Historiador quis fazer um ‘fresco’ do que foi a Segunda Guerra Mundial em todas as suas dimensões e latitudes. Ou seja, contar o Holocausto, mas também o massacre de Nanquim, as grandes batalhas ou as dimensões económicas e sociais do conflito
'História Total da Segunda Guerra Mundial’ (editora Crítica; 884 págs.) é uma abordagem multidimensional do mais trágico conflito da história da humanidade, que levou seis anos a escrever – mas em que Olivier Wieviorka, o autor, trabalha há 14. “É o trabalho de uma vida.”
Enquanto autor, qual foi a sua principal preocupação durante a escrita do livro?
Há muitos livros dedicados a este tema, geralmente por tópicos, como a guerra na Rússia, o Holocausto, a vida em França, etc. Eu queria fazer o panorama da II Guerra Mundial e, para isso, precisava de incorporar elementos frequentemente esquecidos na Europa, como o que aconteceu do outro lado do mundo, na Ásia. Nós não sabemos muito sobre a China ou o Japão, que não sejam estereótipos. Queria também evitar apenas a história militar. A II Guerra Mundial é frequentemente reduzida às grandes batalhas, como as de Estalinegrado, Midway ou Kursk.
A China foi uma das grandes vítimas da guerra...
Geralmente dizemos que a guerra começou em 1939, mas na China começou em 1931 e durou até 1945, o que quer dizer que esteve em guerra mais de 10 anos. O massacre de Nanquim, em dezembro de 1937, cometido pelas tropas japonesas, é um elemento esquecido na Europa, mas não certamente na China.
Podemos dizer que houve várias guerras no mesmo espaço temporal entre atores diferentes de dois blocos...
Sim, e ainda temos de ter em conta dimensões diferentes do conflito global, que são as ocupações e as ditaduras. França, Bélgica, Noruega e Dinamarca não estiveram em guerra entre junho de 1940 e junho de 1944 – não há conflito dentro dos seus territórios –, e o mesmo se passou na Malásia. Por outro lado, as pessoas experimentaram não só a ocupação mas também a exploração, trabalho forçado e perseguições racistas. A II Guerra Mundial incluiu as dimensões da guerra, mas também as da ocupação e da ditadura. A radicalização foi sendo progressiva e a guerra cada vez mais cruel. Em França, por exemplo, o regime de Vichy é muito mais duro em 1944 do que em 1940. O mesmo se passa na Hungria, quando o regime de Miklós Horthy foi forçado a resignar e um regime fascista, verdadeiramente terrível [pró-nazi], usurpou o poder já em 1944.
Como é que vê a difícil neutralidade portuguesa durante esse período?
Durante a II Guerra Mundial, a neutralidade foi muito difícil por vários motivos; primeiro, porque alguns dos que diziam ser neutrais tinham afinidades ideológicas, como o franquismo com o fascismo. Espanha dizia que era neutral, mas não era. O outro elemento é a pressão sobre esses Estados, o caso da América Latina, por exemplo. A Argentina, que queria ser neutral, tinha uma enorme comunidade alemã e italiana e igualmente uma pressão muito forte de Washington, que ameaçava com a possibilidade de não entrarem nas Nações Unidas. Salazar era um feroz antibolchevique. Odiava o comunismo. Católico, era muito reticente ao nazismo. Por outro lado, a Primeira Guerra Mundial tinha sido um desastre para Portugal e Salazar não queria repetir a experiência. A neutralidade portuguesa foi também pressionada por causa dos Açores.
Qual foi o tabu quebrado pela II Guerra Mundial?
Os limites da moral. Não houve limites para a barbárie nem para a crueldade. Houve mais vítimas civis do que militares. Durante a II Guerra Mundial era melhor ser soldado do que civil. Os civis foram bombardeados, torturados, submetidos a trabalho forçado. Seis milhões de judeus foram executados, mas não só. Foi a guerra mais violenta da História.
Da qual saiu uma nova ordem...
A ideia dos Aliados foi construir uma nova ordem que organizasse o pós-guerra.
Estamos melhor agora?
Não. Há um sociólogo, Norbert Elias, que diz que o mundo está sucessivamente e permanentemente a ficar melhor. Eu acho que não. O que se vê, hoje em dia, é a guerra na Ucrânia a ficar cada vez mais cruel.
Na atualidade existem coincidências com o período entre as duas guerras do século XX?
Há a tentação de fazer comparações e generalizações. Não podemos comparar porque, por exemplo, havia maior prevalência da ideologia. A Ucrânia é uma democracia e Putin é um nacionalista, embora a natureza da sua ideologia seja difícil de entender. A dimensão ideológica é hoje menos prevalecente e óbvia. Por outro lado, durante a II Guerra Mundial houve um período de radicalização. O início da guerra foi limitado, mas com o decurso do tempo chegou a África e à Ásia. A guerra na Ucrânia é terrível, mas, de momento, nenhum outro país se envolveu. A Bielorrússia não se envolveu, a Moldávia não se envolveu, os Estados Bálticos também não. Portanto, tudo sugere que os beligerantes não querem que a guerra se estenda para além da Ucrânia. De momento, é o que se passa.
Mas a guerra lançada contra a Ucrânia por Putin em 2022 é investida de símbolos do passado: a desnazificação, a grande pátria russa, etc...
Uma coisa é comparar como jornalista ou como historiador os conflitos de hoje e a guerra em 1945, outra é o uso da memória desse conflito para legitimar uma intervenção armada na atualidade. Putin usa a memória da II Guerra Mundial, a chamada “Grande Guerra Patriótica” pelos soviéticos, para legitimar a intervenção recente. Até certo ponto, isso é uma construção ideológica, que um jornalista não pode ajudar a legitimar. O uso do passado para legitimar ações do presente é comum. Vemos isso na China, quando esta se insurge contra o Japão. O que está também em causa são as atrocidades cometidas durante a guerra sino-japonesa, entre 1937 e 1945. O exemplo do passado deve servir fins nobres – como, por exemplo, lembrarmo-nos que a guerra foi uma catástrofe, mas serviu para a construção europeia e que, tal como então, devemos hoje construir uma nova Europa.
Hoje em dia, o eleitor médio conhece a História da humanidade?
Há uma enorme perda da memória histórica. Se por um lado está muito presente, em França como em Portugal, por exemplo em casos como a vossa memória da revolução do 25 de Abril, que comemoraram recentemente; por outro, em França, depois de François Mitterrand, deixámos de ter líderes políticos que saibam o que foi a História. Os líderes do passado olhavam para a História como elemento de reflexão, que deveria ser levado em conta. Acho que hoje em dia, com líderes como Macron ou Chirac, isso desapareceu. Essas pessoas não percebem que elas próprias estão a fazer história. Essa é uma perda terrível.
Qual é o seu próximo livro?
É sobre estrategas, homens que pensaram a guerra. Alguém disse que os grandes líderes, antes de fazerem a guerra, sabem a paz que querem depois. Acho que nem Putin nem Netanyahu têm a mais pequena ideia do tipo de paz que querem ter no futuro.
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