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"Chegámos a usar mais o sabre do que as balas"

Ataque. Uma emboscada a caminho de Nanbuangongo terminou com vários mortos e feridos. A defesa da artilharia pesada foi feita corpo a corpo.

19 de julho de 2009 às 00:00

Apresentei-me no Regime de Infantaria número 5, nas Caldas da Rainha, a 3 de Outubro de 1960. Depois de terminada a recruta, em Abril de 1961, fui mobilizado para a Índia, assim como outros conterrâneos e um companheiro, o ‘Zé’ Carvalho, de Sever do Vouga. Ainda antes, frequentei a Escola de Cabos para Escriturário e aí o primeiro-sargento Coelho, amanuense do regimento, disse-me que se tivesse boa classificação era capaz de não ser obrigado a ir para a Índia. E assim foi. Fui o melhor do regimento com uma pontuação de 17, 6 valores. Mas, não sabendo ainda da nota, e após o curso, fui a casa passar oito dias de férias para me despedir da família. De regresso às Caldas, eu e o Carvalho fomos chamados ao Comandante do Regimento, o coronel Fernando Viotti de Carvalho, que nos informou que já não íamos para a Índia porque tínhamos sido os melhores do curso. Nesse dia foi uma alegria: bebemos e comemos até não poder mais! O entusiasmo durou pouco. Uns dias depois estávamos de novo com a farda amarela, a velha Mauser e o sabre, preparados para partir para Angola.

Fomos motivados, com a noção de que íamos cumprir um dever. Em Lisboa, integrámos o Batalhão de Caçadores número 114, Companhia 116, comandada pelo capitão Fernando Franco Bélico de Velasco, sendo o comandante do batalhão o tenente-coronel Oliveira Rodrigues e o segundo-comandante o major Balula Cid. Subimos as escadas do navio ‘Niassa’ a 28 de Maio de 1961. Era o dia 9 de Junho de 1961 quando o velho barco atracou no cais de Luanda.

Instalámo-nos no liceu feminino que estava em construção. Dali partimos para Mabubas. A 22 de Junho seguimos rumo ao rio Lifune. Quando chegámos, a ponte estava destruída e, enquanto o pelotão de engenharia ficou a remediar a situação, nós tivemos que passar o rio a pé (por sorte havia pouca água). Na outra margem, deparámo-nos com um enorme laranjal, comemos e levámos tantas laranjas quantas cabiam nos sacos. Prosseguimos marcha com destino à povoação de Quicabo, mas como a chegada da noite estacionámos em Quanda Maua. Na manhã seguinte, a Companhia 117 passou a ponte entretanto reparada, e veio trazer-nos café e pão com bife. Quando demos a primeira dentada na carcaça, as lágrimas caíram-nos pela cara abaixo porque tínhamos os dentes talhados de tantas laranjas termos comido. Foi nesse momento que um soldado da 117 foi atingido de surpresa. Gerou-se a confusão. Os turras saíam do capim como se fossem formigas. O combate durou umas horas, mas, felizmente, só perdemos aquele camarada.

A 7 de Agosto sofremos o maior ataque de toda a comissão, quando seguíamos viagem rumo a Nanbuangongo, poucos metros antes da fazenda Quissacala. Foi de tal modo que chegámos a usar mais a Mauser com o seu sabre do que com balas. A preocupação dos turras era saltarem para dentro dos carros e apoderarem-se das armas pesadas. Foi uma luta corpo a corpo que nos custou vários mortos e muitos feridos. Passado este doloroso momento, acampámos na fazenda de Quissacala. Foi o tenente Zilhão que, ao fazer o reconhecimento do local, se deparou com uma chacina incalculável: havia corpos espalhados por todas as trincheiras. Escolheu o corpo de um superior e gritou: 'Um voluntário que corte a cabeça a este terrorista que avance!' Devido ao ódio e à raiva de tudo aquilo que estávamos a passar e a viver, eu dei o passo em frente para cumprir o desejo do tenente. Usei a minha catana, só que o corte não era famoso. Foi então que vi uma catana parecida com uma navalha de fazer a barba de tão bem que cortava. Tive que a usar e acabei por ficar com ela. Deixámos Quissacala e seguimos rumo a Quipetelo onde fomos recebidos com um ataque. Morreram três dos nossos camaradas de luta, os últimos que perdemos na guerra porque daqui partimos para o Sul de Angola onde tivemos como missão manter a ordem. Regressámos no ‘Vera Cruz’ e a 14 de Julho de 1963 chegámos a Lisboa.

PREPARA LIVROS DE MEMÓRIAS

Arlindo Gomes é natural de Castelões, Vale de Cambra. Como o pai era proprietário de um dos maiores talhos da região, entrou no negócio aos 11 anos. Foi aí que se tornou exímio cortador de carnes. Casou três meses depois de regressar do Ultramar e teve três filhos. Hoje vive no centro de Vale de Cambra e passa grande parte do tempo numa garrafeira, pertença dos filhos. Dedica-se também aos dois netos, de dois e oito anos, e à escrita. Além de colaborar com vários jornais, está a preparar dois livros: um de memórias de guerra e uma biografia. 

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