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ELES PASSAM O ANO DISFARÇADOS

Muitas pessoas não se mascaram para o Entrudo: vivem todo o ano com um rosto que não é o seu. Actores, palhaços, travestis, sósias, ‘garotos-propaganda’, vozes ‘off’, – todos eles contém múltiplas identidades, que vestem e despem por prazer ou dever profissional

02 de março de 2003 às 18:20

Uma vez por ano, a brincadeira toma o lugar dos assuntos sérios. “É Carnaval e ninguém leva a mal!”, justificam os entusiastas da festa. Neste período de folia, invertem-se os papéis sociais: o político transforma-se em bobo da corte, o pobre mascara-se de rico, o homem veste-se de mulher fatal e a criança transgride as normas ensinadas pelos pais.

Para muitas pessoas, porém, o Entrudo só seria especial se, por um momento, lhes permitisse tirar a máscara. São actores ou palhaços, travestis ou sósias profissionais, vozes ‘off’ de bonecos famosos e mesmo ‘garotos-propaganda’ – todos eles vivendo um ano inteiro com o rosto de outro. O ‘Domingo Magazine’ foi à procura desses profissionais das máscaras.

António Feio dispensa apresentações. Aos 45 anos, 33 vividos na arte de representar, passa o ano a vestir a pele de outros, às vezes completamente diferentes, pelo que não sente de forma intensa a chegada do Carnaval. “Quando chega esta época não tenho sequer paciência para ir à procura de uma máscara e partir para a festa. Prefiro fugir, desmascarar-me, e divirto-me mais se for a um bar beber uns copos com amigos”, diz.

Ainda assim, o conhecido actor e encenador recorda os tempos de meninice, quando esta época festiva era passada a encarnar as mais diferentes profissões. “Tenho até fotos de aos dois ou três anos estar vestido de cozinheiro. Mais tarde passei para o normal nos putos, os índios e os ‘cowboys’, mas deixei cedo essa ideia.”

Hoje, Feio revela que se torna difícil mostrar a sua própria personalidade, muito por culpa de papéis carismáticos que se lhe colaram à imagem. A personagem do calão Tony, meia culpada do sucesso da ‘Conversa da Treta’, deu-lhe a visibilidade necessária para que muitos (em especial mais os novos) não saibam distinguir onde acaba a personagem e começa o actor. António não é um ‘tretas’, não se veste daquela maneira, meio pelintra, meio chunga, e admite que mascarar-se durante o ano inteiro já lhe chega o suficiente para não entrar em mais aventuras. “Mas aceito e acho positivo que outras pessoas o façam, até porque serve enquanto forma de extravasarem uma série de tensões que têm dentro delas.” Para ele, Carnaval, mesmo, só se fosse ao Brasil, sentado na bancada a assistir a todo aquele espectáculo de luz e de cor. O desfile, esse, pode muito bem ficar para outros mais interessados.

Durante o ano, Carlos Carvalho esconde a verdadeira identidade atrás da máscara do palhaço Carlitos, grande atracção de um circo familiar, o Circolândia, com o qual percorre Portugal de lés a lés. Assim acontece desde há 64 anos, quando Carlos, ainda criança, começou a trabalhar para ganhar a vida, situação capaz de distorcer a ideia que o comum mortal tem do Carnaval.

“Para nós, esta é uma altura como as outras. Desde os dez anos de idade que me visto dia após dia de palhaço, pelo que já não vejo diferença entre estar normal ou mascarado. O Carnaval, para mim, acaba por ser todos os dias”, desabafa, adiantando que a festa em que todos aproveitam a folia até nem é das mais proveitosas do ponto de vista profissional pois “as pessoas preferem ir para a rua divertirem--se, desfilar nos cortejos, deixando o circo para segundo plano”.

Tantos anos de experiência no mundo do ‘faz de conta’ valeram-lhe situações caricatas, algumas delas ultrapassadas num misto de aflição e riso, como aquela em que durante um espectáculo de Carnaval um miúdo decidiu atirar-lhe os famosos papelinhos coloridos para a boca. “Tive azar: estava aberta e acabei por engasgar-me. Mas lá me recompus”. E essa nem foi a pior situação, aliás. “Outra vez, também por esta altura, estava a meio de uma actuação na Faculdade de Belas--Artes quando uma criança decidiu passar-me uma rasteira”, recorda.

Se Carlos, o homem, ficou surpreendido, Carlitos, o palhaço, safou-se com recurso a um trambolhão que pôs toda a sala a rir. “Sabe, nesta actividade até temos de aprender a ir ao chão”, confessa, entre um sorriso e a recordação de que nos tempos em que actuava no Coliseu dos Recreios acabava por chover-lhe em cima os mais diversos objectos: “Como estávamos no Entrudo, além dos papelinhos e das serpentinas vinha uma série de outras coisas, como, por exemplo, milho. Às vezes nem sabíamos o que nos estavam a mandar”. No entanto, mercê de uma atitude sempre positiva, faz questão de recorrer ao dito popular: “É Carnaval, ninguém leva a mal”.

A VOZ DE 20 BONECOS

Bruno Ferreira, um alentejano de 28 anos, é o director de vozes do ‘Contra-Informação’, programa que vai no seu sétimo ano de emissão. A voz não oficial do ‘Paulo Tortas’ começou a fazer imitações na tenra idade. Aos quatro anos, já imitava a gaguez da dona de uma pensão em Odeceixe, onde fora passar férias com os pais.

Na primária, Bruno, que jura a pés juntos ser uma “pessoa tímida”, punha-se em cima das carteiras da escola e fazia performances improvisadas perante colegas e professores estupefactos. Em casa, eram frequentes as vezes que telefonava à mãe, imitando a voz do pai. “Ela caía sempre na ‘armadilha”. Mais recentemente, ligou a um deputado, fazendo-se passar pelo seu líder parlamentar. “Teci os maiores elogios ao seu trabalho, deixando-o todo babado.” Quando, mais tarde, lhe revelou a brincadeira, o político “não quis acreditar”. Depois, acabou por aceitar o facto “mas ficou tristíssimo.”

Com as experiências na rádio, em Beja, onde Bruno Ferreira vivia, e mais tarde, com a locução para anúncios radiofónicos, já em Lisboa, ele acabaria por despertar a atenção dos responsáveis da ‘Mandala’. Em 1998, ingressava na equipa do ‘Contra-Informação’. A personagem que lhe abriu portas foi a de Handicap Coelho, curiosamente uma voz pouco carismática entre os mais de 150 bonecos.

Hoje, Bruno Ferreira imita, roçando a perfeição, algumas das figuras mais carismáticas do ‘Contra’: São elas Chalana Gusmão, Vítor Malícias, Pincel Sousa Tavares ou o supracitado Paulo Tortas. São cerca de vinte vozes e personalidades tão díspares como a água do azeite. Um desafio do tamanho da vasta audiência do ‘Contra’ – um dos programas mais vistos na RTP1 – mas que o profissional desdramatiza: “Imitar vozes tão diferentes é como despir um casaco e vestir outro.”

Curiosamente, o director de vozes do ‘Contra’ nunca sentiu qualquer tipo de censura entre a classe política: “Eles até ficam contentes com os seus bonecos”. Bruno recorda a noite em que deu de caras com Mariano Gago, ex-ministro de Guterres, revelando-lhe que era ele quem imitava a sua voz na televisão. “O político socialista colou-se ao meu carro e quis saber todos os pormenores da história”, conta. Já Paulo Portas, ministro da Defesa, não revelou tanta emoção: “Confessou não ter nada contra a voz mas considerava a cara do seu boneco muito sisuda.”

Quando os filmes de acção de Jean-Claude Van Damme começaram a estar na berra, na década passada, João Marques, hoje com 38 anos, era constantemente confundido na rua com o actor de nacionalidade belga. Este treinador de ténis apercebeu-se das semelhanças e chegou a cortar o cabelo tal e qual a estrela de Hollywood. No ano passado, vencia mesmo um concurso de sósias a nível nacional. “Disseram-me que eu era o sósia ideal, porque para além das semelhanças no rosto e no cabelo, também o meu corpo atlético era uma fotocópia do de Van Damme”, congratula-se, ostentando os bíceps proeminentes.

Como prémio teve direito a uma viagem ao coração de Hollywood, “a terra onde o sonho se transforma em realidade”. Durante sete dias, os turistas interpelavam-no nas ruas de Los Angeles julgando tratar-se mesmo do actor mais conhecido pelas cenas de pugilato do que pelos dotes de representação. “Uma sueca e uma japonesa chegaram a pedir-me um autógrafo”. O ‘clone’ português recorda que, apesar do seu fraco inglês, conseguiu explicar às senhoras que estavam equivocadas, o que levou a japonesa a fugir, envergonhada.

“O meu sonho é o de um dia vir a ser duplo de Van Damme num dos seus filmes. Sou um grande fã dele.” Para a sessão fotográfica com o ‘Domingo Magazine’, João Marques vestiu-se a rigor e trouxe boina, T-shirt, calças e botas dos fuzileiros semelhantes aos da estrela. É com esta indumentária que participa em anúncios, eventos comerciais e sociais, cerimónias, antestreias de filmes e até desfiles, fazendo-se passar pelo herói das telas. “Os alunos já me chamam de Van Damme, tantas vezes já me viram nos jornais.”

O seu filme preferido é o ‘Cyborg’, de 1989, onde o belga faz uso da sua experiência em artes marciais e combate os inimigos no meio de um cenário apocalíptico. “Por causa do artista, até aprendi a praticar muay-thai, o desporto preferido dele.” João e Jean-Claude terão sido separados à nascença? “Não creio. Mas, se vestir um fato cinzento à noite e for a uma discoteca, não tenho descanso. As pessoas ficam especadas a olhar para mim.”

João Marques fica contente com esta atenção, mas tenta não se deslumbrar: “Não procuro protagonismo, mas é sempre bom ser parecido com aquele que já foi considerado um dos homens mais ‘sexy’ de Hollywood.”

José Carlos Catarino, um trabalhador-estudante de 19 anos, já vestiu o fato colorido do ‘Parabólicas’, uma daquelas mascotes da TV Cabo que passeiam pelos relvados dos estádios portugueses durante o início, intervalo e fim dos maiores jogos de futebol. A estreia com a camisola da empresa de telecomunicações deu-se na final da Taça de Portugal entre o Sporting e o Leixões, no fim da época 2001/2002. “Senti-me como uma formiga no meio daquela vasta multidão”, recorda-se o aluno do curso de arquitectura da Universidade Moderna de Lisboa, que não esconde que a principal motivação para aceitar fazer o trabalho foi o dinheiro, “mais de 5 euros à hora”.

O facto de não se ver a sua cara também ajudou a que dissesse que ‘sim’ à agência de ‘casting’ onde estava inscrito. “Se soubesse que as pessoas poderiam ver o meu rosto naquela figura, fugia a sete pés”, ri-se o estudante, que acabou por se sentir como uma verdadeira estrela perante os milhares de adeptos. Terá sido o momento de glória durante os seus curtos 19 anos de existência? “Não sei. Mas foi sem dúvida magnífico!”, exulta.

Embora estivesse mesmo colado ao relvado onde jogavam as vedetas leoninas, não conseguiu assistir ao jogo com a mesma clareza como se estivesse sentado nas bancadas do estádio Nacional. O ‘Parabólicas’ tem uma rede que dificulta a visão e umas abas que não permitem visibilidade lateral. “Perdi o número de vezes que eu e os outros seis ‘Parabólicas’ caímos no chão, mas acabou por ser divertido porque as quedas eram amortecidas pelo fato”, remata.

José, um benfiquista ferrenho, não perdeu aquela oportunidade soberana para falar com João Pinto, o seu ex-ídolo, no fim do jogo em que o Sporting venceu por 1-0. “Mandei-lhe umas bocas. Disse-lhe que ele tinha feito mal em sair do Benfica.” O jovem só teve direito a umas ríspidas palavras do médio leonino: “Estou cansado, não fales comigo!”

O ousado ‘Parabólicas’ passou os dias seguintes à final da Taça nas compras. “Gastei todo o dinheiro em roupa. Sou muito consumista”, justifica. Ainda fez outras colaborações para a TV Cabo, mas começou recentemente a trabalhar no departamento de Turismo de Lisboa. “Tudo tem o seu tempo. Este tipo de actividades esporádicas enquadra-se bem quando se tem 17 ou 18 anos. Depois não faz sentido…”

FERNANDO OU DEBORAH?

Quase ninguém sabe quem é Fernando Santos, 40 anos. Mas, no mundo do espectáculo, todos conhecem Deborah Cristal, travesti que dirige e participa em shows no ‘Finalmente’, bar situado no Príncipe Real, em Lisboa.

Em pequeno, Fernando já gostava de representar: “Sempre quis ir para as artes, mas os meus pais eram muito conservadores até porque era o único rapaz”, recorda. “Os meus progenitores queriam outro tipo de vida para mim e não acharam piada à história do teatro”. Ainda adolescente, saiu de casa e foi viver sozinho.

O jovem fascinou-se pelo mundo do espectáculo e percebeu que o que queria na vida era estar nos palcos. “Já tínhamos passado o 25 de Abril e o travestismo era uma novidade. Tinha ‘glamour’. E era aquilo que eu queria e sabia fazer”, diz. Mas o que é, afinal, ser-se travesti? “É ser um actor que se veste daquilo que não é para representar e para dar às pessoas um brilho que deixou de existir neste País”, defende Deborah.

Estes 20 anos de carreira de Fernando Santos começaram de uma forma espontânea. “Aos 18 anos era um rapaz muito irreverente e queria chocar. Percebi que ser travesti era a profissão certa”. E assim, entrou num jogo de emoções que o conduziu a vários palcos, a digressões ao estrangeiro e a participações em programas de televisão. Todas as noites, às 02h30 entra em cena, vestido de Deborah Cristal.

As manhãs não existem para este homem que se deita invariavelmente de madrugada. Nos tempos livres, é adepto incondicional de um café ao fim da tarde, de um bom livro ou de uma conversa com amigos. E foi precisamente num fim de tarde chuvoso que o ‘Domingo Magazine’ se cruzou com este artista de duas identidades simultâneas.

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