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Rostos de uma geração à rasca

Catarina foi a voz no megafone e símbolo do protesto organizado por quatro jovens mas que uniu milhares.

20 de março de 2011 às 22:00

De megafone encostado aos lábios, Catarina Príncipe grita as palavras de ordem: "Precários nos querem, rebeldes nos terão!". Com 25 anos celebrados no domingo, a aluna do curso de Estudos Artísticos da Faculdade de Letras de Lisboa é uma das 200 mil pessoas que marcharam em Lisboa no ‘Protesto da Geração à Rasca’.

Está ali porque ela já se sente precária, mesmo antes de ter ingressado no mercado de trabalho: "Sou do Porto e quando vim para Lisboa candidatei-me a uma bolsa. A minha mãe não ganha o suficiente para me pagar o curso, mas ganha demais para me ser concedida uma bolsa. Tive de fazer um empréstimo de 15 mil euros. A partir de Setembro, tenha ou não emprego, terei de pagar 250 euros por mês ao banco".

Militante do Bloco de Esquerda, pertence à plataforma May-Day, que desde há cinco anos junta trabalhadores precários no dia 1 de Maio. Para Catarina, a manifestação de 12 de Março foi uma surpresa pela dimensão e um passo em frente: "Estávamos a precisar que acontecesse alguma coisa".

ORGANIZADOR À DISTÂNCIA

Às dez da noite de sexta-feira, véspera da manifestação, a voz de António sumiu-se. Na véspera da manifestação, a febre atirou-o para a cama. Deitou-se na casa que divide com colegas em Coimbra, esperançado de acordar em condições de apanhar um dos autocarros que seguiram da cidade dos estudantes para a capital. "Acordei com um amigo a ligar-me às dez e meia. Tínhamos combinado ir juntos para Lisboa, mas percebi logo que não estava em condições. Passei o dia entre o sofá – a ver as manifestações na televisão – e a cama, cheio de febre".

Horas depois, em Lisboa, os colegas Paula Gil, Alexandre de Sousa Carvalho e João Labrincha chegavam à manifestação que os quatro convocaram no Facebook. Não imaginavam 200 mil pessoas nas ruas da capital, quase 100 mil no Porto e muitos milhares noutros pontos do País. Os quatro amigos que se conheceram na Universidade de Coimbra tornaram-se, sem querer, nos rostos de uma geração que não se cala.

BONS ALUNOS

António Frazão tem 25 anos e é de Rio Maior, João Labrincha, 27, nasceu em Aveiro, Paula Gil, de 26, é do Porto e Alexandre de Sousa, 25 anos, é de Coimbra. Os três primeiros entraram em 2003 para o curso de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Alexandre entrou um ano mais tarde. Cedo se destacaram entre colegas e professores, não só por serem bons alunos mas também porque rapidamente se envolveram nas actividades extracurriculares.

Elisa Frazão, 26 anos, colega de curso, lembra-os: "Trabalhei directamente com a Paula e o António no Núcleo de Estudantes de Relações Internacionais da Associação Académica de Coimbra. Eu tinha o pelouro da secção internacional e o António era tesoureiro. Tínhamos reuniões semanais e participávamos em todas as actividades".

Uma das primeiras iniciativas que ajudaram a organizar chamava-se ‘Portugal Mundo – a transposição do modelo das Nações Unidas em Portugal’. "Na Faculdade eles já se distinguiam na organização de movimentos", conta Elisa Frazão.

José Manuel Pureza, actual deputado do Bloco de Esquerda, lembra-se bem dos quatro: "Fui professor deles em várias cadeiras e eram alunos que se destacavam pela qualidade de intervenção, tanto escrita como oral. Qualquer um destes quatro tinha uma qualidade de intervenção acima da média. Tinham uma perspectiva crítica, exigente e não me surpreende nada que façam da sua cidadania um exercício muito exigente", conta.

TRABALHADORES ESTUDANTES

António e Paula trabalharam sempre durante os quatro anos do curso em Coimbra. António perdeu os pais quando estava no secundário, em Rio Maior. Para pagar os estudos em Coimbra contava com uma bolsa e vários empregos em part-time. "Ele vivia numa residência de estudantes, tinha algumas dificuldades financeiras. Trabalhou como porteiro no Teatro Académico. Sei que o assunto ‘falta de dinheiro’ era recorrente, até porque por vezes não lhe pagavam a horas", conta a colega Eliza Frazão.

Silvina Ferreira, de 61 anos, lembra-se perfeitamente das diabruras que o sobrinho, João Labrincha, fazia na infância. "Ele só gostava de fazer asneiras. Uma vez lembrou-se de lavar toda a mobília do quarto com detergente da loiça. Estragou tudo". Até ir para a escola, João passava as semanas alternadamente entre a casa dos avós maternos e a dos avós paternos, em Ílhavo (Aveiro). E era precisamente ao lado que Silvina tinha o seu minimercado. "Ele queria tudo e mais alguma coisa", lembra a tia.

À medida que ia crescendo, João ia também aperfeiçoando dotes de fadista, acompanhado à viola pelo pai – engenheiro na autarquia de Ílhavo. Chegou mesmo a ganhar um concurso de jovens fadistas, no Porto. Conta uma prima que João foi há bem pouco tempo a uma casa de fados, chegou mesmo a cantar e por pouco não saiu de lá contratado. João já pertenceu à JS, mas saiu da organização juvenil socialista.

Enquanto estudante do curso de Relações Internacionais, Paula Gil trabalhou como guia e recepcionista do centro de visitas da A. A. Ferreira, uma das maiores casas de vinho do Porto. A então militante do Bloco de Esquerda começou por dois contratos de trabalho anuais, através de uma agência de trabalho temporário, e em 2006 passou a contratada da própria Sogrape. Um ano depois, já licenciada, saiu por mútuo acordo. Quando foi estudar dois anos para Inglaterra, empregou-se nos escritórios de venda de bilhetes dos Bradford Theatres e foi voluntária durante três meses na Fundação Anne Frank.

Em Coimbra, os quatro são caras familiares. Em dois cafés da Praça da República – o Académico e o Tropical – lembram-se deles: "Vinham cá às vezes, mais de noite, normalmente com amigos. Não são de grandes consumos alcoólicos, são pessoas sossegadas e discretas", conta o dono do Académico.

Alexandre Sousa é de Coimbra e dava nas vistas devido ao seu gosto pela música. Chegou a tocar guitarra em grupos de rock, mas hoje já terá abandonado a carreira artística. Militou na JCP e chegou a pertencer à direcção da Associação de Estudante s de Coimbra. Vive hoje num prédio de Alfama, em Lisboa, e tem como vizinha de cima Paula Gil. Foi no típico bairro lisboeta – onde são figuras conhecidas dos lojistas e residentes – que planearam o protesto de 12 de Março.

CARREIRAS DIFERENTES

Os quatro concluíram a licenciatura por volta de 2008, mas mantiveram-se sempre em contacto. Paula e Alexandre foram para Bradford, onde fizeram mestrados no Departamento dos Estudos para a Paz. Alexandre é, neste momento, bolseiro de doutoramento no ISCTE e escolheu o Quénia como país alvo da sua investigação. Recebe 980 euros de bolsa, com uma duração de, pelo menos, dois anos. Alexandra Magnólia Dias, que lidera a equipa de investigação onde Alexandre trabalha, descreve-o como "uma pessoa muito capaz do ponto de vista académico" e explica que "a selecção da pessoa a quem foi atribuída a bolsa de investigação foi muito exigente".

Paula Gil está a fazer um estágio profissional de nove meses numa empresa (que não quis identificar) patrocinado pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional. Recebe cerca de 758 euros mensais.

António Frazão prossegue os estudos em Coimbra, depois de ter cumprido um estágio no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Está a fazer um mestrado na área de Estudos Europeus, mas continua a depender de um emprego em part-time para pagar as suas contas: "Estou à espera que me comece a ser paga a bolsa de estudos. Trabalho como recepcionista num hotel de Coimbra". O salário varia conforme o trabalho e fica-se "entre os 200 e 300 euros ".

Na entrevista colectiva, com Paula e Alexandre, que deram à Domingo numa sessão de chat na net (ver caixa), João Labrincha contou estar a viver a mesma dificuldade sentida por tantos jovens da sua idade: "Encontro-me desempregado, sem subsídio de desemprego – porque antes estive a fazer um estágio profissional. Dependo da minha família para subsistir".

DOS DEOLINDA ÀS RUAS

António explica que a ideia de organizar uma manifestação "nasceu da reacção que vimos das pessoas à canção dos Deolinda ‘Que Parva que Sou’ – cujo refrão diz "que mundo tão parvo em que para ser escravo é preciso estudar". Perceberam que a canção transmitia um sentimento comum a muita gente: "O problema da precariedade é transversal a toda a sociedade. Aos licenciados e não licenciados. A música dos Deolinda pretende representar apenas uma das muitas situações de indignidade humana associadas a este problema", diz João Labrincha.

MANIFESTO

Após uma conversa entre os quatro, elaboraram um manifesto em que convocavam uma acção de protesto em nome dos "desempregados, ‘quinhentos-euristas’ e outros mal remunerados, escravos disfarçados, subcontratados, contratados a prazo, falsos trabalhadores independentes, trabalhadores intermitentes, estagiários, bolseiros, trabalhadores-estudantes, estudantes, mães, pais e filhos de Portugal". Num tempo em que os empregos vitalícios desapareceram, rejeitam que estejam a reclamar a protecção do Estado e demarcaram-se de outros movimentos contra a classe política. "Não procuro um contrato para a vida. Procuro, sim, direitos laborais, justos e dignos, nos trabalhos que venha a ter", diz Paula Gil.

João Labrincha criou o evento ‘Protesto da Geração à Rasca 12 de Março’ na noite de 5 para 6 de Fevereiro. "No dia seguinte já tínhamos 700 aderentes e depois foi uma bola de neve. Na véspera da manifestação estavam inscritas 70 mil pessoas", diz António Frazão.

Foram surpreendidos pela dimensão do protesto: "Estivemos de manhã no Cinema São Jorge a fazer os últimos preparativos para a manifestação, almoçámos todos juntos e a partir das 15 horas a avenida da Liberdade começou a encher. Durante a caminhada até ao Rossio, senti que estava a fazer parte de algo único. As pessoas ocuparam a rua, tomaram-na como sua. Não havia um guião, havia sim o sentimento de desabafo colectivo, de catarse. Nunca vi este comportamento noutra manifestação em Portugal", diz Alexandre.

Lançaram uma nova página no Facebook, onde juntam testemunhos: "O fórum na internet foi criado de forma a que as pessoas pudessem debater, apresentar soluções e juntarem-se em grupos que possam dar origem a novos movimentos cívicos ou reforçar os existentes", explica Paula Gil. António explica os próximos passos: "Pedimos às pessoas que escrevessem numa folha A4 um problema e a sua sugestão para a resolução desse problema. Queremos juntar um dossiê e entregá-lo na Assembleia da República". Alexandre escreveu na sua folha: "Não tratem as pessoas como números nem os mercados como pessoas".

"FOI O MAIOR PROTSTO DESDE O 1º DE MAIO DE 74"

- Como estão a digerir o sucesso da manifestação de dia 12?

Paula Gil - Perto de 400 mil pessoas juntaram-se em Portugal e no estrangeiro. Foi uma manifestação pacífica, civilizada, que juntou indivíduos de todos os quadrantes políticos. Foi o maior protesto desde 1 de Maio de 1974 e envolveu uma das maiores intervenções criativas que alguma vez vi no País. Consideramos que foi um grande sucesso de toda a sociedade civil portuguesa.

- A manifestação estava cheia de mensagens criativas e irónicas. Quais foram os vossos slogans preferidos?

Paula Gil - "No meu tempo também era assim. Assinado, Spartacus". Alexandre de Sousa Carvalho: Lembro-me de um que dizia algo como "A vida dos portugueses não é uma brincadeira de Carnaval, pá"; João Labrincha: "Um escravo feliz é o pior inimigo da liberdade".

- Citaram o 1º de Maio de 1974. Precisamos de nova revolução?

João Labrincha - Achamos ser necessária uma evolução para uma democracia mais madura. As liberdades actuais permitem-nos progredir de forma positiva sem a necessidade de uma revolução.

OS GOSTOS DOS QUATRO ORGANIZADORES

ALEXANDRE DE SOUSA CARVALHO

Filme: ‘The Wall’, dos Pink Floyd

Canção: ‘Do que um homem é capaz’, de José Mário Branco

Livro: ‘O Homem Revoltado’, de Albert Camus

JOÃO LABRINCHA

Filme: ‘Underground’, de Emir Kusturica

Canção: ‘Portugal Portugal’, de Jorge Palma

Livro: ‘Mundo do Fim do Mundo’, de Luis Sepúlveda

PAULA GIL

Filme: ‘Shooting Dogs’, de Michael C. Jones

Canção: ‘Desfolhada’, de Simone de Oliveira

Livro: ‘Memórias das Minhas Putas Tristes’, de Gabriel García Márquez

ANTÓNIO FRAZÃO

Filme: ‘A Lista de Schlinder’, de Spielberg

Livro: ‘A Aparição’, de Vergílio Ferreira

Canção: não consegue escolher uma

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