Mal amado na Holanda, “onde não é de bom tom dizer que o rei vai nu”, ‘A Ira de Deus sobre a Europa’ chega a Portugal
O seu mais recente livro em Portugal foi publicado na Holanda em 2008, depois dos editores "terem arrastado a edição por quase dois anos", e de terem tentado convencê-lo "a arranjar o texto". J. Rentes de Carvalho vê-o agora publicado pela Quetzal. Podemos dizer que ‘A Ira de Deus sobre a Europa’ é um livro de memórias mas também de opiniões para gente que não sofra de miopia.
Em sua opinião, porque é que este livro não foi bem recebido na Holanda, como conta logo no prefácio? Diz que recebeu pouco menos de vinte euros em direitos de autor…
Um livro destes, contracorrente, só por milagre teria boas críticas ou seria bem aceite, mas também não contei com a atitude do editor, muito cauteloso em não desagradar à multidão do politicamente correto. Publicou-o porque havia contrato, mas também fez o possível para não o distribuir. Na Holanda continua a não ser avisado, nem de bom tom, dizer que o rei vai nu.
Que livro é este?
Se posso parafrasear Pessoa, é o livro do meu desassossego. Em relação à sociedade, à manipulação, ao desdém que voto aos políticos em geral, a toda a espécie de profetas que insistem em nos mostrar o bom caminho. Desassossego, também, pela influência das redes sociais e o ambiente que criam, a facilidade com que nelas se vitimiza ou promove a herói um qualquer pateta; de fazer de conta que é possível ter direitos sem deveres ou normas; que basta exigir.
Não poderia antes chamar-se ‘A ira de Rentes sobre a vida de um modo geral’?
Creio que não, porque pessoalmente há muito estou de bem com a vida. A minha ira, e acredite que é genuína, vai para a mentira, o descaro, a manipulação, a trafulhice, a cara de pau com que os políticos e os meios de informação aproveitam e abusam da ingenuidade dos cidadãos, nem sequer os tratando como imbecis, mas atrasados mentais, as "deploráveis criaturas" de que agora se fala.
Ainda assim, escreve que se pudesse renascer escolhia ser holandês. Porquê?
Porque a Holanda é um país superiormente organizado, o cidadão sabe-se realmente protegido pela lei, o nível de corrupção é muito baixo, vive-se nele sem necessidade de pedir favores, meter cunhas, pagar luvas, ou ter de falar com o doutor Fulano para que arranje vaga no hospital.
Geert Wilders, do Partido da Liberdade holandês (PVV), saudou a "revolução" na América que recuperou "a sua soberania e identidade" depois da eleição de Donald Trump. "O que a América pode fazer, nós também podemos", disse Wilders, cujo partido está bem posicionado nas sondagens para as eleições de março na Holanda. O que acha que pode acontecer nas próximas eleições? E à Europa depois das eleições americanas?
O partido de Geert Wilders de certeza vai obter excelente resultado nas próximas eleições, mas defronta um colossal obstáculo: só tem eleitores, não tem quadros. A força do politicamente correto na Holanda é tal que quem se arrisca a aceitar uma posição no PVV não escapa a ser social e politicamente ostracizado. De modo que a solução será que o PVV participe numa coligação, dando apoio parlamentar ao partido vencedor. É cedo para falarmos da Europa, mas o avanço do Cinco Estrelas na Itália, e a apressada "simpatia" que alguns países europeus demonstram pela Rússia, de certeza vão trazer interessantes mudanças e dificultar o discurso dos eurocratas.
Que legado deixou no país o assassinato, há dez anos, do cineasta Theo Van Gogh por um holandês de origem marroquina, Mohammed Bouyeri, que atirou oito vezes no estômago e depois o decapitou?
É triste dizer que fora dos seus amigos e dos quantos que admirávamos a sua coragem, e lhe desculpávamos a truculência, Theo Van Gogh é passado. Mas porque dá a medida da cobardia dos governantes e do oportunismo dos seus princípios é difícil esquecer dias depois do assassinato, o burgomestre de Amesterdão foi tomar chá a uma mesquita "para acalmar os ânimos dos muçulmanos."
"Existem muitas holandas, ao contrário de há 50 anos", escreveu. Qual será a preponderante?
Entre os dezasseis milhões de holandeses, há cerca de meio milhão de marroquinos e outros tantos turcos. Esses são os da primeira geração. Eles e os seus filhos acatam em geral as leis holandesas, embora sejam muitos a afirmar a supremacia do Islão. Se as acatarão quando forem a maioria, ou quase, é a grande incógnita. E como um antigo ministro da Justiça firmou: "Se forem a maioria e quiserem a sharia, teremos a sharia."
Este é um cenário que se aplica a outros países...
Sem dúvida. Na Grã-Bretanha já há mais de cem tribunais muçulmanos onde a sharia é aplicada desde 2008. O mesmo acontece no Canadá. Por enquanto, e felizmente, limitando-se a julgar conflitos entre muçulmanos, mas sendo plausível o seu alargamento num futuro não muito distante. Nalguns bairros londrinos com um número maioritário de muçulmanos, como é o caso de Tower Hamlets, há cartazes a assinalar que se trata de um local sujeito às leis da sharia.
Logo no prefácio a este livro escreve: "Os refugiados contribuirão igualmente, senão para destruir a Europa, de certeza para abanar os seus alicerces, transformar as suas instituições, destabilizar o equilíbrio e a variedade das sociedades que a compõem". Diz que os países ricos procrastinam. Caminhamos para onde? E para onde caminham as milhares de pessoas que fogem dos seus países?
Caminhamos para um futuro sombrio, não tenha dúvida. E o futuro dos refugiados, dos seus filhos e netos, não é menos sombrio, na medida em que, passada a onda sentimentalista, os políticos farão outro discurso, anunciando que não há lugar. Mas de que meios dispõe a Europa para se contrapor a tão colossais massas de gente?
Cita Borges e escreve que "em todos nós há resquícios de fascismo e racismo". No que a si toca…
Claro que há, claro que tenho, e creio que nisso não me diferencio de Nosso Senhor Jesus Cristo ou da Madre Teresa. Mas para esses, muito humanos, defeitos do meu caráter possuo excelentes travões. Não me passaria pela cabeça insultar ou desprezar alguém devido à cor da sua pele, ou julgar-me superior ao meu semelhante.
Contemplou diversas vezes a partida da Holanda mas nunca o chegou realmente a fazer? Porquê?
Nem creio que o farei, a menos que a morte ande na minha aldeia a aguçar a foice e me surpreenda lá. A razão simples é que só na Holanda tenho família: mulher, filhos, parentes e aderentes. Em Portugal resta-me a casa do meu avô materno. Mas talvez esse laço seja mais forte do que aparenta, pois há vinte anos que alterno três meses cá e três meses lá.
Fala de como foi um "outsider inside" no pós-25 de Abril e sempre se manteve assim. Continua, portanto, a sentir-se um "outsider inside" quando liga agora a televisão portuguesa?
Já o era há muito, continuo a sê-lo, e poderá parecer exagero, ou até pose, mas o facto é que, outsider ou insider, Portugal me dói. Outras vezes envergonha-me, enraivece-me, faz-me desesperar. ‘Feira Cabisbaixa’, de Alexandre O’Neill, é dos raros poemas que sei de cor. Para mim, Portugal é de facto "meu remorso, meu remorso de todos nós."
Fala das holandesas que se encontraram com o proletariado no Alentejo, e que ainda hoje se encontram anciões alentejanos que "rebolam os olhos ao recordar esse gostoso tempo". Quem se sai melhor neste seu quadro revolucionário?
Devem ter sido as raparigas, porque além da componente erótica regressaram à Holanda com a satisfação de terem cumprido um dever missionário, instruindo as massas trabalhadoras nas possibilidades do Kamasutra
O que une o rapaz chegado à Holanda, no pós II Guerra, com o olho em Paris, e o octogenário. E o que os separa?
O benefício dado a este último de poder olhar para trás e separar o trigo do joio, o que valeu a pena do que foi tempo perdido.
Fiquei com a impressão de que tem por hábito, e desde sempre, tomar notas ou manter um diário dos acontecimentos do quotidiano ou do que leu ou observou. É assim?
De facto, vou anotando. Depois deixo passar bastante tempo, o que então me ajuda a rir de mim próprio, envergonhado de por vezes me ver a desempenhar aquele papel que nos outros tanto me irrita: o de um sujeito sério.
"Portugal, se fosse pessoa, já tinha sido condenado por falência." "A obrigação da Europa para com os portugueses, a exemplo do que fizeram os EUA com os índios e o Quénia com os animais, é fechar-nos numa reserva." "Deixados a nós próprios acabamos por desaparecer." Resta-nos, portanto, ficar sossegadinhos a apanhar sol na praia da UE?
Esse parece ser o nosso destino, a espera de que algo de bom aconteça. Mas sossego, sol e praia da EU creio que não vai haver, porque isso é gente que duma ou doutra maneira aparece sempre a apresentar a conta. E os juros.
"Viveu mais longamente do que o tempo indicado pelo calendário." O que quer dizer com isto?
Na minha juventude, a média de vida para os homens em Portugal ia pouco além dos sessenta anos. Fora isso, a idade de Jesus Cristo já me parecia suficiente
Como se vive aos 86 "sem país ou partido e para onde quer que olhe não descortino segurança e paz"?
Não a descortino nos outros, mas tenho-a em mim, de par com uma sagrada independência. Não devo dinheiro, nem favores, não me prendem benefícios, alianças, amarras ou filiações, a ninguém tenho de prestar contas. Mas é uma segurança e uma paz que se paga caro.
O ESCRITOR EM POUCAS LINHAS
Nasceu em 1930, em Vila Nova de Gaia, onde viveu até 1945. Estudou em liceus do Porto, Viana do Castelo e Vila Real, antes de chegar a Lisboa, à Faculdade para Românicas e Direito, e na capital cumprir o serviço militar. Deixou Portugal por motivos políticos, viveu no Brasil, Nova Iorque e Paris. Em 1956 mudou-se para Amesterdão, como assessor do adido comercial da Embaixada do Brasil. Licenciou-se (com uma tese sobre Raul Brandão) na universidade daquela cidade holandesa. Ensinou ali Literatura Portuguesa entre 1964 e 1988 mas, desde então, dedica-se exclusivamente à escrita. A sua bibliografia inclui o romance, o conto, o diário, a crónica e o guia de viagem. Desde há 20 anos que vive três meses lá, três meses cá. Agora, tem estado cá, numa aldeia de Mogadouro.
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