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Isto não é só sobre Ricardo Robles

O que leva um político a contrariar aquilo que apregoa? O que gera o sentimento de impunidade? Especialistas explicam.

05 de agosto de 2018 às 01:30

A demissão surgiu, na última segunda-feira, dois dias depois de, em conferência de imprensa, procurar explicar a notícia de que tinha comprado um prédio em Alfama em 2014 por 347 mil euros, que foi reabilitado e posto à venda em 2017 por 5,7 milhões de euros. O negócio não é inédito nesta nova Lisboa rendida ao turismo, mas choca em excesso de velocidade com as intervenções de Ricardo Robles antes e depois de chegar à Câmara de Lisboa. Dizia-se contra a "lógica de especulação pura e dura ou para habitação de luxo e dedicada ao turismo".

Na conferência de imprensa antes da demissão, o ainda vereador do BE justificou que o imóvel tinha sido comprado em conjunto com a irmã, "com recurso a crédito bancário e apoio financeiro" dos pais. A intenção inicial era que o imóvel fosse habitado pela irmã e que as restantes frações fossem arrendadas. As notícias posteriores tornaram a situação do vereador insustentável.

"Na conferência de imprensa, ele vai buscar argumentos que servem de camuflagem para diminuir a sua falta ou o seu grau de responsabilidade e, para mim, o principal argumento utilizado foi o da família - é um argumento poderosíssimo. Pergunta-me se acredito? Não. Mas os seus argumentos acabam por ser credíveis embora sujeitos a confirmação - e nem sequer cabe ao polícia porque isto não é um crime, é antes um caso de escrutínio do político que cabe aos jornalistas", sublinha Manuel Rodrigues, ex-inspetor da Polícia Judiciária, perito na negociação de reféns. "Se fosse comparar a postura deste político com outras figuras que, ultimamente, foram objeto de alguma controvérsia, como por exemplo Bruno de Carvalho, a diferença é abissal. Este homem mostrou algum nível de consciência, preocupação, arrependimento, deu a cara e explicou e quando viu que não teve o efeito pretendido, teve hombridade de se demitir. É claro que verdades absolutas existem tanto quanto as mentiras absolutas, os copos estão meio cheios ou meio vazios consoante se olha. Só os factos acabam por serem indesmentíveis".

O ‘lucrismo’

Vítor J. Rodrigues, doutor em psicologia e psicoterapeuta desde 1985, autor, entre muitos outros livros, de ‘A Teoria Geral da Estupidez Humana’ [ed. Livros Horizonte] em que explica que "os bons estúpidos - os verdadeiros heróis da estupidez - são aqueles que usam a inteligência apenas suficiente e que, sobretudo, sabem usar a estupidez para resistir à inteligência e fazer o que os beneficia em termos pessoais; normalmente, são pessoas autocentradas, têm horizontes mais limitados, falta de perspetiva (elementos que chamamos de estupidez), mas são suficientemente inteligentes para conseguirem safar--se, para torcer a verdade, ou seja para fazer aquilo que é extremamente estúpido à escala global" - esclarece o autor, acrescentando que, no caso de Robles, seria preciso conhecer o vereador para avaliá-lo psicologicamente. Mas, antes de tudo, continua, "temos de perceber que os seres humanos são humanos". "A palavra dada vale menos que a oportunidade. Isto é uma questão cultural ou intrínseca ao ser humano. Mas temos de saber de que ser humanos falamos, qual é o grau em que determinada pessoa é capaz de continuar a ser coerente - de colocar os valores éticos acima dos interesses pessoais imediatos. Com os políticos são conhecidos numerosos exemplos, até a nível internacional, em que a tentação em deixar-se corromper é grande, aliás muitos agentes de corrupção aproveitam-se disso, como também há políticos que se aproveitam da sua posição para atos corruptos", refere Vítor J. Rodrigues. Tanto na política, como noutra esfera da sociedade, sublinha. "Na psicologia temos testes com dilemas morais e um deles do tipo ‘Se você estivesse numa situação em que tivesse de roubar alguém para ajudar outro, roubava ou não?’ É absolutamente fundamental saber quais são as referências éticas dessas pessoas para avaliar estes assuntos", diz o psicólogo.

Manuel Rodrigues, por seu turno, refere que atualmente "o dinheiro sobrepõe-se às ideias, às convicções, à moral". "E é esse o grande pecado da sociedade atual, em que acaba tudo por cair na mesma esparrela". O psicólogo tem um nome para isso - ‘lucrismo’. "Vivemos na ideologia materialista e capitalista que tudo se compra ou vende, e em que devemos ser competitivos. A mentalidade cultivada é a do ‘lucrismo’ - conceito que desenvolvi no livro sobre a estupidez humana-, em que o valor atribuído ao lucro é tão alto que as pessoas acreditam que é um valor para a vida".

O psicólogo frisa que numa sociedade de aparências, em que "o que conta é o que se parece ser - é a imagem", indicador da mentalidade de uma pessoa subdesenvolvida moralmente - pelo menos do ponto de vista de alguns psicólogos - que pensa que ‘desde que não me apanhem posso fazer tudo’". "Os políticos sabem à partida que não teriam tantos votos se se mostrassem tal como são. Até a maneira do político se vestir varia consoante o seu público", conclui. Ainda assim, a missão altruísta de Ricardo Robles durou mais do que um trocar de camisa - 303 dias.

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