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O fim da rolha nos ordenados das mulheres

Durante oito horas de trabalho à frente de um tapete rolante, por onde passam centenas de milhares de rolhas de cortiça todos os dias, uma mulher escolhedora tem muito tempo para pensar na vida. 'O trabalho é duro, repetitivo e requer muita atenção', revelam, mas fora isso, a cabeça vagueia entre o que preparar para o jantar e as questões mais profundas. A 'flagrante injustiça da discriminação salarial' tem sido, aliás, um dos temas que mais tempo ocupa nos pensamentos de uma força laboral de cinco mil mulheres.

01 de junho de 2008 às 00:00

'Há 18 anos que este ‘bichinho’ anda a remover, a mexer com os nervos e a revoltar as trabalhadoras. Não podemos aceitar que, homens e mulheres que fazem o mesmo trabalho tenham uma diferença de 100 euros', aponta Maria de Lurdes Oliveira, 48 anos, a mais velha das três operárias que aceitaram dar o seu testemunho.

Portugal é o maior produtor e exportador mundial de cortiça, com um volume anual de negócios estimado em 850 milhões de euros, mas parece que até ao ano passado ninguém se importava com o fosso salarial entre trabalhadores. 'Foi preciso batalhar muito. O Sindicato dos Corticeiros, filiado na CGTP, pôs-nos a falar com todos os grupos parlamentares e fizemos uma vigília de 12 horas à porta da Associação Portuguesa da Cortiça, em Santa Maria de Lamas. Só aí começámos a ser ouvidas', explica Conceição Sousa, que há 23 anos trabalha como escolhedora numa das muitas centenas de empresas do distrito de Aveiro, líder na indústria corticeira nacional.

A persistência acabou por vencer e, no mês passado, a ronda negocial entre patronato e sindicatos deu finalmente frutos. Um acordo extraordinário de revisão salarial estabeleceu um plano máximo de oito anos para igualar os vencimentos, a que, na prática, correspondem aumentos de 12,21 euros mensais a cada ano que passa.

'É um mau acordo, mas é o possível', contrapõe Maria José Pereira, de 41 anos, delegada sindical. 'Há tantos anos que estamos assim que era de toda a justiça que se resolvesse o problema de uma vez e não às pinguinhas. No entanto, sabemos que era isto ou nada. Por isso temos de aceitar o que nos dão', concluiu.

A discrepância nos vencimentos explica-se historicamente pelas categorias de trabalho em que mulheres e homens são colocados. 'As trabalhadoras executam tarefas de escolhedora, calafetadora ou estampadora, que são categorias do grupo 16, a que corresponde um salário de 544,50 euros. Os homens são prenseiros, brocadores ou laminadores, dentro do grupo 14, que tem um vencimento de 642,16 euros. Isto dá uma diferença de 97,66', enumera Maria José.

'O patronato sempre esticou estas diferenças porque lhe interessava. Só há pouco tempo é que tem vindo a aceitar fazer as revisões salariais anuais das mulheres por valor e não por percentagem. Isto porque, todos os anos o fosso entre ordenados em vez de diminuir só aumentava', salienta a mesma trabalhadora. A este propósito, Conceição Sousa acrescenta: 'Quando levantávamos o problema era comum os patrões responderem que para nos dar mais a nós teriam de tirar aos homens. Ora se grande parte dos casais trabalham no mesmo sector isto era inaceitável e servia, muitas vezes, para nos calar.'

A activista Maria de Lurdes, que está mais próxima do fim da vida activa do que as colegas, insurge-se com a chegada a um acordo de revisão só agora. 'Esta ilegalidade vai continuar porque não há nada a fazer pelas mulheres que já se reformaram ou que estão em vias disso. Foram todas para casa com menos 120 ou 150 euros que os maridos e assim vão continuar', expõe.

Perguntámos às três trabalhadoras, que acederam a dar o seu testemunho, de que forma irão gastar os 12 euros mensais que vão passar a ganhar a mais e as respostas não se fizeram esperar, carregadas de ironia. Maria de Lurdes, cujo marido está reformado da cortiça por invalidez e tem duas filhas já adultas, diz que terá de 'esperar alguns anos' para conseguir reunir dinheiro para pagar a mensalidade de um ginásio. 'Preciso de investir em mim. Acho que mereço, ao fim de 48 anos de trabalho, dar-me um miminho qualquer', salienta. E lembra divertida: 'Comprei um óculos de mais de 300 euros para usar no trabalho. Pelas minhas contas teria de penhorar cinco anos de aumentos para os pagar.'

Já Maria José, com um filho de 12 anos para criar e um marido que trabalha no também difícil sector da construção civil, afiança que 'o aumento vai desaparecer como fumo'. Porque mora longe do local de trabalho e se desloca diariamente de motorizada, garante que a verba 'não vai chegar para fazer face aos aumentos da gasolina'.

Conceição, a mais nova das três, com uma filha de 12 anos e um pequenito de 4 anos, sabe que não são mais 12 euros que lhe vão pesar na carteira e no rendimento familiar - o marido trabalha também na indústria corticeira - pelo que representam 'uma gota de água na despesa de 100 euros só para a ama' do filho mais novo. No entanto, acrescenta: 'Sempre me dá desculpa para não deixar de ir ao cabeleireiro. Gosto de me arranjar.'

Levando a conversa para assuntos mais sérios, as três escolhedoras lembram que 'o fim da discriminação servirá, principalmente, para as mulheres que irão entrar no sector' e que já vão beneficiar da luta travada. Mas vai também abrir a porta para outras batalhas. 'O próximo passo poderá ser a questão da progressão na carreira, que não existe no sector', aponta Maria José, que explica: 'A partir do momento que um trabalhador entra para uma determinada função fica aí toda a vida, sem almejar qualquer subida de categoria. Isto, na prática, quer dizer que recebe sempre o mesmo ordenado, salvo as actualização legais.'

Alírio Martins, coordenador do Sindicato dos Corticeiros do Norte - que acompanha a alguma distância a entrevista às operárias - olha, com orgulho, para estas mulheres. 'São umas batalhadoras', considera.

O sindicato, que representa a grande maioria dos operários - 80 por cento do sector está no concelho de Santa Maria da Feira - pôs muita energia nas negociações que levou a cabo com a Associação Portuguesa da Cortiça (APCOR). 'Estamos satisfeitos, até porque representa o culminar de uma luta com mais de uma década'. Alírio Martins revela que as negociações chegaram a entrar num impasse, 'porque a APCOR queria resolver o assunto num prazo de 12 ou 10 anos e os sindicatos queriam que fosse no imediato. Acabou por se chegar a um consenso de oito anos. O que não é bom nem mau.'

Firmado o 'pacto', o coordenador acredita que 'as folhas de vencimentos deste mês irão começar já a reflectir o acordo. Se assim não for, as empresas terão, mais tarde ou mais cedo, de rever os salários pagando retroactivos.'

A indústria da cortiça, que surgiu ligada às rolhas e ao vinho, vê o acordo com 'total normalidade'. O director-geral da APCOR, Joaquim Lima, rejeita a ideia de discriminação e diz mesmo que 'é condenável', no entanto sustenta que 'o que se passava no sector era uma separação de profissões que a evolução se encarregou de tornar obsoleta.'

Segundo explica, 'a tecnologia assumiu grande parte da responsabilidade que antes estava atribuída ao operador', pelo que 'hoje, homens e mulheres desempenham as mesmas funções pelo que aceitámos rever a metodologia das profissões que estava inalterada desde a década de 60.'

Quanto ao prazo de oito anos, Joaquim Lima afiança que o sector, à semelhança de outros dependentes dos mercados exportadores, 'não podia assumir um esforço financeiro de tal dimensão' e que ascenderia a cerca de 500 mil euros mensais em despesa com remunerações. 'O plano estabelecido é benéfico para todos', conclui.

Actualmente, o sector da cortiça vende 90 por cento da sua produção a mercados internacionais, onde a França, os Estados Unidos e a Espanha figuram entre os primeiros lugares. Estes valores proporcionam à indústria corticeira uma fatia de 2,2 por cento do total das exportações nacionais, sendo que para países fora da UE essa percentagem sobe para os cinco por cento.

Em termos históricos, o sector está intimamente ligado ao vinho. Os primeiros montados de sobreiros surgiram no Algarve, vindo a estabelecer--se, predominantemente, na Margem Sul do Tejo, mas a indústria transformadora concentrou-se próximo das caves do Vinho do Porto, mantendo-se nos dias de hoje numa faixa de território situada no norte do concelho de Santa Maria da Feira.

Apesar de continuar muito ligada ao fabrico de rolhas, que representa um quarto da produção e 70 por cento do volume de negócios, a indústria tem diversificado os negócios. Hoje em dia, as 600 a 700 empresas nacionais fabricam desde pavimentos e revestimentos, passando por artigos decorativos, por componentes para o calçado e para as indústrias militares, de aviação, químicas e farmacêuticas e ainda juntas para automóveis. Até o pó de cortiça serve para gerar energia, tal é o grau de aproveitamento desta matéria-prima.

ELAS SÃO 40 POR CENTO 

Quarenta por cento dos postos de trabalho na indústria corticeira são ocupados por mulheres. A grande maioria senta-se frente a uma tapete rolante - as separadoras - por onde vão passando diariamente centenas de milhar de rolhas que precisam de ser separadas por categorias, mediante a qualidade que apresentam.

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