O navio espanhol ‘Betanzos’ esteve dez dias encalhado na barra de Lisboa, onde antes dele outros barcos naufragaram.
Terão nascido casamentos de umas certas festas para solteiros cujo nome só fará eco na memória de alguns. "Não sejas encalhado como o ‘Tollan’" era o nome dos jantares organizados para quem não tinha par que se popularizaram em Lisboa (consta que o último foi já em 2007 no Grémio Lisbonense) depois de o ‘Tollan’, um porta-contentores de bandeira britânica, ter chocado em pleno estuário do Tejo com um navio sueco e ali ter ficado durante quase quatro anos. Aquele amigo ou vizinho que há muito não se via com uma rapariga pelo braço também era, naquele tempo, rapidamente alcunhado de Tollan e nos anos 80 multiplicaram-se os cafés e restaurantes com o nome do cargueiro que se impunha no Tejo, em frente ao Terreiro do Paço, de casco para o ar sem ninguém que o salvasse daquele triste fado. Todas as manhãs António Sala dava os bons dias aos ouvintes e sempre informava que "o ‘Tollan’ ainda lá está encalhado", lembra Pedro Santos, que à data do naufrágio tinha oito anos e já em adulto criou um blogue sobre a sua memória mais forte de infância.
O ‘Tollan’, que se tornou quase um monumento nacional – havia até uns binóculos voltados para lá para quem quisesse ver melhor o ‘porta aviões das gaivotas’ a troco de uma moeda – fez parte do anedotário nacional, mas a sua chegada a Lisboa foi trágica. O naufrágio do gigante dos mares, que aconteceu na manhã de nevoeiro de 16 de fevereiro de 1980 por causa do nevoeiro e de problemas com a sua aparelhagem radar, arrastou para a morte quatro dos 16 tripulantes: quando os mergulhadores conseguiram entrar na embarcação, já nada podiam fazer pelos que ficaram aprisionados nos camarotes. Viria a ser retirado a 2 de dezembro de 1983, o mesmo ano em que o País teve de ser resgatado pelo Fundo Monetário Internacional, era Mário Soares primeiro-ministro. Na altura muito se especulava sobre o ‘tesouro’ do ‘Tollan’ – a imaginação popular falava de ouro e droga, mas na realidade os 220 contentores do navio continham inseticidas industriais, amianto e demais produtos perigosos, para além das 600 toneladas de combustível conservadas nos tanques do navio, para utilização da própria máquina.
Cemitério de embarcações
Por isso se o ‘Betanzos’, o navio de bandeira espanhola que sofreu uma avaria no dia 6 de março e encalhou à saída da barra de Lisboa, por ali tivesse ficado mais do que os dez dias que foram necessários para o conseguirem retirar, o problema dele não seria nunca a solidão. Aqueles baixios da barra do Tejo foram cemitério de muitas embarcações que encontraram no fundo do mar a última morada e algumas delas continuam debaixo de água, imutáveis como se os anos não tivessem afinal passado.
"É um sítio para onde muitos barcos foram levados pelas correntes do Tejo – aquelas línguas de areia movimentam-se, alteram a dinâmica do rio e isso é muitas vezes fatal – e por isso, naquela zona ainda há um conjunto significativo de despojos de pelo menos cinco naufrágios", revela Jorge Freire, diretor do projeto da Carta Arqueológica Subaquática de Cascais e do Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa. Outro deles foi o ‘Patrão Lopes’, o célebre "rebocador que foi apreendido na I Guerra Mundial aos alemães e que viria a naufragar a 1 de março de 1936 num dia de temporal, e depois de ter salvado muitas vidas", acrescenta o arqueólogo subaquático.
Dizem dele que foi construído em Rostock, na Alemanha, em 1880 e então batizado como ‘Newa’. Tinha 49 metros de comprimento e uma tripulação de 63 elementos e deslocava 467 toneladas brutas, quando na véspera da declaração de guerra entre o governo português e as potências do Eixo Central, em 1916, foi uma das 35 embarcações refugiadas em Lisboa. Durante a Grande Guerra, o barco integrou várias missões bélicas, como o reboque da barca Portugal, do Porto até Bordéus – onde consta que disparou contra um submarino alemão – mas depois do conflito efetuou muitas missões de salvamento: precisamente no local onde pereceu em serviço, levando ao fundo o barco que tentava resgatar das águas, mas antes disso salvou muitos outros navios da má sorte. A sua história amarelecia nos jornais da época quando – e sem que nada o fizesse prever – foi encontrado em 2015, à entrada da barra de Lisboa, junto ao Bugio, o mesmo local onde naufragara oitenta anos antes quando tentava salvar um batelão que havia encalhado e perfurado o casco.
"Quando foi encontrado estava completo, dava para andar dentro dele", conta Jorge Freitas, que no verão de 2015 integrava a campanha M@rbis, de mapeamento da biodiversidade marinha portuguesa, que descobriu por acaso os primeiros destroços do ‘Patrão Lopes’.
Histórias passadas
Mas nem só na barra do Tejo se escondem passados naufragados: "Claro que toda esta entrada na barra do Tejo, a partir do Cabo da Roca, o litoral de Cascais, Almada e Oeiras são riquíssimos do ponto de vista arqueológico e histórico, mas podemos também ir mais para sul, para o Algarve. Toda a zona de Sagres, Lagos também bastante rica, a norte também temos o caso de Esposende, onde após uma tempestade deu à costa um conjunto significativo de elementos culturais, vestígios de uma embarcação do século XVII. São zonas que têm muita navegação e, também , do ponto de vista geográfico, características que levam ao acidente marítimo", explica Jorge Freire, acrescentando que na época contemporânea (período desde a Revolução Francesa até aos dias de hoje) foram registados dois mil navios naufragados", daí o vasto património arqueológico residente no Portugal subaquático.
"A mim, o objeto em si não me marca tanto, marca-me o local porque, geralmente, eu estou a trabalhar em zonas que são cemitérios. E marca-me o facto de estes naufrágios serem autênticas maternidades de biodiversidade. Uma zona de naufrágio tem vida, e a vida concentra-se toda ali. É belíssimo de ver", revela também o diretor da Carta Arqueológica Subaquática de Cascais. "Claro que também recolhemos objetos muito interessantes, ainda há pouco tempo na zona de Cascais recolhemos moedas em ouro cunhadas no Brasil e elas estavam como se estivessem acabadas de sair do cunho, porque nunca circularam. O mar tem esta particularidade: quando se escava consegue- –se perceber o fim daquele navio ou o fim daquelas pessoas. É como se estivéssemos no último momento daquele navio, é como uma cápsula do tempo", continua quem – e apesar de anos a procurar património no fundo do mar – se emociona mais com as histórias das pessoas que sobrevivem em terra.
"Quando estávamos a trabalhar na entrada da barra do Tejo, tive oportunidade de conhecer o Hugo Ribeiro, campeão europeu de bodyboard, que me apresentou um pescador que não queria falar em naufrágios porque tinha perdido o irmão dessa forma e, por isso, todos os dias à mesma hora ele olhava para o mar e prestava assim uma homenagem ao irmão. Por isso, mais do que o material em si, falta-nos valorizar este património imaterial, falta contactar com estas pessoas, porque elas e as suas histórias é que são a nossa identidade marítima", remata Jorge Freire.
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