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Escolhidos para o caminho da fé

Em tempos de futilidade e crise – até nas vocações – ainda há jovens que procuram a felicidade no sacerdócio.

19 de setembro de 2010 às 00:00

João adora música e toca guitarra. Tem o tique de andar com uma palheta na mão, como os profissionais e, de relance, poderia ser um qualquer dos miúdos das bandas de rock que se multiplicam pelas garagens de Almada. Conheceu festas e excessos, saiu de casa aos 16 anos e desafiava as leis da estrada na sua mota. Ninguém diria que acabaria padre. A ele, se lhe dissessem, responderia que "estavam malucos".

Agora João – como ‘o Evangelista’, único apóstolo que amparou Maria e acompanhou Jesus Cristo até à morte na Cruz – não se separa do anel com a oração do pai-nosso cravejada na prata, seja na rua onde às vezes fuma um cigarrinho, seja entre os claustros do Seminário de S. Paulo, em Almada, onde se recolheu em 2004.

O anel foi-lhe oferecido pelos pais, depois de uma missão de sete meses num orfanato em São Tomé e Príncipe. Os mesmos pais que há meia dúzia de anos pensaram que o filho brincava quando anunciou que queria ser padre, e que responderam, brincando: "vais para padre mas é com uma freira à cabeceira". Pais que nunca foram praticantes assíduos e "até só casaram pela Igreja por insistência da avó materna".

João Dias contrariou-lhes a tendência e entrou para o seminário há seis anos, depois de um percurso que começou na catequese e passou pelo coro e pelo grupo de jovens da paróquia da Amora, na Margem Sul.

"Tirei um curso técnico-profissional, cheguei a pensar tirar Veterinária, Enfermagem ou Medicina. Tudo o que tivesse a ver com cura, realizar-me-ia. Só isso me faria feliz". Dado o percurso que tinha já na Igreja, também sabia que, às vezes, curar a alma é tão ou mais importante do que tratar os males do corpo: "tinha 19 anos quando comecei a perguntar-me se o meu caminho não passaria pelo sacerdócio", diz João, actualmente com 27.

Não tendo ligações religiosas na família, nada que indicasse que viria a seguir este caminho, João "era uma carta fora do baralho". A expectativa dos pais de que arranjasse uma profissão e uma família saiu gorada e, por isso, o anúncio da sua decisão "foi um choque" para estes. "Mas depois apoiaram-me e são os meus companheiros de viagem", diz, avisando que apenas precisaram de tempo para conviver com a ideia.

João não tinha namorada quando decidiu abraçar o sacerdócio, mas contabilizou as suas paixonetas de adolescência. "Nada de sério, nada que durasse anos. Mas sei o que isso é", segreda.

Na missão em São Tomé, sem que o procurasse, acabou por assinar um teste de fé. "Inserir--me na comunidade, no orfanato, foi a experiência mais marcante da minha vida. Ali toda a gente precisava, todos eram muito pobres. Eu, quando me submeti a isto, propus-me ser como eles, a viver como eles. E a passagem por São Tomé só confirmou a minha fé. Nunca antes dei tanto de mim, mas também nunca tinha sentido de forma tão determinante que vale a pena viver e lutar por uma causa", relata quem foi para África com 90 quilos e voltou de lá com 60. Está no 4º ano do seminário, com a certeza de querer se padre.

MAIS PERTO DO CÉU

A vida desperta lá para as 6h30 no Mosteiro de São Paulo. A vista deslumbrante sobre a capital que só quem vive à beira da Margem Sul do Tejo tem o privilégio de conhecer, as obras de Cargaleiro dispersas pelos jardins, a bênção do Cristo-Rei – paredes-meias com o seminário – e o murmúrio que ecoa do frenesim do trânsito na ponte 25 de Abril conferem-lhe uma atmosfera já perto do divino. Às 7h00 fazem-se as orações matinais e, antes das oito, os 11 seminaristas já estão na carrinha, a caminho da Universidade Católica, onde cursam Teologia. Só à tarde regressam ao mosteiro, para aulas de música, solfejo e sobretudo formação pastoral. Seguem-se as orações de vésperas e às 19h00 realiza-se a missa, seguida pelo jantar – que reúne numa mesa de madeira rústica e comprida os 11 seminaristas e os dois padres que ali habitam.

Ao serão reza-se o terço. Se o tempo estiver bom, a oração faz-se no pátio, tendo Lisboa como presépio a iluminar as preces. O silêncio impõe-se às 22h30.

Ali vive, há cinco anos, Daniel Nascimento. Está a fazer o chamado ‘ano pastoral’, findo o qual será ordenado, aos 29 anos. Órfão de pai, foi ao pároco da sua comunidade, na Amora, que primeiramente confiou o desejo de ser padre.

Sabe que a missão não é fácil, mas isso só torna o desafio mais aliciante: "vivemos num mundo mais descristianizado. Os próprios números mostram que as pessoas vão menos à igreja. Um padre precisa de ser humano e saber acolher as pessoas".

A aproximação à religião começou em casa e solidificou-se na catequese e no grupo de jovens da paróquia. Uma caminhada a Santiago de Compostela, dois anos antes da entrada para o seminário, fê-lo questionar se Deus já lhe teria destinado um caminho entre os seus. "A minha vocação foi uma manifestação tardia. Nunca quis ser padre em miúdo. Nessas idades queria era ser jogador de futebol ou engenheiro mecânico, curso que cheguei a frequentar. Olho para trás com um sorriso, porque aprendi muitas coisas, mas percebi que o caminho para a minha felicidade era diferente, que passava por ser útil, ser necessário ", recorda.

Há coisas duras na vida de seminarista, como o menor contacto com a família e os amigos. Mas Daniel nunca lamenta a perda de liberdade, do sair à noite. "Esta é uma vida entregue, o que supõe um desafio ao nosso egoísmo", confessa. Em tempos que já lá vão, houve namoradas na vida de Daniel. "Nada de muito sério", garante.

Mas o assunto do celibato é caso austero para outros. Patrício Oliveira tinha 17 anos e acabara de concluir o ensino secundário quando percebeu que era ao serviço dos outros que encontraria a felicidade e a sua realização pessoal. Diz acreditar que "o sexo seja muito bom e valha a pena" como projecto de vida a dois. "Vou buscar a minha felicidade a esta entrega, mas não sou indiferente a uma mulher bonita e quem disser que é fácil está a mentir, interiormente isto representa uma luta", confessa o seminarista de Coimbra.

"Não tive uma clarividência de que queria ser padre, mas percebi que esse era o caminho para ouvir e aconselhar as pessoas da minha comunidade, para ser o condutor de quem acredita em Deus e o insere na sua vida", diz, para logo a seguir reconhecer que não lhes pode "dar a salvação", nem tem "a resposta da felicidade humana".

Filho único, a primeira pessoa a quem contou o seu desejo foi à mãe e a seguir ao pároco de Caxarias (Ourém), onde reside. Fez o propedêutico no Seminário de Leiria e seguiu para a cidade dos estudantes, onde se licenciou em Teologia, faltando-lhe apenas apresentar a sua tese – sobre a morte – para obter o mestrado. Enquanto não chega o momento da ordenação, prepara-se para o estágio, na paróquia da Maceira.

Do trabalho que o espera, o mais difícil serão os funerais. "Vou ter a preocupação de não magoar quem perdeu entes queridos e tentar dizer as palavras certas, mas não sei se há respostas certas para um momento tão delicado".

MENOS CANDIDATOS

Em tempo de crise de vocações e sede de consumismo, a sua manifestação na juventude é a excepção que vem conservar a regra.

O sorridente e bonacheirão padre Rodrigo, vice-reitor do Seminário de São Paulo, acredita que bastava as pessoas "conhecerem melhor a realidade dos seminaristas e do sacerdócio" para pôr fim à tão falada crise de vocações.

De quando em vez, as actividades culturais não fogem à rotina do mosteiro: também se sai à noite para ir ao teatro ou ao cinema, vê-se televisão, pratica--se desporto e passeia-se pela internet, ao contrário do que pensam os que vivem ‘lá fora’.

No entanto, defende que "dificilmente o fim do celibato faria a diferença" na proliferação de novos candidatos a padres. "Um padre também tem uma família, a comunidade paroquial. E vendo bem as coisas, a vida de um padre não é mais difícil do que a de um pai ou de uma mãe de família. Nos países orientais, onde os padres formam família, também há crise de vocações e problemas. Ouve-se dizer ‘ai, o padre bate na mulher, os filhos drogam-se’... é complicado". O vice-reitor lembra que "o celibato significa canalizar as energias e a afectividade para a comunidade e um padre com família tem de preocupar-se com ela, providenciar o seu sustento. Mas pessoalmente acredito que um padre casado possa exercer tão bem o sacerdócio como qualquer outro".

Dentro do seminário, as chagas e pecados da Igreja Católica, como o recente escândalo de pedofilia na Bélgica, não ficam à porta. "Falamos muito nisso. Nem todas as coisas serão verdade mas há outras que são e a Igreja já o admitiu. Há uma necessidade de purificação. Há pessoas que sofreram, que ficaram marcadas, que se suicidaram e a Igreja não pode passar por cima disso. Apesar de tudo, somos uma das poucas instituições que admite os seus erros. Agora é preciso corrigi-los", diz o padre Rodrigo, de 66 anos.

"Indiferente a preconceitos" é como vive Carlos Sécio, 26 anos e ex-professor de História antes de chegar ao seminário, já lá vão três anos. A família, do Monte de Caparica, frequentava a igreja mas "nunca lhe impôs nada". "Fui para a catequese e tornei--me catequista porque quis". Na adolescência, até se afastou mas, tal como o bom filho, à casa de Deus retornou.

Também chegou a ter "namoro sério e planos de casamento", adivinhando filhos no futuro, mas havia um qualquer vazio que Carlos não conseguia preencher. Compreendeu-o inserido num movimento de jovens associado à Igreja. Quem se desentendeu foi a família. Quando anunciou a decisão ao almoço, fez-se silêncio. Os receios assomaram à mesa de refeições de um domingo que deixou de ser tranquilo. O emudecimento do pai durou várias semanas. A mãe lamentou a impossibilidade de ser avó, o pai alertou-o para "as coisas que as pessoas tinham contra os padres". Depois os temores aquietaram. E hoje a mãe já está contente: "já tenho um sobrinho, portanto ela já é avó", relata com um sorriso aberto.

Já entre os amigos, havia quem o tivesse visto desde sempre de batina vestida. "Por estar muito envolvido nas actividades da Igreja, muitos me diziam que deveria ser padre. Até mesmo um sacerdote a quem confessei a ideia ficou muito entusiasmado, a ponto de vir ter comigo várias vezes para falarmos no assunto e de eu ter sido obrigado a refrear-lhe os ânimos. Disse-lhe ‘só saberei que tenho vocação quando pensar nisto 24 horas por dia. Por enquanto ainda só penso 15 minutos’. Aí, o padre deixou de insistir comigo", relata, sobre os momentos que antecederam a revelação.

Só que os minutos de reflexão prosperaram em poucos meses e a dúvida passou a certeza. "Era aqui que o Senhor me queria. Enquanto Ele assim o quiser, vou manter-me aqui. E só Ele decidirá se chegarei ao fim".

ORDENAÇÕES SACERDOTAIS EM QUEDA

Portugal tem hoje cerca de metade dos padres que tinha há meio século. O anuário católico dá conta de 3512 presbíteros, mas mais de mil têm mais de 75 anos, ou seja, já atingiram a idade canónica da reforma. Mas o maior problema com que a Igreja se debate tem a ver com o facto de o número de novos padres só cobrir cerca de 40 por cento dos falecimentos.

No ano passado, por exemplo, foram ordenados nas 20 dioceses portuguesas 46 sacerdotes, tendo falecido 97. Mas 2009 foi um ano excepcional, porque a média de ordenações esta década é de 38, exactamente o número de padres ordenados este ano. Desde 2001 foram ordenados 391 padres, tendo finado quase 900. Para 2011, as previsões apontam para 30 ordenações. Mais uma descida.

NOTAS

2010

Dos últimos seis anos, foi aquele em que se registaram menos ordenações de novos padres.

VOCAÇÕES

O Norte do País, tradicionalmente mais religioso, foi a zona onde se registou mais quebra de candidatos a padres.

EM BRANCO

Este ano, três dioceses do País não ordenaram qualquer padre. Aconteceu em Portalegre, Beja e Faro.

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