Balsemão: Dois borrões na tela do ator improvável

Biografia de homem marcante na comunicação social e política escrita por Joaquim Vieira traz revelações desagradáveis

03 de setembro de 2017 às 15:00
Pinto Balsemão Foto: Pedro Elias
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Pinto Balsemão reagiu bem quando Joaquim Vieira lhe comunicou que iria escrever a sua biografia. "Ele foi simpático, mas respondeu que recebia muitos contactos de autores e editores e rejeitava falar com todos, pois tinha o projeto de escrever as memórias", conta o jornalista, autor de biografias de Mário Soares e Álvaro Cunhal, que dois anos após esse contacto lança ‘Francisco Pinto Balsemão - O Patrão dos Media que foi Primeiro-Ministro’.

O desafio para escrever sobre a vida de alguém que foi seu patrão durante 15 anos, até que se demitiu de diretor-adjunto do ‘Expresso’ na sequência de um acrescento numa notícia sobre Joe Berardo, partiu da editora Planeta. "Não dei resposta imediata, mas também não demorei mais do que uns dias", recorda Joaquim Vieira, que assumiu ser "parte interessada" ao mesmo tempo que garantiu isenção. Seguiram-se anos de trabalho para escrever um livro de 572 páginas que arranca como uma citação de Charles Foster Kane ("Acho que seria divertido eu dirigir um jornal"), o magnata da imprensa com ambições políticas criado por Orson Welles no filme ‘Citizen Kane - O Mundo a Seus Pés’, antes de fazer uma declaração de interesses aos leitores e de informar que nenhum familiar do biografado aceitou entrevistas. "Balsemão teve, como se verá, uma vida íntima rocambolesca, e as conversas sobre o tema seriam demasiado incómodas para partilhar com estranhos e perguntarem coisas sobre as quais é melhor não responder", escreveu o jornalista na introdução.

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Apesar de ser do conhecimento geral que o criador do ‘Expresso’ e da SIC, fundador do PSD e ex-primeiro-ministro teve uma vida amorosa movimentada, com um primeiro casamento marcado por recíprocas infidelidades (a mulher juntou-se a Carlos Cruz), um descendente nascido da relação extraconjugal com a filha de um ex-ministro de Salazar e um segundo matrimónio que dura até hoje, mas não pôs fim à atração de Balsemão por outras mulheres, a biografia agora publicada traz revelações que o empresário que fez 80 anos na sexta-feira passada não gostará de ler. "Quando comecei, estava a pensar escrever uma biografia mais favorável, mas com a pesquisa encontrei coisas que não eram assim tão agradáveis. As biografias são telas em branco e nunca sabemos o que vamos encontrar", diz Joaquim Vieira, acreditando que o biografado "vai sentir-se obrigado a responder a algumas questões que este livro suscita" nas memórias que chegou a temer serem publicadas antes.

Entre essas revelações, Vieira destaca "aspetos um bocado sórdidos" no penoso processo de reconhecimento do filho Francisco Maria. "Choca com a imagem que temos de Balsemão", refere o autor da biografia, que dedica muitas páginas à forma como o então deputado da Assembleia Nacional, desafiado por Marcello Caetano a integrar a ‘Ala Liberal’, visitava Isabel Maria Supico Pinto, identificando-se como "Carlos Rodrigues" à empregada doméstica que mais tarde, no âmbito do inquérito judicial de apuramento de paternidade, "não teve dúvidas em identificá-lo" ao ver a sua fotografia. No mesmo processo, Balsemão arrolou testemunhas abonatórias com o peso de Sá Carneiro, Mota Amaral, Kaúlza de Arriaga ou Fernando Namora. E chamou a tribunal três homens com os quais a amante teria relações sexuais.

Francisco Maria nasceu a 28 de outubro de 1970 e só conheceu o pai no final da adolescência, mas podia nunca ter vindo ao Mundo. Joaquim Vieira cita uma carta da mãe da criança a Supico Pinto, que cortara relações com a filha ao sabê-la grávida de um homem casado. "O Francisco insistiu sempre em que eu fizesse um aborto, mas eu nunca quis fazer", escreveu Isabel, acrescentando que "já depois de a criança nascer me telefonou pedindo-me que não chamasse Francisco ao bebé e pedindo-me ainda que eu negasse que ele era o pai da criança, se alguém me perguntasse, isto com promessas de proteger encapotadamente a criança".

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Só a 28 de janeiro de 1975 houve sentença no Tribunal Cível de Lisboa, reconhecendo o menino de quatro anos como "filho ilegítimo de Francisco José Pereira Pinto Balsemão para todos os efeitos legais". Nada que tenha impedido o então diretor do ‘Expresso’ de apelar para a Relação. Nova derrota, a 5 de março de 1976, deu origem ao recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, também infrutífero. Mesmo assim, não incluiu o terceiro filho na biografia oficiosa publicada quando era primeiro-ministro, protelando a perfilhação para o final dos anos 80. E, segundo fonte ouvida por Vieira, por insistência do amigo Luiz Vasconcellos, que "convenceu a Tita [segunda mulher] a convencer o Balsemão".

AMIGO COM NEGÓCIOS À PARTE

"Participava no conselho de administração só para poder dizer que lá tinha estado. Eu estava com medo que amanhã viessem dizer que eu era um testa-de-ferro dos estrangeiros", disse Correia de Sá ao autor da biografia de Balsemão. Sucedeu-lhe bem pior: a revista ‘Fortuna’ incluiu-o na lista dos milionários portugueses de 1998 e a ex-mulher belga aproveitou para exigir a parte que lhe correspondia. Teve, por isso, que entregar "uma fortuna deduzida de uma verba que não lhe pertencia". Os seus negócios ressentiram-se, tal como a amizade de décadas com o criador da SIC. "A partir de 2006, quando a minha empresa faliu, é que deixei de conviver com ele, pois o golfe tornara-se demasiado caro e ele nunca convidava para casa dele", comentou.

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"Não há vidas perfeitas. Mas pesadas todas as coisas, os contributos dele para a sociedade em que vivemos sobrelevam os aspetos menos positivos que se possam encontrar", avalia o biógrafo, ao ser-lhe perguntado pela Domingo se lhe merece mais aplausos ou apupos o homem a quem chama "ator improvável".

EDUCAÇÃO 'POPULAR'

Foi, no entanto, outro título da imprensa a definir a sua vida. Secretário de redação do ‘Diário Popular’, controlado pelo tio Francisco e no qual herdara a participação minoritária do pai, foi forjado no vespertino. "Abriu-lhe portas para outro universo", afirma Joaquim Vieira, destacando "a luta diária com a censura" e o "convívio com jornalistas dos meios da oposição" como influências que asseguraram que Balsemão "não seria apenas um conservador a gerir a sua fortuna". Até porque "foi o poder que tinha enquanto responsável na prática pelo ‘Diário Popular’" que impulsionou Caetano a desafiá-lo para a política.

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Convencido de que "as circunstâncias favoreceram Balsemão" várias vezes, o biógrafo sublinha que, apesar de a criação do ‘Expresso’ ter estreitado laços com Sá Carneiro, ex-colega de Ala Liberal com quem fundou o então Partido Popular Democrático (PPD), eles estavam longe de serem tão próximos quanto se pensava. "No gabinete de Balsemão no ‘Expresso’ as pessoas ouviam discussões bastante duras entre os dois", diz Vieira, que recorda no livro algo pouco conhecido: o sucessor do líder morto em Camarate fora um dos primeiros subscritores do manifesto ‘Opções Inadiáveis’, que agrupava descontentes com o "sá-carneirismo". "Muita gente não sabe disso dentro do próprio PSD."

Certo é que Balsemão, de quem se contava ser liberal por fraqueza e não por convicção - Vieira diz que "o que começou por ser fraqueza acabou por tornar-se convicção" -, revelando-se incapaz de ser autoritário e reticente a ruturas na vida empresarial e política, só foi primeiro-ministro por força do destino. E alcançou a revisão constitucional que pôs fim à tutela militar da democracia portuguesa, apesar de os seus governos serem marcados pela instabilidade. "Não era fácil calçar os sapatos de Sá Carneiro. Teve coragem", diz o biógrafo.

UM PAI PARA SER MORTO

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Chegado aos 80 anos, numa altura em que anunciou a necessidade de vender ou fechar publicações como a ‘Visão’ e a ‘Caras’, Balsemão atravessa um momento particularmente difícil. "Arrisca-se a ficar apenas com o ‘Expresso’ e a própria SIC está em risco", diz quem passou dois anos a pesquisar a vida de um político e empresário que nunca deixou de ser jornalista (tem a carteira profissional nº 621). "Tem um afeto pelo ‘Expresso’ absolutamente fora de série", reconhece.

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