Crise Académica de 1969, em Coimbra, foi uma contestação, uma festa, um luto que até chegou ao futebol.
Capa e batina para ser logo identificado como estudante, após os discursos do Reitor e do decano da Faculdade de Ciências, o presidente da Direção Geral da Associação Académica de Coimbra (DG-AAC), Alberto Martins, levantou-se e, dirigindo-se à mesa da cerimónia de inauguração do novo edifício das Matemáticas, na manhã de 17 de abril de 1969, pediu autorização para falar – o que lhe tinha sido anteriormente negado pelas autoridades universitárias: "Neste momento, em representação dos estudantes de Coimbra, peço a Vossa Excelência, Senhor Presidente da República, para usar da palavra."
Mandatado para o efeito, naquele momento sentia que era "a voz da Academia", embora soubesse que "ficava com o destino traçado – e que não seria muito promissor". Américo Tomás hesitou: "Bem… mas agora fala o senhor ministro das Obras Públicas…"
A multidão que estava no Largo D. Dinis foi informada que o Chefe de Estado autorizava Alberto Martins a expor as teses dos estudantes sobre "um país de analfabetos, o ensino elitista, a expulsão de universitários, a falta de liberdades democráticas". Mas, depois da intervenção do governante, a mesa deu por encerrada a sessão e retirou-se do anfiteatro Infante D. Henrique (que, agora, se chama 17 de Abril). "Vergonha! Vergonha!", clamavam os estudantes – e algumas vozes diriam ainda "palhaço" e "fantoche".
O cineasta João Botelho, conservador e católico quando foi para Coimbra, mas que em pouco tempo tinha aberto outros horizontes culturais e políticos, estava sentado na coxia quando a comitiva saía e lembra "o momento mais alto da [sua] ‘carreira política’, quando, numa atitude mais radical, [deu] um grande encontrão ao Presidente".
Começou assim a Crise Académica de 1969 (celebra-se, esta semana, o seu 50º aniversário), que transformou Coimbra "numa ilha de liberdade durante quatro meses" e abalou a Primavera Marcelista – a anunciada, mas não cumprida, abertura política prometida por Marcelo Caetano, que substituíra, no ano anterior, Salazar. Naquela mesma sala, onde, meio século antes, proferiu as palavras que entraram na História, Alberto Martins, no dia 23, vai lançar um livro com a sua versão dos acontecimentos, com o título ‘Peço a Palavra – Coimbra 1969’.
Dia da Flor
A 12 de fevereiro tinham-se disputado eleições para a DG-AAC – terminando, assim, com as Comissões Administrativas, que existiam desde a crise de 1965 – com a lista do Conselho das Repúblicas a vencer a da direita. Nessa altura, havia duas outras correntes na esquerda académica: a IBM (acrónimo de Inteligente Barros Moura, que era uma forma cifrada de se referir os comunistas) e a dos Contestas (como eram designados os maoistas, trotskistas, situacionistas, anarquistas e outros radicais).
Alberto Martins seria preso pela PIDE (a polícia política), na madrugada seguinte, pelo "crime de ofensas à dignidade e à honra devidas ao Chefe de Estado" e para ser interrogado sobre "quem é que estava por detrás" daquela intervenção. Ainda detido, ouviu "um vago barulho" no exterior, sem imaginar que era uma brutal carga da polícia de choque, com metralhadoras e cães, para dispersar a manifestação que exigia a libertação do presidente da DG-AAC.
No dia 22 de abril são suspensos mais sete dirigentes académicos e, nessa tarde, em Assembleia Magna, a Academia decretava o luto académico e decidia transformar as aulas em sessões de debate – o que foi apoiado por uma parte dos professores. Aquela geração estudantil teve a inteligência de evitar a confrontação com a polícia e de não provocar desordens públicas.
Hermano, O Firme
Num país com Censura, quem acabou por noticiar o que sucedia, explica Alberto Martins, foi o próprio ministro da Educação Nacional, o historiador José Hermano Saraiva. Ao discursar na televisão, na noite de 30 de abril, assegurava que "convergiram para Coimbra conhecidos elementos de agitação" e concluía "com uma certeza": "a ordem vai ser restabelecida na Universidade". João Botelho fazia logo o primeiro dos seus desenhos que eram policopiados em panfletos – ‘Hermano, O Firme’, com o ministro a cair de um pedestal.
Quem fez o que relatava José Hermano Saraiva – "sei que uma grande parte deles [estudantes], desejosa de se alhear do que se está a passar, e interessada em aproveitar o seu tempo, saiu já da cidade e regressou às terras das suas naturalidades para aí poderem preparar, em paz, os exames que se avizinham" – perdeu um clima de festa, em pleno luto académico, com permanentes debates ideológicos e abertura a novas estéticas. "O movimento foi maravilhoso", sorri João Botelho, porque, "de repente, surgiu um fervilhar novo".
Alberto Martins sublinha que foi "um movimento de massas, uma consciência coletiva". E o cineasta refere "a revolução de costumes, um novo modo de vida, as ideias de que o coletivo é mais importante que o individual e que mulheres e homens são iguais".
A 28 de maio, na maior Assembleia Magna, no jardim da AAC, em solidariedade com os oito estudantes-dirigentes suspensos e impedidos de se apresentar aos exames, a decisão foi quase unânime: "Ou há exames para todos ou não há para ninguém!" Levantaram-se 190 braços contra e abstiveram-se 40 alunos.
Um enorme aparato policial – a GNR a cavalo e em jipes com rede, a PSP em carros-patrulha, a polícia de choque com a sua armadura e cães, a PIDE em traje de cidadão comum – foi montado em Coimbra para garantir a segurança da minoria que fez provas. Entravam, então, em ação os piquetes de greve, que espalhavam tachas nas ruas para furarem os pneus dos jipes e esfregavam sabão nas calçadas e nas escadarias para os cavalos tombarem. E eram afixadas as listas dos "traidores" – sempre que possível acompanhadas de fotos ou de caricaturas.
A 3 de junho, para mostrar à cidade o sucesso da greve aos exames (86,8% faltou), organizou-se o Dia da Flor, em que os estudantes distribuíram flores à população – e até entregaram uma a um polícia sinaleiro. Alberto Martins sublinha que "cada um estava a jogar com a sua vida, a perder um ano letivo, a enfrentar a família, a ficar sem bolsa de estudo e, ainda por cima, arriscando vir a ser preso ou mobilizado para a guerra".
A AAC é encerrada a 7 de agosto e os seus dirigentes são presos. A 25 e a 29 de setembro, porque não havia lugar para realizar uma Assembleia Magna, os estudantes juntaram-se na Praça da República e tiveram de fugir de uma carga policial em que foi lançado gás lacrimogéneo. No mês seguinte, 49 contestatários tiveram incorporação forçada na tropa. Essa mobilização de universitários para as frentes de combate da Guerra Colonial originou a politização dos militares de carreira – e, como sustenta João Botelho, "é aqui que começa o 25 de Abril de 1974".
Taça de Portugal
Desde que foi decretado o luto estudantil, a ‘briosa’, equipa de futebol da Académica (constituída maioritariamente por universitários), decidiu as formas de cumprir aquela decisão da Assembleia Magna. E Mário Campos esclarece que nem houve contactos com a DG-AAC para demonstrar "a arma política que pode ser o futebol" – frisando ainda o risco que os atletas corriam, pois, ao contrário dos colegas, "eram identificados no estádio".
Em cada jogo, cumpriam um minuto de silêncio e usavam uma braçadeira de luto. Ao eliminarem o Sporting, garantindo a presença na Final da Taça de Portugal, foi a última vez que puderam ostentar o ‘fumo negro’ na manga, porque "a Federação Portuguesa de Futebol proibiu".
No Estádio Nacional, onde a equipa da Académica entraria em campo com capa estudantil sobre o equipamento, a habitual transmissão da RTP poderia mostrar ao País o que se passava em Coimbra – além dos meios universitários e dos setores oposicionistas, a maioria da população nem imaginava essa realidade – com as faixas de pano, de 20 metros, que iam passando de mão em mão pela bancada, para desespero policial, a denunciarem: "Estudantes Presos", "Melhor Ensino – Menos Polícias". A presença habitual do Presidente da República também havia de acicatar os ânimos. Mas nem Tomás comparece, nem foi feito um direto televisivo.
O extremo-esquerdo benfiquista perguntava ao extremo-direito academista o que significava aquilo que lia num cartaz: "Oh! Mário [Campos], a Académica está de luto porquê?" Replicava o futebolista-estudante: "Não é a Académica; é a Academia! Depois do jogo, Simões, explico-te." Manuel António marcou um golo, que Eusébio "anularia" com dois remates certeiros – mas, no fim, até parecia que os vencedores pediam desculpa por terem impedido que a equipa dos estudantes corresse para o topo sul e, como estava combinado, entregasse a taça a Alberto Martins.
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