Ignoram sintomas. Automedicam-se. Fazem por parecer saudáveis. Discutem diagnósticos. Recusam exames. Consultam-se uns aos outros. São médicos e adoecem, tal como quem diariamente os procura em busca de alívio .
Nunca, até aquele momento, Nuno Montenegro tinha reparado que o tecto era tão branco. Com tantas luzes. Estranho, pensou ele, que sempre trabalhara em hospitais, escolher aquele momento para reparar nos pormenores. Estava deitado numa marquesa branca nos cuidados intensivos. Sem bata, o que já de si era anormal tendo em conta que estava no seu local de trabalho, o Hospital de São João, no Porto, onde é director de ginecologia e obstetrícia. Naquele dia, Nuno, 53 anos, era o doente.
'Preso à cama, todo monitorizado, sem poder fazer nada.' A suspeita de um enfarte do miocárdio 'foi a situação mais difícil' que enfrentou no seu relatório clínico. 'Como sou muito stressado só o estar preso a uma cama estava a tirar-me do sério. Fiz aquilo que dizemos aos doentes para não fazerem: assinei a alta por exigência e fui embora.' A lição ficou marcada na pele. 'Fiquei com a face inteira da coxa toda negra, do cateterismo [introdução de um tubo na artéria da perna], durante um mês, por não ter ficado em repouso.' A rebeldia foi pontual. 'Vacino-me contra a gripe e se tenho febre medico-me, mas quando ultrapassa a minha área procuro um especialista, não tomo decisões.' Só não resiste a abrir os exames. E a adiar check-ups de rotina onde se inclui o rastreio do cancro da próstata. 'Mas acabo sempre por fazer'.
Fernando Calais da Silva não esquece a dor 'infernal' que não passava. E o médico – que não tem médico de família – desesperava agarrado às costas. 'Fiz milhentos exames clínicos à procura do que tinha. E em cada um deles pensava: o que é que vai aparecer? O que é que eu tenho?' – conta o ex-director do serviço de Urologia do Hospital de São José, em Lisboa, de 72 anos, entretanto, já reformado. A ansiedade era tanta que nem esperava pelo envelope fechado com os resultados – discutia-os logo ali, com o colega. Em oito meses só despistaram suposições sobre a maleita revelada em Janeiro de 2007. Nada concreto. O que desesperou quem apenas se lembrava de ter tido umas gripes. 'Como nós, mais ou menos, sabemos as coisas que podemos ter, nestes casos dizemos: ‘ tenho uma coisa esquisita’. Os médicos, os seus parentes e amigos, têm sempre coisas estranhas. Que raio de síndroma será este?' Consultou especialistas do hospital, com quem lidava para resolver problemas dos seus doentes.
'Prefiro que seja um colega a medicar-me. Quando nos automedicamos há sempre uma certa emocionalidade; o melhor é perguntar a alguém de confiança e fazer aquilo que mandam.' Quando descobriu [por exclusão de partes] que tinha uma doença 'simples', herpes-zóster (conhecida por zona), ligou para um clínico amigo. 'Ouve lá, isto existe? Ele disse: existe!' – recorda. 'Fiz acupunctura, homeopatia, fiz tudo. Só não fui à bruxa. A gente faz tudo para aliviar a dor, é a dor que a gente quer resolver'. Como qualquer um.
Para se admitir que o médico tem as doenças e reacções de qualquer pessoa, é preciso um certo 'despudor'. A responsável pela Unidade de Dor do Hospital Garcia de Orta, em Almada, recorda-se de há 12 anos sentir cefaleias muito intensas, com tonturas e náuseas, e não querer deixar passar uma imagem 'fragilizada' enquanto profissional. 'Sempre que tenho dor física, a reacção é de fuga – ir para casa e não ‘contaminar’ o ambiente de trabalho', confessa Beatriz Craveiro Lopes, 57 anos. 'O profissional de saúde é um bocadinho arrogante: acha que consegue resolver os seus problemas e primeiro que admita que precisa de ajuda já percorreu a via sacra sozinho. Tem que ter uma imagem forte.' Mas contra a severidade auto-imposta por muitos clínicos, a equipa do serviço chefiado pela anestesista Beatriz Craveiro Lopes aplica técnicas de relaxamento. 'É uma equipa também com laços de afecto. Se algo parece não estar bem com um elemento, todos procuram soluções para o problema.'
CONSULTAS DE CORREDOR
Na semana passada, a gripe atacou Mário Jorge, médico de Saúde Pública no Alentejo Litoral. 'Tomei os medicamentos que tinha em casa', conta, reconhecendo o ‘pecado’, neste caso, singular da automedicação. 'Um deles estava fora de prazo', assume, envergonhado. 'Nós, os médicos, não vamos muito ao médico. Fazemos consultas de ‘corredor’, pedimos opinião uns aos outros.' Eles, os médicos, ou não dão importância aos próprios sintomas ou ficam tão preocupados que exigem procedimentos excessivos. É o que a experiência de médico de médicos diz a Mário Jorge. 'Procuram-me para dar opinião em situações que envolvem a minha área – doenças transmissíveis.' Não é fácil pois 'trazem já ideias'. Também 'pode ser complicado examinar alguém hierarquicamente superior'.
Luís Mourão, 61 anos, nunca consultou um médico. Nunca esteve doente – salve-se a gripe. Nunca fez exames. É cardiologista e nunca se submeteu a um electrocardiograma, mas sabe de cor todos os males do coração. 'Medico-me sempre porque nunca é grave. Tomo aspirina se tenho febre e antibiótico se tenho tosse.' Nesta casa de ferreiro o espeto é de pau. 'Fumo e não tenho horas para alimentação, sou capaz de não almoçar nem lanchar e só fazer uma refeição à noite, mas com os doentes tenho todos os cuidados.'
Paulo Cortes, 46 anos, assume: 'Nós, médicos, somos maus doentes.' A prática confirma a teoria. 'Oscilamos entre não nos preocuparmos nada e, se as coisas se agravam, tentamos encontrar explicações mais complexas do que aquilo que realmente temos'. Uma montanha-russa de emoções que a bata branca não facilita. 'Mas não faço consultas de rotina e faço batota com as análises, vejo logo os resultados.' Paulo é oncologista. 'Quando estou doente penso nos meus doentes e percebo o que eles sentem. Mas não é só para o mal, quando estive mais debilitado recordei os exemplos das pessoas com uma coragem imensa e tentei aprender com elas.' E medica-se. 'Até porque tenho que me curar rapidamente, as pessoas precisam de mim.'
"SÓ AGUENTEI TRÊS DIAS INTERNADO": NUNO MONTENEGRO
Quando se viu ‘preso’ numa cama do hospital que tão bem conhecia enquanto médico – desta vez, como doente – Nuno Montenegro desesperou. 'Depois do cateterismo só aguentei três dias internado, embora devesse ter ficado mais tempo a recuperar, e fui-me embora'. Suspeitava-se que o director de serviço de ginecologia e obstetrícia do São João, no Porto, tinha sofrido um enfarte do miocárdio e tinha que ficar em observação. 'Lembro-me que me sedaram, e quis saber tudo o que me estavam a fazer, mas também que pedi para não me darem medicação em demasia'. O veredicto não foi difícil de apurar: o stress é o pavor das artérias coronárias. 'Vivo a minha profissão com espírito de missão, só podia ser assim. Vivo isto quase como se fosse a minha primeira família e passo a maior parte da vida aqui dentro', descreve Nuno, de 53 anos, fumador inveterado mas adepto convicto do exercício físico. 'Não abdico dos meus quilómetros de bicicleta ao ar livre'.
"RECORRO AO SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE": MÁRIO JORGE
Quando está doente vai aos centros de saúde e hospitais públicos ou procura o serviço privado?
Por uma questão de confiança, e que tem a ver com a minha postura ética, recorro ao SNS.
E fazem-no esperar?
Fico na sala de espera. É uma experiência valiosa porque ouço as conversas e fico a saber o que as pessoas pensam do aten-dimento. Não espero muito.
Os médicos consultam-no?
Trabalho em saúde pública, doenças transmissíveis. Pedem-me opinião se suspeitam de que sofrem de alguma coisa relacionada.
"INÚMEROS COLEGAS DOENTES: PAULO CORTES, ONCOLOGISTA
Já entrou no seu consultório um colega com um problema oncológico?
Sim, tenho inúmeros doentes que são meus colegas de profissão.
Como é que um médico oncologista, sendo também colega, lida com uma situação destas?
Se nós não adoecêssemos toda a gente queria ir para Medicina. Os médicos também adoecem, são pessoas. É muito complicado lidar com isso. É difícil descrever de tão difícil que é...
Principalmente saber o que dizer...
Sim, extremamente. Mas quanto mais conhecimento a pessoa tem mais mecanismos também possui para fugir à realidade e encontrar defesas.
"CONHECIMENTO NÃO AUMENTA A ANSIEDADE": JOSÉ PAIS RIBEIRO, PSICÓLOGO
Acredita que se um médico estivesse na ignorância enfrentaria melhor a sua própria doença?
Nunca a ignorância é o melhor para enfrentar qualquer situação, incluindo um diagnóstico de doença.
Irá o médico desvalorizar os seus sintomas?
Dependerá das características da pessoa. Penso que um médico, se falarmos de doença da sua especialidade, desvalorizará o secundário e valorizará o mais importante.
Poderá ele protelar a consulta de um colega?
Se desvalorizar, não consultará um médico como qualquer outra pessoa que não vai imediatamente ao médico.
Poderia um médico tratar--se a ele próprio?
Depende. Se estamos a falar de uma doença simples, com diagnóstico claro e tratamento claro (que não seja cirurgia), poderá fazê-lo. Numa condição mais grave deverá consultar outro médico que esteja emocionalmente mais distante da situação.
Por um médico conhecer a maioria das doenças e as suas causas, pode aumentar-lhe a ansiedade?
O conhecimento não aumenta a ansiedade, ao contrário da ignorância.
A mente influencia o estado de saúde?
Claro. E a saúde influencia o estado da mente. Isto tanto se refere a aspectos emocionais como cognitivos. Pessoas intelectualmente mais elaboradas em termos cognitivos organizam melhor a informação, desenham planos de acção mais eficazes, e implementam melhor as acções. Simultaneamente lidam melhor com as emoções negativas.
Tem sugestões ou notícias para partilhar com o CM?
Envie para geral@cmjornal.pt
o que achou desta notícia?
concordam consigo
A redação do CM irá fazer uma avaliação e remover o comentário caso não respeite as Regras desta Comunidade.
O seu comentário contem palavras ou expressões que não cumprem as regras definidas para este espaço. Por favor reescreva o seu comentário.
O CM relembra a proibição de comentários de cariz obsceno, ofensivo, difamatório gerador de responsabilidade civil ou de comentários com conteúdo comercial.
O Correio da Manhã incentiva todos os Leitores a interagirem através de comentários às notícias publicadas no seu site, de uma maneira respeitadora com o cumprimento dos princípios legais e constitucionais. Assim são totalmente ilegítimos comentários de cariz ofensivo e indevidos/inadequados. Promovemos o pluralismo, a ética, a independência, a liberdade, a democracia, a coragem, a inquietude e a proximidade.
Ao comentar, o Leitor está a declarar que é o único e exclusivo titular dos direitos associados a esse conteúdo, e como tal é o único e exclusivo responsável por esses mesmos conteúdos, e que autoriza expressamente o Correio da Manhã a difundir o referido conteúdo, para todos e em quaisquer suportes ou formatos actualmente existentes ou que venham a existir.
O propósito da Política de Comentários do Correio da Manhã é apoiar o leitor, oferecendo uma plataforma de debate, seguindo as seguintes regras:
Recomendações:
- Os comentários não são uma carta. Não devem ser utilizadas cortesias nem agradecimentos;
Sanções:
- Se algum leitor não respeitar as regras referidas anteriormente (pontos 1 a 11), está automaticamente sujeito às seguintes sanções:
- O Correio da Manhã tem o direito de bloquear ou remover a conta de qualquer utilizador, ou qualquer comentário, a seu exclusivo critério, sempre que este viole, de algum modo, as regras previstas na presente Política de Comentários do Correio da Manhã, a Lei, a Constituição da República Portuguesa, ou que destabilize a comunidade;
- A existência de uma assinatura não justifica nem serve de fundamento para a quebra de alguma regra prevista na presente Política de Comentários do Correio da Manhã, da Lei ou da Constituição da República Portuguesa, seguindo a sanção referida no ponto anterior;
- O Correio da Manhã reserva-se na disponibilidade de monitorizar ou pré-visualizar os comentários antes de serem publicados.
Se surgir alguma dúvida não hesite a contactar-nos internetgeral@medialivre.pt ou para 210 494 000
O Correio da Manhã oferece nos seus artigos um espaço de comentário, que considera essencial para reflexão, debate e livre veiculação de opiniões e ideias e apela aos Leitores que sigam as regras básicas de uma convivência sã e de respeito pelos outros, promovendo um ambiente de respeito e fair-play.
Só após a atenta leitura das regras abaixo e posterior aceitação expressa será possível efectuar comentários às notícias publicados no Correio da Manhã.
A possibilidade de efetuar comentários neste espaço está limitada a Leitores registados e Leitores assinantes do Correio da Manhã Premium (“Leitor”).
Ao comentar, o Leitor está a declarar que é o único e exclusivo titular dos direitos associados a esse conteúdo, e como tal é o único e exclusivo responsável por esses mesmos conteúdos, e que autoriza o Correio da Manhã a difundir o referido conteúdo, para todos e em quaisquer suportes disponíveis.
O Leitor permanecerá o proprietário dos conteúdos que submeta ao Correio da Manhã e ao enviar tais conteúdos concede ao Correio da Manhã uma licença, gratuita, irrevogável, transmissível, exclusiva e perpétua para a utilização dos referidos conteúdos, em qualquer suporte ou formato atualmente existente no mercado ou que venha a surgir.
O Leitor obriga-se a garantir que os conteúdos que submete nos espaços de comentários do Correio da Manhã não são obscenos, ofensivos ou geradores de responsabilidade civil ou criminal e não violam o direito de propriedade intelectual de terceiros. O Leitor compromete-se, nomeadamente, a não utilizar os espaços de comentários do Correio da Manhã para: (i) fins comerciais, nomeadamente, difundindo mensagens publicitárias nos comentários ou em outros espaços, fora daqueles especificamente destinados à publicidade contratada nos termos adequados; (ii) difundir conteúdos de ódio, racismo, xenofobia ou discriminação ou que, de um modo geral, incentivem a violência ou a prática de atos ilícitos; (iii) difundir conteúdos que, de forma direta ou indireta, explícita ou implícita, tenham como objetivo, finalidade, resultado, consequência ou intenção, humilhar, denegrir ou atingir o bom-nome e reputação de terceiros.
O Leitor reconhece expressamente que é exclusivamente responsável pelo pagamento de quaisquer coimas, custas, encargos, multas, penalizações, indemnizações ou outros montantes que advenham da publicação dos seus comentários nos espaços de comentários do Correio da Manhã.
O Leitor reconhece que o Correio da Manhã não está obrigado a monitorizar, editar ou pré-visualizar os conteúdos ou comentários que são partilhados pelos Leitores nos seus espaços de comentário. No entanto, a redação do Correio da Manhã, reserva-se o direito de fazer uma pré-avaliação e não publicar comentários que não respeitem as presentes Regras.
Todos os comentários ou conteúdos que venham a ser partilhados pelo Leitor nos espaços de comentários do Correio da Manhã constituem a opinião exclusiva e única do seu autor, que só a este vincula e não refletem a opinião ou posição do Correio da Manhã ou de terceiros. O facto de um conteúdo ter sido difundido por um Leitor nos espaços de comentários do Correio da Manhã não pressupõe, de forma direta ou indireta, explícita ou implícita, que o Correio da Manhã teve qualquer conhecimento prévio do mesmo e muito menos que concorde, valide ou suporte o seu conteúdo.
ComportamentoO Correio da Manhã pode, em caso de violação das presentes Regras, suspender por tempo determinado, indeterminado ou mesmo proibir permanentemente a possibilidade de comentar, independentemente de ser assinante do Correio da Manhã Premium ou da sua classificação.
O Correio da Manhã reserva-se ao direito de apagar de imediato e sem qualquer aviso ou notificação prévia os comentários dos Leitores que não cumpram estas regras.
O Correio da Manhã ocultará de forma automática todos os comentários uma semana após a publicação dos mesmos.
Para usar esta funcionalidade deverá efetuar login.
Caso não esteja registado no site do Correio da Manhã, efetue o seu registo gratuito.
Escrever um comentário no CM é um convite ao respeito mútuo e à civilidade. Nunca censuramos posições políticas, mas somos inflexiveis com quaisquer agressões. Conheça as
Inicie sessão ou registe-se para comentar.