Alistei-me voluntariamente nos pára-quedistas. Depois do curso de combate, fui mobilizado para o Norte de Moçambique com as divisas de alferes aos ombros
Estávamos em plena Primavera de 1973. Na cidade de Tete, Norte de Moçambique, banhada pelas águas do Zambeze e conhecida nos meios militares como a 'Saigão Portuguesa', os dias apresentavam-se habitualmente muito quentes e secos. A cidade era uma autêntica fornalha. O ar era quase irrespirável para um europeu – e ainda era mais insuportável sempre que um carro passava pelas ruas de terra batida: levantava-se uma asfixiante nuvem de poeira que irritava a garganta e os olhos. O Maxim, o grande cabaret de Tete, resplandecia em cada noite. As luzes de néon acendiam-se e apagavam-se para cativar a clientela – a maioria constituída por militares, que procuravam a atenção de uma mulher para esquecer algum pesadelo vivido em operações. A noitada acabava muitas vezes com ‘páras’, ‘comandos’ e ‘fuzos’ a medirem forças. As coisas atingiam por vezes níveis de grande violência, mas havia sempre alguém com bom senso e autoridade para fazer voltar tudo à normalidade.
Nesta altura, a atenção do general Kaulza de Arriaga, comandante-chefe das Forças Armadas em Moçambique, virava-se para a zona de Tete.
Aos serviços de informações militares chegavam notícias de que os guerrilheiros da Frelimo estavam a estender a acção para Sul. Havia relatos de acções na estrada que ligava a Beira a Vila Pery. Na Gorongosa, um médico espanhol amigo do General Franco, em visita ao Parque Nacional, foi morto – e, na sequência deste incidente, é solicitada a intervenção do meu grupo de combate, a 15 de Agosto de 1973, para protecção dos poucos turistas rodesianos e sul-africanos que então visitavam aquele extraordinário santuário da vida animal.
Nas principais vias do distrito estavam a rebentar – e a fazer cada vez mais vítimas – muitas minas anticarro e anti-pessoal, tanto na estrada internacional que liga Moatize ao Zóbué, na fronteira com o Malawi, como na estrada entre Tete e o Songo, que era a via por onde se transportava todo o material para a construção da Barragem de Cahora Bassa. As obras da barragem atingiam, neste momento, uma fase decisiva: a empresa italiana TLC já estava a estender os fios de alta tensão para transportar a energia para a África do Sul. Também para protecção destas obras, em Outubro, seria deslocada minha companhia.
A agitação social que se fazia sentir em toda a região de Tete tinha como origem mais profunda a retaliação que as tropas portuguesas infligiam nas populações indígenas por causa do rebentamento das minas. Esta situação atinge o seu período mais escaldante com os acontecimentos ocorridos no aldeamento de Wiriamu, em 16 de Dezembro de 1972, quando foi abatido, por ‘comandos’, um número considerável de habitantes, como represália por uma emboscada sofrida um dia antes por uma patrulha do Exército, perto de Corneta, na estrada da Beira para Tete.
Em Abril de 1973, a tensão era imensa em toda a região de Tete. Foi para este barril de pólvora que foi chamada a 2.ª Companhia de Caçadores Pára-quedistas do BCP32. Chegámos a Tete em 16 de Abril de 1973, depois de um voo de 6 horas a bordo de um avião ‘Nord Atlas’.
A companhia desloca-se, primeiro, para Capirizanje, ou Capiri Janje, onde a tropa portuguesa, segundo algumas fontes, levara a cabo um massacre nas povoações de Ngunda e Ncena: falou-se, então, em cerca de 200 mortes.
A minha companhia ocupou-se da acção psicológica – chegámos a fazer um jogo de futebol com a população – e também nos dedicámos a operações de nomadização e emboscadas de dois ou três dias que visavam, sobretudo, a protecção e segurança da estrada internacional que ligava Tete ao Zóbué, na fronteira do Malawi. Era por esta via de grande importância estratégica, mas muito insegura por causa das minas, que passavam as grandes colunas de abastecimento e de transporte de produtos para o Malawi governado por Hasting Banda, que tinha uma posição muito ambígua quanto à guerra. Nesta zona, eu e o meu grupo de combate chegámos a fazer uma incursão-relâmpago pelo território malawiano, de madrugada, em busca de um depósito de armas que estariam escondidas num cemitério. Com o Sol já a raiar e com o guia muito confuso quanto ao local certo, tivemos que retirar com as mãos a abanar e com o máximo de cuidado para não sermos detectados (até íamos calçados com sapatilhas em vez das botas militares). Houve ainda algumas notícias sobre esta operação que saíram a público, mas o caso ficou-se apenas pelos rumores. Verificávamos, com espanto, que por esta estrada apenas o padre passava na motorizada sem ser incomodado pelos guerrilheiros e sem accionar qualquer mina.
Estávamos há três semanas neste clima ameno e sem grandes sobressaltos operacionais quando, a 7 de Maio, o capitão Sebastião Martins, comandante da companhia, me convoca, a mim e ao alferes Fernando Dias, para uma reunião de emergência. Mandou-nos preparar os nossos homens para uma operação importante que seria lançada dentro de poucas horas. Havia informações seguras de que uma alta figura militar da Frelimo, o comandante Sebastião Mabote, iria passar no dia seguinte pela ‘Base Ponde’ – onde estaria um número apreciável de guerrilheiros e armas. Face à importância e à segurança das informações recolhidas, o brigadeiro Armindo Videira, comandante da Zona Operacional de Tete, solicita um pelotão de 'páras' para executar a missão: capturar aquele importante elemento inimigo, destruir a base e lançar a insegurança numa zona nevrálgica de passagem dos guerrilheiros.
Ficou decidido que, em vez de ir um único oficial com um pelotão, fossem dois com duas secções. Assim, eu e o meu amigo alferes Fernando Dias, recebemos de imediato instruções precisas sobre a missão: lançar um assalto sobre a Base Ponde – a ‘Operação Crasto 3’.
(Continua na próxima semana)
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