)

Preços - 300 a 450 euros

Condições - O trabalho é feito sem condições de higiene. Recorre-se aos mais variados produtos para provocar o aborto, desde salsa, paus de vide, agulhas, detergentes ou folhas de loureiro.

Perigos - As infecções são bastante frequentes, podendo provocar o coma e, em casos mais graves, a morte. O problema mais recorrente é deixar restos do embrião no útero da mulher.

CLÍNICAS (Clandestinas, distribuídas nos centros urbanos)

Preços - 500 a 600 euros

Condições - Estas clínicas normalmente funcionam em andares, muitos deles situados em zonas residenciais de população média/alta. Apresentam boas condições e pessoal especializado.

Perigos - As complicações são as inerentes a intervenções do género. Normalmente são clínicas seguras, com pessoal especializado que presta acompanhamento pré e pós-cirúrgico.

ESPANHA

Preços - 325 a 450 euros

Condições - Funciona em Espanha e é a clínica do país vizinho a que mais mulheres portuguesas recorrem: Duas mil por ano. As condições de higiene são boas e os abortos são feitos por médicos.

Perigos - Nos casos em que as mulheres são saudáveis e em que à partida não surgem complicações durante a intervenção não há complicações a registar.

PORTUGAL: Ilegal

ALEMANHA: Legal

ÁUSTRIA: Legal

BÉLGICA: Legal

DINAMARCA: Legal

ESPANHA: Legal

FINLÂNDIA: Legal

FRANÇA: Legal

GRÉCIA: Legal

HOLANDA: Legal

IRLANDA: Ilegal

ITÁLIA: Legal

LUXEMBURGO: Legal

REINO UNIDO: Legal

SUÉCIA: Legal

ZITA SEABRA, DEPUTADA DO PSD

Optei por não falar [intervir na discussão de ontem no Parlamento], foi a minha escolha, desde a polémica [manchete do semanário ‘Expresso’].

ODETE SANTOS, DEPUTADA DO PCP

As mulheres perante o Partido Socialista, têm fraco poder negocial. Foram sujeitas a um referendo (...). Sentaram-se entretanto no banco dos réus e sofreram devassas.

HELOÍSA APOLÓNIA, DEPUTADA 'OS VERDES'

Vou-me pôr na pele dos socialistas sobre a despenalização: tem garantia de todos os ministros que estes se vão envolver nesta determinação do programa do Governo?

FRANCISCO LOUÇÃ, DIRIGENTE DO BE

Faz-se a acusação e depois levanta-se o processo, ou julga-se e não se aplica a pena, ou aplica-se uma pena de trabalhos de jardinagem?

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