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Ana Hatherly: o eros frenético

Da exaltação da lascívia à vanguarda da poesia e das artes visuais

02 de fevereiro de 2020 às 06:30

Ana Maria Hatherly (1929-2015) foi uma poetisa, ensaísta, artista plástica e professora universitária. A sua obra realça a exaltação erótica – ‘Eros Frenético’ (1968) é o título de um dos seus livros –, numa viagem"àszonassubterrâneasdoinconsciente, do sonho, do medo, da lascívia, do misterioso mundo dos pressentimentos e dos desejos inconfessáveis", como notou Natália Correia.

Aprimeirapaixãodestaportuensefoia música, mas uma doença não a deixou prosseguir essa vocação. Em 1958 publicou o primeiro livro de poesia, ‘Um Ritmo Perdido’. Os estudos sobre a literatura barroca conduziram-naàpoesiaconcreta,datandode 1959 o seu primeiro poema visual: ‘Poeta arca seta’.

Não largou mais o experimentalismo, ligando a poesia, e as artes plásticas. Em 1977 participou com a instalação intitulada ‘Poema d’Entro’ na ‘Alternativa Zero’, uma exposição que ‘abanou’ o meio artístico português.

Entre 1978 e 1979 realizou para a RTP2 o programa ‘Obrigatório Não Ver’ (em 2009 publicou um livro com o mesmo título, editado pela Quimera). Ao mesmo tempo foi desenvolvendo uma filosofia que coloca num lugar central a figura feminina projetando o desejo e o erotismo em livros  como‘ADamaeoCavaleiro’(1960),‘O Mestre’ (1963), ‘Volúpsia’ (1994), ‘Um Calculador de Improbabilidades’ (2001) ou ‘Fibrilações’ (2005). Fundou o curso de Estudos Portugueses na Universidade Nova de Lisboa, onde foi professora catedrática.

Do livro ‘O Mestre’, ed. Quimera

"O sexo é o caminho do nexo. O sexo é a mola que une e afasta. O sexo é a matriz da paixão. O sexo é a matriz da não-paixão. O sexo é a matriz da vida da morte. O sexo é a matriz da criação. O sexo é a matriz da destruição. O sexo é a matriz da ascese. O sexo é a matriz da discórdia. O sexo é a matriz da Alegria. O sexo é a matriz do enojo. O sexo é a matriz. É isso. O sexo é o que me afasta de ti e te aproxima de mim. O sexo é o que me leva para ti e te afasta de mim."

Do livro ‘Um Calculador de

Improbabilidades’, ed. Quimera

"Príncipe:

Era de noite quando eu bati à tua porta

e na escuridão da tua casa tu vieste abrir

e não me conheceste.

Era de noite

são mil e umas

as noites em que bato à tua porta

e tu vens abrir

não me reconheces

porque eu jamais bato à tua porta.

Contudo

quando eu batia à tua porta

e tu vieste abrir

os teus olhos de repente

viram-me pela primeira vez

como sempre de cada vez é a primeira

a derradeira

instância do momento de eu surgir

e tu veres-me.

(...) Mas era de noite

e por isso

tu soubeste que era eu

e vieste abrir-te

na escuridão da tua casa.

Ah era de noite

e de súbito tudo era apenas

lábios pálpebras intumescências

cobrindo o corpo de flutuantes volteios

de palpitações trémulas adejando pelo rosto.

Beijava os teus olhos por dentro

beijava os teus olhos pensados

beijava-te pensando

e estendia a mão sobre o meu pensamento

corria para ti

minha praia jamais alcançada

impossibilidade desejada

de apenas poder pensar-te.

São mil e umas

as noites em que não bato à tua porta

e vens abrir-me"

Do livro ‘Antologia de Poesia

Portuguesa Erótica e Satírica’, org. Natália Correia, ed. Ponto de Fuga

"Ela vem

quando eu cerro as pálpebras pesadas

e apoio a cabeça na escuridão do desejado sono

Vem muito branca muito lenta

Fita-me calada

e muito direita

começa desatando seus cabelos negros

Abre a boca num riso que eu não oiço

deixa cair o seu vestido todo

E enquanto eu olho fascinada o seu ventre coroado de negro

seis homens pequenos e muito encarquilhados

agarram suas seis tetas

e sugam-lhes os bicos

rosados e rijos de prazer"

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