A 18 de Dezembro de 1961, a União indiana atacou Goa, Damão e Diu. Em poucas horas, Portugal perdeu um património de 500 anos
A mensagem enviada há 50 anos por António de Oliveira Salazar ao general Vassalo e Silva, governador do Estado Português da Índia, explicava o que o presidente do Conselho de Ministros esperava dos militares em resposta a um ataque da União Indiana: "Não prevejo possibilidade de tréguas nem prisioneiros portugueses, como não haverá navios rendidos, pois sinto que apenas pode haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos ..."
A mensagem foi recebida em Goa a 14 de Dezembro de 1961, dois dias depois de Vassalo e Silva ter ordenado a evacuação, por barco, das famílias dos militares portugueses. Os territórios de Goa, Damão e Diu eram guardados por 3500 militares e menos de mil polícias goeses. Junto às fronteiras, a União Indiana tinha 45 mil soldados, apoiados por dois porta-aviões, vários navios de guerra, aviões e centenas de carros de combate.
O ataque era esperado – durante mais de um ano Salazar tinha ignorado as tentativas de Nehru, presidente da União Indiana, de se chegar a uma transferência de soberania pela via diplomática –, mas ninguém saberia dizer onde nem quando. Havia até a esperança de que a invasão não viesse a acontecer. O então capitão Carlos Azeredo, comandante da Polícia de Goa, partilhava desse sentimento: "A malta não acreditava, e eu também não. Já tinha havido várias ameaças que nunca foram concretizadas. Como Nehru, presidente da Índia, tinha a gala de dizer que era um pacifista, eu nunca acreditei que ele fizesse uma guerra contra uma coisa pequenina e praticamente desarmada".
‘OPERAÇÃO VIJAY’
Às primeiras horas da madrugada de 18 de Dezembro, as colunas militares indianas entraram em Goa pelo norte e pelo sul. Os territórios mais pequenos de Damão e Diu foram também atacados. Os militares portugueses esforçaram-se por seguir o estipulado no ‘Plano Sentinela’, uma estratégia de defesa que se baseava na retirada faseada das forças desde as fronteiras até à costa. O objectivo era atrasar a progressão do inimigo, com a destruição de pontes e estradas. "Era um plano idiota e inexequível, feito a régua e esquadro em Lisboa por quem não fazia ideia do que eram Goa, Damão e Diu", diz Carlos Azeredo, colocado perto da capital de Goa, Pangim.
As tropas portuguesas tinham armas do tempo da Primeira Grande Guerra – e com munições em tão mau estado que era frequente as balas não dispararem. Um episódio caricato pôs a nu as vulnerabilidades da defesa: Semanas antes da invasão, chegou ao porto de Mormugão, em Goa, uma encomenda de ‘chouriços’, palavra que na gíria militar designava as munições de artilharia. Mas afinal a encomenda de Lisboa era mesmo chouriços para o Natal das tropas.
O poder bélico das forças indianas era esmagador. Em poucas horas, as tropas da União Indiana avançaram, quase sem oposição. Os aviões sobrevoavam as tropas portuguesas: "Fui sobrevoado às nove da manhã pela aviação indiana e eles não dispararam. Ao contrário do que se possa pensar, isso foi muito desmoralizador. Percebemos que não tínhamos hipóteses", conta João Aranha, que comandava a 2ª Divisão da Polícia, no norte de Goa. Na manhã do dia 19, Pangim estava cercada. A derrota era evidente. O governador Vassalo e Silva encarregou o bispo de pedir a rendição ao comando indiano.
HERÓI DE GUERRA
Praticamente todas as forças portuguesas renderam-se a 19 de Dezembro. Morreram 25 militares, mas a maioria dos soldados não chegou a entrar em combate. Houve excepções. Na ilha de Angediva – pequeno território a sul de Goa que terá inspirado a Ilha dos Amores de Camões – e na fortaleza da Aguada – onde estavam presos os responsáveis por actos terroristas que se repetiam na região nos anos anteriores – os portugueses venderam cara a derrota. O aviso ‘Afonso de Albuquerque’, o maior navio de guerra presente, combateu até ser afundado. Mas foi em Diu que emergiu o herói da resistência.
O tenente Oliveira e Carmo, comandante da lancha de fiscalização ‘Vega’, atacou um cruzador indiano com os seus sete tripulantes. Metralhado por aviões, Carmo morreu com mais dois marinheiros. Deixou viúva e dois filhos. "Dizem que ele foi um herói. Para mim será sempre o Jorge, o pai dos meus filhos. Fez o que se esperava que ele fizesse. Naquelas condições, o Jorge que eu conheci só poderia ter aquela reacção: combater", diz Maria do Carmo, que estava em Lisboa, grávida do segundo filho.
CINCO MESES DE CATIVEIRO
Após a rendição, mais de três mil militares portugueses ficaram prisioneiros. Os indianos criaram quatro campos de prisioneiros em instalações militares portuguesas: Pondá (onde funcionavam dois campos), Alparqueiros e Aguada. O governador Vassalo e Silva foi mantido à parte com os seus dois ajudantes, numa casa de Pondá. Aí recebeu a visita de Jorge Jardim, enviado especial de Salazar, que lhe deixou uma cápsula de cianeto. Mas o último governador da Índia recusou o suicídio.
As condições dos campos de prisioneiros eram duras. "A comida era horrível. Comíamos feijão-frade todos os dias. Como cama tínhamos uns cartões para dormir no chão. Tentámos improvisar colchões de palha, mas enchiam-se de percevejos", conta o então 1º cabo de Engenharia José Rodrigues Manta, preso em Pondá. Nesse campo, três militares tentaram fugir na camioneta do lixo, mas foram denunciados por um português. Na parada, o comandante indiano perguntou quem queria punir o delator e a resposta foi unânime: "Todos". Surpreendido, o comandante mandou apontar armas aos prisioneiros. O fuzilamento só se evitou graças à intervenção do padre Joaquim Ferreira da Silva, capelão de Pondá.
Em Alparqueiros, outra fuga fracassou. Onze militares escaparam, mas foram traídos pelo comandante do barco que os deveria apoiar. Pior do que o cativeiro era a incerteza do futuro: "Os indianos diziam-nos que só estávamos ali porque o Governo português não nos queria receber. E tinham razão. Salazar fez tudo para dificultar o nosso regresso", conta Carlos Azeredo.
De facto, Salazar levantou sucessivos entraves às negociações. O ditador não perdoava o facto de os militares não terem combatido. O seu plano era mostrar ao Mundo a violência da União Indiana. Achava que um banho de sangue faria a comunidade internacional tomar o lado português.
O repatriamento só aconteceria em Maio de 1962, com uma ponte aérea de Goa para Carachi, no Paquistão. Daí, os militares foram transportados em três navios até Lisboa. À chegada, foram chamados de traidores. Oito oficiais, incluindo o governador-geral, foram demitidos. Outros cinco foram reformados compulsivamente e oito suspensos por seis meses.
O TENENTE QUE ESCOLHEU MORRER PELA PÁTRIA
Em Diu, o ataque indiano durou poucas horas. A desproporção de forças era esmagadora, mas o tenente Jorge Manuel de Oliveira e Carmo não hesitou. Ao avistar navios inimigos, saltou para o leme da lancha ‘Vega’. Na manhã de 18 de Dezembro, ao avistar um cruzador indiano, o segundo tenente Carmo manobrou a ‘Vega’ na direcção do inimigo. Dois aviões metralharam a lancha, matando um marinheiro. O comandante ficou gravemente ferido. Um dos seus últimos gestos foi beijar uma fotografia da mulher e dos filhos. Foi promovido a capitão-tenente a título póstumo, tendo recebido também a medalha de Valor Militar com Palma e agraciado com o grau de Comendador da Ordem Militar da Torre e Espada.
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