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A guerra dos portos

Têm fama de duros e dura tem sido a luta. Os estivadores prometem continuar as greves.

11 de novembro de 2012 às 15:00

Os camiões fazem uma fila de mais de um quilómetro à porta do Terminal Multiusos do Beato, em Lisboa. Faltam poucos minutos para as cinco da tarde, hora em que os estivadores começam o turno. Em tempos de greve, o terminal funciona apenas durante oito horas por dia, e os camionistas querem deixar os contentores que carregam rapidamente. Em poucos minutos, o cais mergulha no frenesim. Duas gruas descarregam alumínio e açúcar de dois navios, os empilhadores retiram os contentores dos camiões, os monta-cargas circulam entre o cais e os armazéns. O trabalho é mecanizado – estamos longe da velha imagem do estivador a carregar fardos –, mas a exigência física mantém-se. Um navio só deixa o cais quando o último grão for varrido a pá e vassoura dos porões. Os cerca de 20 estivadores não têm mãos a medir .

Bruno Gama, 32 anos, manobra um empilhador porta-contentores. É um trabalho de perícia; num cais atolado de pessoas e máquinas, arrumar a carga certa no sítio certo sem que a gigantesca máquina acerte em ninguém é tarefa que exige concentração. "Quando há um acidente, é sempre grave. São toneladas a cair, se houver um azar, resulta em mortes ou amputações", conta o estivador, que já apanhou uns quantos sustos.

Bruno entrou na estiva há dez anos. É efectivo da Associação Empresa de Trabalho Portuário de Lisboa (AETPL), que serve os sete terminais do porto de Lisboa, onde há cerca de 300 estivadores efectivos . O Terminal do Beato tem dez no quadro permanente. Quando são precisos mais trabalhadores, as empresas pedem à AETPL que envie mais mão-de-obra. Além dos efectivos, a AETPL conta com uma bolsa de cerca de 60 estivadores eventuais, que só recebem quando são chamados para um dos terminais.

O porto de Lisboa, tal como os da Figueira da Foz, Setúbal e Aveiro, trabalha neste sistema desde 1993, quando o governo de Cavaco Silva aprovou a lei que regula o trabalho portuário.

Em Agosto, o actual executivo aprovou em Conselho de Ministros uma proposta de lei que muda as regras. A legislação ainda está a ser discutida na Assembleia da República, mas a guerra começou no Verão. João Alcácer, coordenador dos estivadores do Beato e membro da direcção do sindicato, que está em greve desde Setembro, explica porquê: "A nova lei permite que todas as funções que não tenham que ver com o embarque ou desembarque da carga dos navios possa ser feito por outros trabalhadores que não os estivadores. Esse trabalho representa cerca de 50% da nossa actividade. Em Lisboa há 300 estivadores, obviamente que, com esta lei, muitos deles vão perder o emprego. Estamos a lutar pelos nossos postos de trabalho."

O sindicalista aponta os riscos da mudança: "Vamos ter precários a trabalhar à hora nos portos, em condições de exploração e sem a formação profissional dos estivadores". E por isso a greve foi prolongada até ao final de Novembro. Para já. "Enquanto o Governo não se quiser sentar connosco para discutir a lei, coisa que nunca fez, vamos continuar a luta."

A posição do Sindicato dos Estivadores Trabalhadores do Tráfego e Conferentes Marítimos do Centro e Sul de Portugal não é partilhada pelos colegas do Norte e do Sul. Em Leixões e em Sines, os portos continuam a laborar e têm até recebido mais carga por via da greve dos terminais de Lisboa, Setúbal, Aveiro e Figueira da Foz. "Em Leixões há muito tempo que reduziram o número de estivadores. Houve despedimentos e indemnizações, e ficaram cerca de 80. A nova lei não os afecta porque eles já têm precários a trabalhar lá há muito tempo. Em Sines, as relações dos estivadores com os vários sindicatos e terminais são muito diferentes", explica João Alcácer.

PREJUÍZO DE MILHÕES

O sindicalista sabe que a greve tem custos gigantescos. Para o porto, para o País e para os próprios estivadores. "Este navio aponta para o ‘Esperance Bay’, que descarrega açúcar – poderia ter sido descarregado em duas semanas e vai ficar aqui um mês. Sabemos que esta luta tem custos. Mas veja-se, nós estamos a trabalhar oito horas por dia, 40 horas por semana. A diferença é que só fazemos um turno diário [existem três] e deixámos de fazer horas extraordinárias. O que demonstra que há muito trabalho, e que podiam ser contratados mais estivadores."

Sebastião Figueiredo, administrador do Terminal do Beato, está encurralado entre várias frentes. Diz que até compreende as razões dos estivadores, mas é ele que atende os telefonemas irados dos clientes que ameaçam nunca mais voltar a Lisboa. "Estamos a levar com uma greve porque o Governo não se quer sentar com os estivadores. Se toda a gente aceitasse a nova lei, seria óptimo para nós, mas o Governo já sabia à partida que ia contar com a contestação. Não percebemos por isso esta forma de introduzir uma mudança tão importante."

Alexandre Delgado, presidente da FESMARPOR, federação que reúne vários sindicatos marítimos e portuários – incluindo o que está em greve – defende que a nova legislação até pode trazer mais empregos. "A limitação de horas extraordinárias vai levar à contratação de mais estivadores para operarem nos navios. Faz sentido que haja mais profissionais no porto."

António Belmar da Costa dirige a AGEPOR, Associação dos Agentes de Navegação de Portugal. Não aceita os motivos dos estivadores para uma greve que, diz, "está a paralisar a economia do País". "Não compreendo porque é que para alguns estivadores existem problemas e para outros não. A nova lei diz que podem não ser estivadores a fazer de porteiros ou de camionistas dentro dos portos, e não se entende porque é que isso é um problema. Leixões e Sines movimentam 60% da carga que entra e sai do País e não pensam da mesma maneira do que o sindicato de Lisboa. Se a greve continua, os navios vão embora e aí sim, ficam em risco os postos de trabalho dos estivadores."

A Domingo contactou uma das maiores empresas de transporte marítimo internacionais que operam em Lisboa e ouviu preocupações semelhantes. Com um exemplo prático – se cada dia de operação de um navio custa dez mil dólares (7,8 mil euros), um atraso de dez dias na operação portuária custa 78 mil euros. A este custo, acresce o gasto suplementar em combustível, porque os atrasos obrigam os navios a navegarem a velocidades maiores. "Há clientes que nos dizem que nunca mais vão operar em Lisboa", ouviu a Domingo de um responsável de uma transportadora.

João Alcácer não é indiferente a estas preocupações. "Sabemos que esta é a pior altura para fazer greve, e até admito que possamos a estar a dar um tiro nos pés. Mas não fomos nós que criámos este conflito. O Governo é que se recusa sequer a receber-nos, depois de ter feito um acordo com um sindicato [o de Leixões] que representa menos de 20% da classe. Não estamos a lutar por melhores salários, queremos apenas garantir que não vamos perder os nossos postos de trabalho, e é por isso que a nossa luta é justa."

O QUE A LEI QUER MUDAR

No fundo, a nova lei do trabalho portuário pode resumir-se a uma palavra: dinheiro. A redução de custos foi aliás, um dos principais argumentos que o Governo usou para justificar as alterações. De facto, os estivadores recebem ordenados bem acima da média nacional (ver caixa), e os operadores querem deixar de ser obrigados a pagar uma tabela salarial que existe há quase 20 anos e que consideram excessiva. A nova legislação dá--lhes essa oportunidade e consagra na lei situações como a que se verifica em Leixões, onde há vários anos trabalhadores não portuários operam no cais.

Sebastião Figueiredo, administrador do Terminal do Beato – que regista perdas de 23% nas vendas desde o início da greve – resume o que está em causa. "Do ponto de vista das empresas, a nova lei faz sentido. Seria positivo podermos escolher trabalhadores e equipas para introduzirmos diferentes métodos de trabalho nos portos, até porque a experiência que temos em armazéns fora do espaço portuário mostra que a produtividade é maior. Seria importante termos trabalhadores mais baratos. Mas não compreendemos a forma como se quer introduzir as mudanças. Os estivadores não foram ouvidos neste processo, faltou ao Governo bom senso e ponderação. Os operadores foram arrastados para o conflito."

INÍCIO SEM CONTRATO

Tiago Lousa, de 27 anos, é estivador há seis. Há três meses chegou ao estatuto de estagiário dos quadros da AETPL, a empresa que encaminha os estivadores para os sete terminais concessionados do porto de Lisboa, conforme as solicitações que lhe chegam. "Até ser estagiário, nunca tive um ordenado fixo. Só ganhava quando era chamado para trabalhar, e foram muitos os meses em que ganhei menos de 200 euros". Foi para a estiva porque tinha um irmão na profissão, mas hoje não vê futuro nos cais de Lisboa. "Não tenho filhos porque nunca tive um ordenado que os pudesse sustentar", explica.

Tiago está agora na VIII categoria da tabela salarial, o escalão mais baixo. O ordenado base mais subsídio de turno dão-lhe uma remuneração fixa de 1046 euros, antes de impostos. Tiago diz que há meses em que consegue levar 1200 euros limpos para casa, "mas para isso tenho de fazer pelo menos um mês e meio de trabalho, com as horas extraordinárias". Os estivadores sobem de categoria salarial de quatro em quatro anos. Para atingir o topo da carreira são precisos pelo menos 17 anos, mas nem todos terão vagas de superintendentes ou coordenadores, o topo da carreira. João Valério, de 34 anos, tem nove anos de experiência e está na categoria VI: "Consigo chegar aos 1700 líquidos de ordenado, mas saem-me do corpo. Dizem que só queremos fazer horas extraordinárias, mas eu gostava era de ter mais tempo para estar com os meus dois filhos."

João Alcácer também não discorda do limite máximo de 250 horas anuais de trabalho extra previsto na nova lei: "Se fazemos tantas horas, é porque há trabalho para isso. Precisamos de mais gente. Ninguém gosta de fazer turnos de 48 ou mesmo 72 horas consecutivas, como tantas vezes acontece."

Ao comando de uma grua gigante, José António Sá retira do navio ‘Esperance Bay’ açúcar oriundo de Moçambique para os camiões que aguardam no cais. É um trabalho de precisão e muita repetição de manobras, que aos 60 anos já lhe custam. "Tenho 37 anos de estiva, não sei fazer outra coisa", diz.

QUANTO GANHA UM ESTIVADOR

Os cerca de 300 estivadores efectivos do porto de Lisboa – serão cerca de 1100 no País – regem-se pela tabela salarial de 2010. Existem oito categorias profissionais, que vão desde o estagiário ao superintendente, o escalão mais elevado. Um estagiário tem contrato mensal fixo com remuneração base de 884,99 € brutos, a que acresce um subsídio bruto de 161,53 €, ou seja, o estivador parte de um salário bruto de 1046,72€.

O trabalho suplementar está previsto nas tabelas salariais. Com as horas extraordinárias, um estagiário pode chegar aos 1200 euros líquidos. Trabalhadores do meio da tabela andarão entre os 1400 a 1800 euros líquidos. Segundo as contas do Terminal do Beato, a remuneração média dos três níveis mais elevados do escalão são estas: superintendente – 4062 € líquidos mensais; coordenador – 3226 €; Base tipo A (os mais antigos na profissão, anteriores à lei de 1993) – 2641 €.

PREJUÍZO

A Associação Comercial de Lisboa diz que a greve já custou mais de 1000 milhões de euros à economia.

DIÁLOGO

Sérgio Silva Monteiro, secretário de Estado dos Transportes, diz que as greves impedem o diálogo.

CARROS

A AutoEuropa, a maior empresa exportadora portuguesa, está a ter dificuldades em embarcar os carros que fabrica.

MANIFS

Além das greves, os estivadores têm participado em quase todos os protestos de rua que têm acontecido nos últimos meses.

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