Vindima noturna, castas com ciclos mais longos e até painéis fotovoltaicos podem ajudar a vencer a luta contra as alterações climáticas.
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A noite está fria quando a equipa de vindimadores se reúne no centro de Vila de Frades, a capital alentejana dos vinhos de talha. São 4h00 da manhã e aquela dezena de trabalhadores está pronta para a segunda noite de apanha de cachos à luz das lanternas, único recurso numa noite em que a lua minguante não ajuda ao trabalho. Maria Rita, de 69 anos e já com muitas dezenas de vindimas, recebe ajuda de um jovem do grupo para ligar a lanterna enquanto lança algumas tiradas típicas do humor alentejano, indispensável em qualquer vindima.
Os tempos mudaram e as vindimas também, em particular no Alentejo, uma região particularmente castigada pelas mais frequentes ondas de calor. Com as temperaturas a subir todos os anos e uma vindima cada vez mais precoce, já a coincidir com os dias quentes de agosto, Teresa Caeiro, rosto da empresa Gerações da Talha, já tinha ponderado avançar com a vindima noturna nas suas vinhas, mas tinha receio da maneira como essa alteração poderia ser recebida. Este ano instalaram luzes novas nos tratores, compraram lanternas de cabeça para os trabalhadores e avançaram com uma mudança que parecia enorme numa comunidade carregada de tradição, mas que, no fim de contas, acabou por ser muito bem recebida. Segundo a enóloga, “todos adoraram a mudança para a noite, pela novidade e pela possibilidade de trabalhar com temperaturas mais baixas”. Só Maria Rita partilhou um desabafo ao fim de três noites de vindima: “Estava a ter dificuldade em dormir de dia, com um bebé na porta ao lado.”
Ao contrário das cubas de inox, as ancestrais talhas de barro não têm sistemas de refrigeração, o que dá ainda mais relevância à temperatura das uvas. Este ano, diz-nos Teresa Caeiro, “a vindima noturna permitiu aumentar quase para o dobro o período de maceração das uvas antes do início da fermentação”, o que vai potenciar vinhos com maior frescura e expressão aromática.
45 ºC em junho
Seguindo para sul a partir de Vila de Frades encontramos a Herdade da Mingorra, localizada numa das zonas mais quentes do País – Albernoa, distrito de Beja – onde não é possível vencer o calor que castiga as videiras, amendoeiras e oliveiras que ocupam boa parte dos 1400 hectares de terreno. A adaptação é o único caminho para garantir os vinhos frescos e aromáticos que boa parte do mercado pede, o oposto dos vinhos intensos, com elevado teor alcoólico que eram produzidos há umas dezenas de anos, na altura em que os enólogos podiam ir de férias em agosto, antes de regressarem para iniciar a vindima no tradicional mês de setembro.
Nos últimos anos, o padrão de aumento de temperatura “é mais intenso, com temperaturas elevadas e ondas de calor cada vez mais frequentes, como aconteceu este ano, com o registo de um dia de 45 C em junho, algo impensável há uns anos”. A descrição é de Pedro Hipólito, enólogo da Mingorra, muito habituado a lidar com a canícula de Beja e Serpa. Guia-nos pelas estratégias de adaptação aplicadas na herdade, com a vindima mecânica noturna a desempenhar um papel central. Numa região em que a mão de obra é escassa, a presença de uma máquina de última geração permite a colheita das uvas no momento ideal de maturação e a temperaturas muito mais baixas. Na madrugada de 22 de agosto, por exemplo, a vindima foi feita com uns suaves 22 graus, metade dos 44 C que foram atingidos umas horas mais tarde.
Fazer vinho com as atuais mudanças climáticas passa também pela procura de castas com um ciclo mais longo, em que a colheita é “empurrada” para os dias mais frescos de setembro, permitindo manter a frescura e acidez dos bagos e obter um teor alcoólico mais baixo. A gestão da água é central neste processo, assim como a orientação da vinha, que foge cada vez mais do padrão sul e poente dominante até há poucos anos. Os ensaios feitos com redes de ensombramento na vinha também apresentam resultados promissores, já que permitem reduzir a temperatura ao mesmo tempo que mantêm alguma humidade e protegem os cachos dos pássaros, “presentes em cada vez maior quantidade e com menos alimento disponível na região”, afirma o enólogo.
Vindima à sombra
No centro de Lisboa, em plena Tapada da Ajuda, é possível passar pela experiência invulgar de vindimar à sombra. O segredo está num projeto que o Instituto Superior de Agronomia (ISA) está a desenvolver e que aposta na sustentabilidade.
Durante a vindima, as caixas coloridas para recolher os cachos, com cerca de 15 quilos, são distribuídas pelas linhas da vinha e vão sendo preenchidas ao ritmo das tesouras, sem pressa, uma vez que é necessário recolher dados importantes. O sol não queima a pele, como acontece habitualmente, sentindo-se até alguma frescura que, tal como a energia elétrica produzida, são “efeitos secundários” de um projeto de investigação que pretende medir o impacto gerado pela instalação de painéis solares por cima da vinha do ISA.
Gonçalo Victorino, investigador a acompanhar a iniciativa desde o início, em maio de 2024, percorre as linhas de cepas. Recolhe, pesa e identifica as amostras de uvas. Por isso, agradece a brisa fresca e reconhece outras vantagens. “Durante a onda de calor de junho, as cepas da zona onde estão colocados os painéis foram menos afetadas [pelo calor], com menos escaldão nas folhas e cachos”, sublinha. A estrutura é imponente: várias centenas de painéis montados em robustos pilares de metal, que causam estranheza a quem está habituado ao suave declive da vinha, mancha verde durante a maio parte do ano, enquadrada pela ponte 25 de Abril e prédios das zonas envolventes.
O estudo do ISA vai decorrer até ao final de 2026 e os dados preliminares indicam que será possível adiar a vindima algumas semanas – 12 a 30 dias na casta Encruzado, por exemplo –fugindo aos dias quentes de julho e agosto e aproximando-se de setembro. O mesmo objetivo que buscam os produtores e enólogos nas terras quentes do Alentejo, com recurso a castas de ciclo longo, é aqui atingido com a sombra tecnológica dos painéis.
A norte, em Monção e Melgaço, as vinhas estão distribuídas em pequenas parcelas ao longo das encostas verdejantes. A água é abundante, com o rio Minho sempre por perto, mas, como avança Asun Carballo, enóloga do Soalheiro, “nenhuma região ou casta está a salvo das alterações climáticas”. Por aquelas bandas também se sentem as ondas de calor e a precipitação irregular que complicam as contas dos produtores em todo o País. Mas, neste caso, a resposta foi encontrada naquilo que é a matriz da região: a paisagem. Ou seja, vinhas entre os 100 e os 500 metros de altitude e castas tradicionais como o Alvarinho que permitem manter o perfil de frescura que caracteriza estes vinhos. “Nas zonas baixas as maturações são mais precoces e concentram maior intensidade aromática, enquanto em altitude conseguimos uma maturação mais lenta e uma preservação natural da frescura e acidez”, refere a enóloga galega.
Se continuarmos a subir a encosta, passando a cota dos 500 metros (onde há uns anos seria impensável plantar vinha de Alvarinho) encontramos a Branda da Aveleira, vinha experimental com dois hectares que foi plantada em 2019 a 1100 metros de altitude, terreno de vacas cachenas e frio intenso no inverno. Apesar de ainda não ter sido possível produzir vinho a partir destas cepas, elas lá continuam. A lembrar-nos que, apesar dos riscos associados às alterações climáticas, o setor vitivinícola continua a procurar estratégias para que a produção nunca falhe em Portugal.
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