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O golpe social do judo

João Pina e outros judocas ensinam o valor do respeito a miúdos dos bairros de Chelas, em Lisboa, e da Estrada Militar, na Damaia

10 de fevereiro de 2013 às 15:00

A sala do refeitório transforma-se para receber a aula de judo. As mesas e as cadeiras dão lugar a colchões de ginástica sobre um chão de mosaicos. Entre as janelas abertas vão desfilando pais e avós curiosos, que espreitam. Estamos em Chelas, Lisboa. No bairro dos Lóios, rodeados por habitação social. Vestidos de quimono azul e cinturão preto, o judoca bicampeão europeu João Pina e o ex-campeão nacional João Cardoso não são, para variar, o alvo das atenções; são as crianças – as mais novas têm três anos de idade.

A UNESCO declarou este como o melhor desporto de formação inicial para crianças e jovens dos quatro aos 21 anos.

O judo vai à creche e ao jardim de infância: "Promove-se a inserção social através do desporto, tendo como referência o João Pina, que se torna um modelo de conduta" – contextualiza Sónia Ventura, diretora técnica da Associação Tempo de Mudar. "Aprendem disciplina, coragem, autonomia, respeito e a estar numa relação com os outros através do desporto. Aqui o judo chega a todos e a baixo preço [até 12 euros], dependendo dos rendimentos. As famílias deste bairro não vivem exclusivamente num contexto socioeconómico carenciado. Coexiste a habitação social com cooperativas e habitação de venda livre."

Todas as segundas e quartas-feiras são iguais. Ao final da tarde, João Pina começa com o primeiro grupo, com idades entre três e quatro anos. Está aberta a correria (e gritaria). É difícil controlar 16 crianças que respiram alegria num espaço almofadado. João Cardoso ajuda. E os dois judocas iniciam o treino. "Vamos ao jogo do sumo da laranja?" – pergunta Pina, que é correspondido por gritos entusiastas. Dois a dois, têm de empurrar ou puxar o colega para fora de um círculo no colchão – não vale mãos na cara nem puxões de cabelo. "Nestas idades, tentamos que as aulas sejam lúdicas. Fazemos exercícios de forma jogada e, ao mesmo tempo, tentamos introduzir algumas técnicas de judo" – explica o bicampeão europeu.

Meia hora depois, chega o grupo dos quatro e cinco anos. Já se nota a competição entre eles. Os jogos lúdicos são substituídos por técnicas simples de judo. E não se pense que nesta idades eles não conseguem projetar o colega ao chão, porque conseguem. E fazem-no sem violência. João Pina apressa--se a explicar que "o lema do judo é a via da suavidade".

OS PAIS À ESPREITA

Mário, de 10 anos, dá um beijo à mãe, outro ao pai e recebe deste um beijo na testa. Vai entrar na aula do terceiro grupo, onde as idades vão dos quatro aos 14 anos. À espreita pela porta entreaberta do refeitório transformado em sala de judo fica o pai – também ele se chama Mário Guerra. Ao lado está Filomena, a sua mulher, e outros pais e avós. "Eu também pratiquei judo, há mais de 30 anos", conta ele, lançando um olhar sobre o filho.

Em casa da família Guerra, o desemprego alojou-se como uma praga. "Seria impossível ele [o filho] ir para o judo noutro sítio mais dispendioso. E ainda teria de pagar os transportes" – conta Mário. A avó Maria Odete Cunha, 57 anos, corrobora: João, de 10 anos, o neto que vive com os avós, encontrou no judo uma ocupação saudável e perto de casa. De outro modo, não havia orçamento para desportos. "Ele até tem ido a competições e já ocupou, em diferentes ocasiões, o 1º, 2º e 3º lugares", comenta orgulhosa a avó.

Com base nesta experiência, João Pina lançou-se num projeto de responsabilidade social. Para implementar a prática do judo em escolas e bairros sociais fundou o Instituto do Judo (ver caixa), que já está em contacto com a autarquia lisboeta. Com bons professores, tapetes e quimonos tudo é possível. Quando o judo chegou a Chelas, só tinham 15 tapetes disponíveis. O Sporting, clube de João Pina, ofereceu mais 21.

"Sinto-me realizado ao trabalhar com este tipo de crianças. A recetividade é diferente em relação às que têm a possibilidade de praticar 1001 atividades. Se calhar, não têm nada e no judo veem a oportunidade de fazer uma coisa diferente que até lhes pode dar um projeto de vida, de futuro", afirma João Pina, que aos quatro anos se iniciou no judo, num contexto diferente: no Colégio Moderno, particular, fundado pelo pai do ex-presidente da República Mário Soares e dirigido pela filha, Isabel Soares.

Na Associação Tempo de Mudar, antes das sete da tarde terminam as aulas de judo. Os pais que antes estavam à espreita vão agora ajudar a transformar a sala outra vez em refeitório social. No dia seguinte, serão servidas 130 refeições a crianças e mais 30 a idosos.

JUDO NA ‘RABULERA’

No bairro da Estrada Militar – ou ‘Rabulera’, como lhe chamam em crioulo –, na Damaia, Sergiu Oleinic, moldavo radicado português, dá aulas de judo em sistema de voluntariado. É nesta comunidade – essencialmente de cabo-verdianos e seus descendentes – que o Instituto do Judo começa a dar os primeiros passos. Até agora foi conseguido um patrocínio para comprar dez quimonos – mas só na aula da última quarta-feira eram 15 os jovens praticantes.

A ‘Rabulera’ é um bairro de barracas – acessos de terra batida, becos sem saída –, com cerca de 2500 habitantes e problemas de droga e criminalidade. Este bairro é muito diferente do dos Lóios, em Chelas.

Ana Vaz, técnica da associação de solidariedade social Pressley Ridge, explica que a prática do judo é importante para as crianças da ‘Rabulera’ porque as obriga a ter regras. "No dia a dia, estes miúdos resolvem as crises à sua maneira. No futuro, isso poderá impedi--los de fazer más escolhas" – explica a coordenadora do programa Brave E5G (financiado pelo Escolhas 5ª Geração).

Sente-se a humidade na sala de judo. As paredes já precisam de pintura. No teto estão pendurados papagaios de papel. Há um velho quadro de ardósia na parede. Tudo sinais do antigo ATL que ali funcionava. As instalações são da Junta de Freguesia da Damaia, que as cede para que o programa Brave possibilite a prática do judo.

As crianças começam a chegar, quase todas sozinhas. Rúben, de oito anos, veio pela mão da mãe, Vera Lúcia. Desempregada das limpezas – a receber subsídio – explica que "o desporto é importante para tudo". Mas seria impossível praticar judo se o custo não fosse "zero".

O judoca Sergiu Oleinic começa por espalhar os 15 colchões de ginástica no chão – conseguiu que uma instituição os emprestasse. Não tarda, a sala está repleta de miúdos. Começam por se descalçar à entrada. Nenhum usa quimono, por isso saltam para o colchão de fato de treino vestido. Oleinic impõe a disciplina. Não quer que se dispersem com brincadeiras. E põe-nos logo a fazer o aquecimento. Dali a pouco tempo já estão a projetar-se uns aos outros ao chão. As aulas só começaram no final do ano passado, mas há alunos que já evoluíram bastante.

A ideia que move o Instituto do Judo é levar agora este desporto aos bairros problemáticos mais próximos: o 6 de Maio e o Casal da Mira. O objetivo é expandir os valores do judo: honestidade, amizade, cortesia, respeito, honra, autocontrolo e coragem. E possibilita que muitos jovens venham a ser atletas de alta competição.

"Mesmo não tendo as condições de espaço ideais, basta ter vontade. Eu fiquei surpreendido ao saber que estas comunidades têm espaço disponível mas não há quem o ocupe com iniciativas" – afirma Oleinic, certo de que "para muitas crianças, esta [judo] é a única modalidade que vão poder praticar na vida".

E isso Sergiu Oleinic, 27 anos, sabe valorizar: há seis anos ele trocou a Moldávia por Portugal porque o seu país era demasiado pobre para alimentar o sonho de ir aos olímpicos. No nosso país, o atleta está na corrida por um lugar no Rio 2016. E ao mesmo tempo está a frequentar o mestrado em Psicologia Desportiva.

O Instituto do Judo não se vai limitar a trabalhar com crianças carenciadas. "Tive até a ideia de criar uma aula para idosos", explica o judoca João Pina. "Pode parecer perigoso mas, com as devidas adaptações, é benéfico em termos físicos, para a estrutura óssea e muscular. Além de que promove a interação entre os idosos. O judo é um desporto de contacto." O objetivo será o de divulgar o judo no País e democratizar a sua prática, com o acréscimo de que os alunos terão o privilégio de treinar com atletas de alta competição.

INSTITUTO DO JUDO QUER CHEGAR A ESCOLAS E BAIRROS CARENCIADOS

O Instituto do Judo é uma iniciativa de um grupo de atletas (e ex-atletas) de alta competição – João Pina, Joana Ramos, João Cardoso, João Rodrigues, Nuno Albuquerque e Sergiu Oleinic – que decidiu implementar a prática deste desporto "em locais onde o acesso nunca existiu e não é fácil, pelos custos que acarreta", explica Pina. Através da Fight Spirit, empresa de equipamento desportivo, o Instituto do Judo tem como objetivo fazer chegar esta modalidade às escolas e bairros problemáticos.

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