O ‘time’ português
O Vasco da Gama, um clube do Rio de Janeiro, foi fundado por portugueses há 118 anos
Um traço de união entre o Brasil e Portugal". Este é um excerto do hino do clube Vasco da Gama, que resume a ligação entre os dois países no futebol. Recuamos a 1898 para recordar esta história. Um grupo de 60 emigrantes portugueses, no Rio de Janeiro, resolveu fundar um clube de remo. Rapidamente se estendeu a outras modalidades, nomeadamente ao futebol.
Passado um século, no estádio de São Januário respira-se Portugal em todos os cantos. "O Vasco da Gama é uma das principais criações de Portugal no Mundo", sublinha Luís Fernandes, presidente do Conselho deliberativo do clube - ou ‘time’, como dizem no Brasil. Atualmente, tem quase 20 milhões de adeptos, praticamente o dobro da população portuguesa. Os torcedores, como se diz no Brasil, são conhecidos como os ‘bacalhaus’. Foram os adversários que deram esta alcunha, mas o clube gostou da ideia e transformou-a na mascote.
Luiz Ceará é um dos jornalistas desportivos mais conhecidos do Brasil. Há 45 anos que trabalha de perto com o futebol e garante que não há ligação mais forte a Portugal na cidade maravilhosa. "O Vasco da Gama é Portugal dentro do Brasil. Representa não só a comunidade portuguesa, como toda a cultura do país. É um filho lusitano muito amado. No Rio de Janeiro, o clube tem adversários: o Flamengo, o Fluminense... mas, no resto do país, é amado por essa forte ligação a Portugal. Olhamos para este clube e vemos de onde viemos", refere.
Negros e pobres
Comemoravam-se os 400 anos da descoberta do caminho marítimo para a Índia, quando o grupo de emigrantes portugueses resolveu fundar o clube. Escolher um nome foi fácil: Vasco da Gama, em memória do navegador português.
O preto do equipamento e o emblema carioca não foram escolhidos ao acaso: a cor simboliza os mares obscuros que os navegadores percorreram. E a cruz de cristo é uma referência ao símbolo utilizado para abençoar as caravelas portuguesas na altura dos descobrimentos. "Orgulhamo-nos muito da contribuição dos emigrantes portugueses no século XIX. Foram eles que tornaram esta história possível. E foram eles que levaram a figura de Vasco da Gama a um outro patamar - democratizaram a prática do futebol no Brasil", diz o presidente Luís Fernandes.
Foi o Vasco da Gama que abriu o futebol aos jogadores negros e pobres. Até aí, o futebol era um desporto de elites. Em resposta a esta tentativa de quebrar barreiras da discriminação social e racial, os outros clubes cariocas reuniram-se para expulsar o emblema da liga.
Juntar brancos e negros no plantel valeu a expulsão da competição. Para regressar aos campeonatos, o Vasco da Gama precisaria de ter um estádio próprio. Em resposta, e com o dinheiro dos emigrantes portugueses, foi construído o estádio de São Januário, em 1927. O arquiteto português Ricardo Severo foi nomeado responsável pelo projeto. ‘O Imparcial’ deu conta do início das obras: "O stadium do Club de Regatas Vasco da Gama – Será hoje lançada a pedra fundamental".
"Com negros e pobres, o Vasco da Gama trouxe o futebol para o povo. E nada era possível sem o dinheiro dos portugueses. Mas esses emigrantes também puseram as mãos à obra: pegaram nos tijolos, amassaram o cimento... Tudo isto construído pelas mãos portuguesas", recorda o jornalista Luíz Ceará, a propósito da empreitada que construiu o estádio de São Januário, que se tornou no maior da América do Sul e, também, palco de manifestações cívicas depois da revolução de 1930. Na casa do Vasco foram realizados eventos políticos, como o comício de 1º de maio, no qual o presidente Getúlio Vargas anunciou a consolidação das Leis do Trabalho.
Até à construção do Maracanã, em 1950, o estádio dos portugueses foi o maior do Rio de Janeiro, capital da República na altura.
As ligações entre os ‘vascaínos’ e Portugal estão um pouco por toda a parte, até no comando técnico. O atual treinador, Jorginho, é neto de portugueses. "Treinar o Vasco da Gama faz-me sentir em casa. Para a minha família é um enorme orgulho, sempre quiseram que escolhesse este clube pelas suas raízes. Agora até estou a tentar tirar o passaporte português. E por aqui tudo respira Portugal. Até quando temos que almoçar, vamos a um restaurante português aqui perto do estádio. Comemos sempre bacalhau e há sempre os docinhos, como o pastel de belém, para a sobremesa. É um orgulho poder treinar um clube com tanta história", confessa o treinador de 52 anos.
A Portuguesa
Nas bancadas, em dias de jogo, há sempre muitos emigrantes a torcer pelo clube. "A maioria dos portugueses que vivem no Rio de Janeiro são adeptos do Vasco da Gama e o clube também tem dirigentes luso-descendentes. Nas reuniões do Conselho Deliberativo, ouve-se muito o sotaque português", sublinha o presidente do Conselho Deliberativo, Luís Fernandes.
E o pontapé de saída dessas reuniões é sempre dado com A Portuguesa, canção composta em 1890, com letra de Henrique Lopes de Mendonça e música de Alfredo Keil, adotada depois como hino nacional de Portugal. Só depois se ouve o hino do Brasil e, após isso, o do clube. Tradições que se mantêm acesas para não esquecer as origens.
Portugal deu a conhecer o Brasil ao Mundo. E no futebol brasileiro, um dos mais competitivos do planeta, dá-se a conhecer um pouco da história de Portugal. Um remate certeiro dos emigrantes no Rio de Janeiro, que levou à conquista de 4 campeonatos brasileiros, 24 títulos do campeonato carioca, 3 de campeão sul americano e ainda 1 copa do Brasil.
O brasileiro João Havelange - recentemente desaparecido já com 100 anos, que esteve à frente da FIFA durante 24 anos, de 1974 a 1998, quando deu lugar a Joseph Blatter - iniciou a carreira como dirigente precisamente no clube dos portugueses, o Vasco da Gama, assumindo depois o cargo de presidente da Federação Paulista de Natação, no final da década de 40.
No dia 20 de maio 2007, o ponta de lança Romário marcou no estádio o seu milésimo golo, na partida entre Vasco da Gama e Sport Recife. Uma estátua, dentro de São Januário, foi erguida para homenagear o jogador brasileiro.
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